No velório de Michael Mahon

Fotografia de Alexander Grey

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Diante do féretro aberto do seu melhor amigo, no que parece ser um velório pouco concorrido, o ex-faroleiro Argyll Williams mostra-se acometido por uma solidão mais penetrante do que aquela tantas vezes experimentada na ilha de Tory, quando o oceano tumultuoso, verdadeiramente insano, se erguia contra as paredes cilíndricas da pequena torre iluminada e se dava conta de ser ele a pessoa mais só e mais estoica do planeta.

Olhar um corpo quieto e sem fôlego, a quem o acinzentar das carnes e a rigidez das expressões tornam uma presença intrusa no meio de tantos pensamentos e memórias, é o que faz também a astrofísica Kathleen O’ Connor. No deserto do Atacama, a visibilidade do céu noturno convida olhos gulosos a indagar as profundezas do universo, como sejam a luz das estrelas primitivas e das primeiras galáxias.

O’ Connor observa agora a morte. O seu tio, Michael Mahon, não se parece nada com o autor das mais engraçadas anedotas do condado de Donegal, apenas um corpúsculo sem luz na embocadura de um buraco negro. Dos amigos que teve poucos vieram, um deles o velhote de pele vermelhusca e camisola de lã, com um barrete grosseiro de pescador na mão direita.

Na igreja entrou agora Mary Gallagher. É uma mulher notada, com o seu peculiar vestuário de couros e acessórios de luto. De ambas as metade da face escorre um curto leito de lágrimas e produtos cosméticos, um sulco comprovativo de que a mágoa nos suja o rosto e o deforma sempre.

Se toda a comunidade de Cloughaneely aqui tivesse acorrido, compreenderia que a uma antiga prostituta não descabe a sua quota-parte de desgosto e que um véu fúnebre nunca sabe bem, nestes casos, o que esconde.

Admitamos que o vazio se conte entre os despojos que ao fim e ao cabo atormentam as almas sensíveis de um antigo vigilante nas noites pelágicas, de uma cientista acostumada ao silêncio do cosmos, ou de uma mulher que abandonou as camas pungentes de uma casa de passe. Ninguém saberá dizer, sob pena de leviana suposição, em qual das três o será mais, ou de maior escondimento.

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Páraic O’Reilly

Patou Ricard
Fotografia de Patou Ricard

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Dezembro verte uma fina camada de vidro sobre as casas. Em toda a parte doem os nós dos dedos e os ossos. Páraic levanta as golas do sobretudo e sai da taberna. Na Irlanda, a lua cheia é neste mês uma presença transfiguradora: os telhados e chaminés húmidos das aldeias, os bosques e rios atafulhados de velhas divindades mágicas, os promontórios cheios de espuma lá em baixo, tudo para onde o nosso olhar se dirige espelha uma majestade que as palavras não sabem dizer, tal como acontece nos sonhos. Páraic vê nessa iluminação (e em nenhum outro lugar mais do que nela) a presença antiga e visceral de Deus. Não o entendem.

Desde que abandonou o mosteiro (porque foi monge este Páraic O’Reilly), escreve, bebe e às vezes ensina. É vagamente o que se imagina ser um poeta e sem dúvida o homem mais só em todo o condado de Clare nesta noite solsticial de vinte e três, ou vinte e quatro.

Emborcado o último gole da última cerveja em Killarney, toma a resolução. Vem caminhando perpendicularmente ao bojo negro da Catedral de Santa Maria, onde os coros locais ensaiam já, ou ainda, cânticos de louvor ao que nasceu e ao que há de nascer nesta data. Páraic mete-se no carro e arranca para norte. São duas horas e meia, a andar bem, mas vale a pena.

Aqui viveu a infância, aqui vive ainda a melhor parte de si. Páraic sente o formidável cheiro do mar misturado com o do campo. Ardem-lhe os olhos, a garganta também dá sinal de si. Não será por muito tempo. Encontra-se pertíssimo das falésias de Moher. A meia-noite não tarda. Calculou com minúcia cada etapa da viagem. Abandona o automóvel num estradão, espiado somente pelo olhar atónito das corujas, e avança em passo firme até ao extremo do penhasco onde ergueram a Torre O’Brien.

O revérbero lunar nas águas do Atlântico hipnotiza-o. A beleza das coisas não pode provar senão a magnificência do Senhor. Os homens deviam contemplá-la assim, amá-la sem limites ou subterfúgios. De nada serve rezar se não se compreende o encantamento da perfeição divina. Desde que abandonou a condição de monge, foi-lhe ministrada por completo a lição mais dolorosa da sua vida: os caminhos do Senhor são, não apenas insondáveis, como sobretudo paradoxais. É um eremita, um pária, e conhece melhor do que ninguém o significado da busca de redenção, agora que passou à vida secular e se sente odiado por toda a gente.

Lá ao fundo as ondas fosforejam, o vento glaciar empurra-o, todos os seus sentidos o impelem a seguir em frente. Liscannor oferece passagens excecionais para o outro mundo: um passo avante e será um salto, duzentos metros de voo e o fim de todo o seu suplício.

Mas é, então, sugado para o âmago de um círculo de fogo. À sua volta, à meia-noite em ponto, uma claridade terrena acende-se como por milagre. São fogueiras altas, deflagrando desde as escarpas de Doolin, a norte, até aos promontórios de Baile an tSéipil, a sul. Páraic ouve, de chofre, um cântico levantar-se, nascido na garganta de centenas de mulheres que ali de súbito, será um prodígio, surgem do meio das trevas, vindas do nada.

É uma festa pagã, um ritual de que ouvira falar uma vez há muito, mas em que não acreditara. Talvez em honra de Dagda (deusa da sabedoria), ou de Fand (deusa do mar), ou de Tan Hill (deusa do fogo), ou de Arianrhod (deusa do lar), ou quem sabe de Aine de Knockaine (fada do amor e da fertilidade). A vozearia multiplica-se com o rufar de tambores e guizos e ululantes saudações ao inverno que chega.

As mulheres dançam frenéticas, percorrem o manto esverdeado do litoral e atiram os braços à lua cheia. Depressa engolem na sua roda Páraic, apertam-no contra os seios e as coxas, beijam e acariciam-no. Trazem-no de volta à vida para que nelas produza a vida. Esta, insuflado por uma espécie de êxtase orgíaco, cumpre. Cumpre com todas as suas obrigações, não sabe como, nem com quem. Dizem que nessa noite gera setenta filhos.

Evidentemente que as lendas mentem. Do sémen de Páraic O’Reilly vêm ao mundo, quem sabe, sete, três, um filho, talvez nenhum. Setenta, juram por cá.

E que diferença faz?

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Just like Heaven

Fotografia de João Almeida
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Era como se em vez de pés e mãos o seu corpo deslocasse trajetórias invisíveis de ar. Mary viajava a partir do mesmo parque de estacionamento, ao longo das mesmas estradas, para as mesmas ruelas com aquela expressão que o tempo costuma ter no início de março, leve, frágil, veemente, adocicada pelo sol imenso, prometedor, talvez não duradouro, sem saber mais do que o agora, sem pedir mais do que viver assim.

Daí a um par de horas voltaria a vê-lo. E ele voltaria a segurá-la nos braços, voltaria a beijá-la, voltaria a olhá-la nos olhos com ternura desmesurada, voltariam a abraçar-se como se abraçam duas folhas de erva, voltariam a trocar doces palavras também elas sem peso, costurando essa cumplicidade que nos prende a uma razão maior de ser.

Na rádio escutava uma daquelas canções pop que preenchiam toda uma época. Achava-lhe piada, tinha ritmo, a letra não era má, a batida oferecia-lhe um pouco mais de amor.

Why are you so far away, she said Why won’t you ever know that I’m in love with you That I’m in love with you
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Em seu redor os prados reverdeciam, prolongavam-se até à linha de mar. Aquela ilha, tantas vezes carcereira, parecia-lhe agora um lugar portentoso: deslumbrava-a a sucessão monótona de campos e cercas, entontecia-a a mistura de perfumes campestres (que intermináveis meses de chuva tinham fabricado) com a brisa oceânica, os penhascos sinistros junto do farol de Skeling Michael produziam nela uma alegria imensa. Era como se o automóvel vogasse sobre nimbos, como se a sua existência simplória de empregada de caixa num qualquer supermercado de província tivesse merecido as honras de uma divindade.

You Soft and only You Lost and lonely
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Mary sentia-se cansada, feliz mas cansada, cansada mas feliz. A música na estação de rádio era vibrante, ela tinha pressa, acelerou. As curvas doíam, seguiam-se-lhe contracurvas perigosas. O sol declinava cada vez mais rápido, deixando no horizonte uma saudade terna, uma poalha luminosa que aqui e ali ofuscavam. Aquele tinha sido um sábado igual a tantos outros, com a diferença de que trabalhara mais horas. Mas valera a pena. Daí a um par de horas voltaria a sentir-se jovem, renascida, parte do mundo vivo e ótimo de que se alimentam as lendas.

Ninguém sabe como se passou. Talvez algures, numa nesga do caminho, o automóvel haja guindado depressa demais, deslizado sobre gravilha, sido encandeado pelo rútilo momentâneo de um raio acabado de desembaraçar-se de uma nuvem.

You Strange as angels Dancing in the deepest oceans Twisting in the water You’re just like a dream You’re just like a dream
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Era como se vogasse sobre nimbos, como se a sua existência pudesse (caprichosa, surpreendente, reconciliada) ter descoberto um modo de permanecer para sempre, como num sonho, sim, como num sonho. Em Cork durante meses não se falou de outra coisa.

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