Nós gostamos da neblina

Luigi Bondurri
Fotografia de Luigi Bondurri

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M. caminhava com pressa nessa manhã. Fazia-o por causa do frio, mas outrossim em virtude do hábito (no verão caminhava igualmente apressado; talvez, neste caso, por causa do calor). De todas as partes da cidade, por onde a água corresse, subia uma neblina espessa e álgida que engolia tudo: um olhar não demasiadamente perspicaz vê-la-ia erguer-se do rio, mas também das sarjetas, dos chafarizes, nos jardins públicos, e das bocas ofegantes dos transeuntes.

M. lembrou-se (ultimamente era uma memória assídua) da ponte de outros dias, no fim da primavera, quando aí costumava comprar a uma velhinha de lenço na cabeça cerejas magníficas, e se punha a observar a lentidão do caudal quase transparente, e os junquilhos lhe debruavam as margens, e uma mulher o esperava na outra banda, ao lado da igrejinha românica, cujos lábios carnudos confundia às vezes, no inferno de uma insónia, com a cor e a carne das próprias cerejas maceradas na sua boca.

M. suspirou. Teria vivido o que viveu? Chegava a duvidá-lo. Olhou o céu com um suspiro. O sol, um sol cor de prata, forrado pela neblina como por bocassim, ia e vinha por entre os prédios, aparecia e desaparecia no meio da cabeça ossuda das árvores. M. suspirou de novo. Era uma visão do passado e não tanto de um déjà vu o que lhe estava a acontecer nesse preciso instante, porque nalguma parte de si sabia há muito que iria viver esse momento, esses suspiros, essa pressa, essa nebulosa divagação por entre espaços e pelo âmago do tempo. Principiara a acreditar no eterno retorno. Convencera-se mesmo que, algures, na viagem da nossa vida, apesar de não vermos o antes ou o depois, repetíamo-lo.

Entrou na farmácia e pediu aspirina.

– Uma caixa, senhor?

– Três, por favor!

– Três?

– Três.

M. gostava de comprar tudo a triplicar. Detestava a sensação de ver esgotar-se algo de que precisava ou de que gostava. Casara três vezes, tantas quantas as que se divorciara. Começara três cursos na universidade, sem ter concluído, porém, por culpa de um tédio irreprimível, nenhum. Era assim. Se pudesse, teria nascido em três e falecido outras tantas ocasiões, para não lhe escapar qualquer pormenor e pelo prazer de regressar a um ponto exato da existência.

– Aqui tem. São treze euros e vinte cêntimos.

M. pagou e saiu. Doía-lhe a cabeça. Doía-lhe amiúde. Caminhava com pressa, em direção a qualquer parte que a neblina não deixava divisar bem. Ah, as cerejas túmidas, a velhinha simpática, a amante que o esperava com um sorriso tímido, num banquinho de madeira, à porta da antiga igreja. M. entrou na neblina como se entra num sonho.

Até agora não voltou a ser visto.

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O castigo

Foto: Norbert Maier
Fotografia de Norbert Maier
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Nesta época do ano, as manhãzinhas são docemente cruéis. Quem acorda gostaria de continuar a dormir. É a única altura do dia em que uma correntezinha fresca alivia a casa, atravessando como um bálsamo os corredores e o pátio. Depois o sol assenta sobre a terra e o calor massacra, obriga homens e animais a procurar refúgio no meio dos hortos ou dos poços, ou das grutas, ou das caves, ou das adegas húmidas. A Andaluzia é um inferno de junho em diante.

À noite, as janelas são escancaradas. A imensa massa de ar quente precisa de ser expulsa das paredes, dos recessos, dos sótãos, do interior dos armários, da própria alma. Sente-se uma quietude a que os forasteiros jamais se poderão habituar, mas que às gentes de cá confunde a mágoa de uma vida tão árdua. Para lá do lintel das portas ergue-se então um vasto mundo de sombras, de alcáceres, de castelos mouriscos, de montanhas, de ecos de batalhas que o tempo não apagou ainda.

De madrugada, não muito longe, aqui em Escañuela, ouve-se o acelerar de uma moto de alta cilindrada. Uma ou duas por vezes semana, este despudorado atravessa as ruas da aldeia e acorda quem tarde se deitou e cedo tem se levantar. Não contente com a velocidade, com o fazê-lo a desoras, com o ruído partido do cano de escape, nunca repete a trajetória nem as noites em que decide apunhalar o silêncio geral.

Na cabeça de Emilio Morales correm pensamentos assassinos. Imagina uma desforra, uma lição brutal, um exemplo para quem desafia o sentido da responsabilidade cívica e abusa da liberdade. Esta moto é todo o seu ódio de estimação. Há momentos em que ela se afasta e outros em que ela se aproxima. Em todos, o cano de escape parece soltar, além de fumo, um longo pernáquio trocista. Emilio perscruta o chiar dos pneus, o furioso cavalgar do motor ao longo das retas de alcatrão aquecido. Não consegue desligar-se desse movimento agressivo e traiçoeiro: mesmo nas madrugadas em que o pária não vem, ele aguarda-o, aguarda ansioso o momento em que o seu descanso seja interrompido pelo sopro da máquina, o momento em que essa vinda maldita termine de vez com a angústia da espera, porque adormecer antes dessa vinda pode significar por ela ser acordado e é esse o seu maior pavor.

Em agosto, porém, o ar pode mudar bruscamente. O ar abafado é substituído num par de horas pelo soprar dos ventos da tempestade. Assiste-se a um formidável fender de relâmpagos desde as camadas mais elevadas da atmosfera, pingos grossos cobrem as gretas do solo e fazem deslizar e transbordar as gorduras do asfalto, o cheiro da terra seca invade os quartos sobreaquecidos. Chamam a este perfume petricor. Há muito que os poetas andaluzes o cantam e anunciam ao mundo, mas as palavras não bastam para exprimir a grandeza deste espetáculo.

Escuta-se o zumbido de uma moto. Ela aproxima-se. O trovão do cano de escape parece querer competir com as forças da natureza. Emilio descarregou a sua praga, e nela o seu rancor. Vem à janela ver o criminoso. As luzes da moto lá estão, um olho vivo no meio da treva e da chuva, monstruosamente idêntico ao do gigante ciclope. Mas subitamente os pneus guincham, não é a derrapagem costumeira, deliberada, provocatória. É mais o estertor de uma manobra imprevista, o som desesperado de um erro de cálculo. Eleva-se o estrondo de uma queda, o replicar cavo e o raspar metálico, durativo, de um embate.

Na Andaluzia o luto tem sempre a dignidade pesada de um tema que não se arquiva.

Na manhã seguinte contam a Emilio os pormenores: o desgraçado teve morte imediata. Sofreu tantos cortes e tão profundos quantos os que a imaginação permita adivinhar. Os railes afiados são uma faca, particularmente se contra eles somos impulsionados.

Emilio Morales rejubila em segredo. Sente que se cumpriu uma espécie de justiça divina, fulminante, atraída quem sabe pelo para-raios das suas preces.

Mas agora tem pesadelos todas as noites. Vê o diabo em pessoa a arpoá-lo com o tridente, a empurrá-lo ao encontro de lâminas atrozes. Vê do outro lado do quarto labaredas altíssimas, cujo sufoco parece persegui-lo das unhas dos pés ao pescoço. Acorda em água, não se sabe aos berros, mas julga que sim.

Aproxima-se da janela aberta e volta a escutar as trevas. O silêncio é total, somente interrompido de quando em vez pelo ladrar dos cães ao longe. .