Em Albitreccia, a meio do vilarejo, numa colina sobre o bosque, ergue-se como uma ilhota de pedra a pequena igreja medieval. Ou o que dela sobrou.
Os séculos despiram-na impiedosamente. Primeiro dos sinos e do ouro litúrgico, depois das imagens ricamente esculpidas em cedro e dos frescos, por fim dos vitrais e dos telhados, das portas e da pia batismal. Os lavradores chegaram a usá-la para guardarem as reses. Agora nem os vadios ali querem entrar. É só um amontoado de granito e tábuas mal pregadas, dispersas pelo chão barrento.
Um professor estrangeiro afirma que na pedra do tímpano, em letras quase apagadas, se lê que foi consagrada no ano de 701 a Santa Luzia de Siracusa. Com efeito, muitos são aqueles que, saindo ou entrando no bosque nos últimos dias de outono ali veem luzes misteriosas. Falam em centenas de velas acesas, ardendo no meio da solidão.
Os céticos admitem que a lua cheia, reluzindo em folhas húmidas da carvalho, criam esse revérbero magnífico. Especialmente quando as neblinas não ocultam inteiramente a paisagem e ampliam o efeito ótico.
Muitos são aqueles que creem que os mortos ali rezam de novo, uma vez por ano, não sabem se sabe se pela sua, se pela nossa salvação.
A igreja é pequena, antiga, no cimo de uma colina. Todo o seu encanto advém justamente destas três características: da sua dimensão modesta, do românico tardio, do modo como domina o vilarejo, mesmo agora, em tempos de prédios, grandes fábricas e armazéns industriais.
Pietro Foragini é um dos cuidadores deste lugarzinho santo. Com paciência, com gosto, com a ajuda de uma colher de trolha ou às vezes de uma faca de cozinha, dedica-se a extirpar as ervas e as hastes das gramíneas do meio das pedras. Elas nascem nas paredes, na boca das gárgulas, no meio do adro, no cimo da cruz, entre as linhas ogivais dos pórticos. São obstinadas, persistentes, ubíquas. O grande orgulho do senhor Foragini é o de garantir que este templo se mantém asseado, sem sinais excessivos do atrevimento herbáceo, da ferrugem, da imundície das pombas. Justamente, o guano é um dos grandes inimigos do granito, tal como urina dos bêbedos ou as sementes que o vento mistral costuma disseminar nos intervalos mais insuspeitos.
O interior da igreja é responsabilidade das mulheres. São elas quem encera o soalho, quem limpa o pó da talha, quem limpa as teias de aranha à bela rosácea na fachada principal, quem espalha óleo de cedro sobre as madeiras, quem tapa e destapa o rosto dos santos, quem cuida dos altares, quem acende e apaga os círios, quem cuida dos linhos e paramentos sacerdotais.
Ele, Pietro Foragini, lubrifica o mecanismo dos sinos, cuida-lhes do bronze e do badalo tonitruante. Duas a três vezes por ano sobe aos telhados, verifica a integridade das telhas e das caleiras, dá pequenas pancadas nalgum cubo de pedra suspeita, estuda-lhe a resposta, avisa o padre Giovanni de anomalias sobre a cupulazinha e sobre a abside. É uma autoridade ali. Ele decide quando é preciso intervir.
Nem sempre o entendimento é fácil. Delimitar a jurisdição de cada um é árduo na Pieve di Santa Maria Assunta. Entre a boa intenção e a boa ação corre um rio de diferenças.
Esta semana, por exemplo, Ornella Sforza travou-se de razões com Pietro Foragini. Discutiram por causa das glicínias. “Sem autorização”, Foragini segou e fez desaparecer perto do cruzeiro toda a latada destas flores lilases. Foi um debate acalorado. As senhoras tinham ficado coléricas.
– Não se faz! – repetia a senhora Sforza, descontrolada, cheia de ódio.
– Ora essa. Era só o que me faltava, ter de pedir licença para limpar o esterco da nossa igreja.
Também há a questão dos vidros. Estão sempre sujos do outro lado. Elas acrescentam os maus fígados de Foragini, que não se importa de martelar, perfurar, lavar a pedra com o compressor, arrastar ferramentas ruidosas pelo campanário e à porta da igreja quando as senhoras estão a ensaiar os salmos. Ele não esquece a voz esganiçada de Ornella, o tom autoritário com que se lhe dirige e lhe dita ordens. Era só o que lhe faltava, aturar a antiga professora, baixar a orelha, obedecer-lhe.
Não sem motivo, exige-se amiúde a voz meiga e apaziguadora do padre Giovanni, sempre pronto a velar pela reconciliação, pelo bom entendimento do seu rebanho.
Quem visita esta igreja no Piemonte e se fecha na penumbra do seu granito, ou se ilumina na beleza dos seus afrescos magníficos, sente a paz, a boa paz herdada dos tempos da cavalaria, dos romeiros, dos homens e mulheres que buscavam a salvação da alma acima de todos os tesouros do mundo. É um bem precioso, raro, quase impossível de explicar.
Não há dúvida que a igreja está impecavelmente conservada. Quem aqui vem não imagina a que preço.
O retábulo (um pequeno painel em três partes, com a Virgem e o Menino ao centro e anjos nos volantes direito e esquerdo) foi descoberto no interior de uma pequena igreja românica de meados do século XIII.
O caruncho absorvera de tal forma a madeira e a pátina as cores e firmeza das santas figuras que a paróquia desistira havia muito desse objeto como se de lixo sagrado se tratasse. Em diversas ocasiões, podia deduzir-se do rol de “baixas” de sucessivos inventários, fora a peça despromovida pela ignorância dos zeladores (especialmente após o terramoto de fevereiro de 1969) a entulho, junto com infindáveis baldes de talha esmagada e vitrais partidos.
Ainda assim, ninguém sabia explicar bem como, o retabulozinho que sofria de carcomas e padecera de gretamentos de calor e mofos de humidades, que padecera da incúria secular dos homens e do sagrado aborrecimento divino, foi salvo para reaparecer na gaveta de um pesado armário de sacristia, embrulhado num pano de estamenha, sem maior cuidado que o não estar exposto ao relento e ao convite displicente dos ratos.
A técnica, Andreza Merino, uma estagiária da capital, pertencente a uma das brigadas móveis, descobriu-o acidentalmente durante uma visita ao norte, quando, no âmbito do seu doutoramento, demandava por uma escultura de São Romão de Antioquia. Ninguém ali se opôs a que levasse ela consigo a impensável relíquia, sobretudo depois da promessa que fez de interceder junto do Ministério para salvar o negligenciadíssimo recheio do templo medieval: os sinos e telhas cambando miseravelmente, o soalho carcomido e rangente, os caixotins e predelas manchados, os altares rachados, a talha sem brilho, os serafins desasados e repletos de úlceras, o Menino Jesus de Praga invadido pela lepra, o coração da Senhora das Dores negro das setes espadas que a ferrugem venceu.
A jovem, calçando luvas de proteção, avaliou e fotografou então cuidadosamente o ícone tresdobrado. Espantou-se da profunda degradação das tábuas, do entalhamento, da pintura. A imagem tripartida aparecia como uma planície de terra árida, repleta de gretas, aqui e além (em crateras terríveis) desprovida já de tinta, semelhante no seu todo a um moribundo repleto de chagas.
Com a ajuda de uma pinça, Andreza retirou os fragmentos avulsos e mal seguros, dispondo-os na mesa de trabalho pela mesma ordem em que surgiam no tabuleiro. Eram como lascas inúteis e insoldáveis. Depois, usando uma sonda, calculou o grau de resistência e fixidez da restante pintura. Raspou meticulosamente, com um bisturi, a base de madeira aonde haveriam de regressar os pedaços soltos, de forma a limpá-la do gesso e dos restos de cola. Larvas fossilizadas de besouro, que urgia remover, haviam formado cavidades. Sobre elas, nas fendas entre as tábuas, sob as finas camadas de madeira pintada, para dentro das monstruosas falhas, injetou uma solução de resina (mais tarde aplicaria outra de solvente ativo). Fez no reverso correr uma trincha embebida num líquido idêntico para saturar os poros e as galerias escavados pelos daninhos insetos. Demorou dias nesta simples operação de reforçar e estabilizar a estrutura do painel.
Depois derramou, sobre as zonas nascidas da decapagem e servindo-se de uma espátula, uma solução esbranquiçada de gesso acrílico. Deixou-a secar e repetiu duas vezes o processo. Só então pôde pincelá-las com uma espécie de goma transparente e, como quem reconstitui um puzzle, devolver ao seu lugar de origem cada pedaço. Em seguida, de molde a pressionar e a reuni-los à madeira original, aplicou sobre películas acamadas de silicone e feltro a ponta de um ferro quente. Tinham passado duas semanas.
Experimentou, seguidamente, em copos graduados de vidro, usando pipetas e cotonetes, teste após teste, a dosagem certa de metiletilcetona para iniciar a limpeza das tintas. Paulatina, maravilhosamente, como um rosto que de súbito se vê iluminado e aquecido pelo sol de uma manhã de março, principiou a renascer nos movimentos cautelosos dos seus dedos, uma Virgem de cabelos loiros e ondulados, coberta por um manto azul esverdeado e uma auréola diáfana, segurando com a mão esquerda Jesus e poisando a direita sobre um livro aberto, esplendorosamente preenchido de linhas e góticas inscrições. O Menino, nédio, rosado, cingido já pela coroa de espinhos que o haveria de atormentar, voltava o rosto sobre a mãe num misto de interrogação e piedade, como se também ele soubesse já que o seu belo rosto jovem (na casta expressão que Botticelli ensinou) teria de enrugar e envelhecer na armadilha do sofrimento que Deus lhe destinava. Era de resto uma cena doméstica, como a mesa e o cesto de coloridos frutos deixava concluir. Depois, aos poucos, a cada movimento circular do algodão e do produto gelatinoso, também aos anjos tutelares (um, à direita, tocando uma pandeireta; outro, à esquerda, soprando para uma flauta de pã) foi restituída a luz primitiva. Merino usou, por fim, um verniz para proteger e separar o cromado primitivo das intervenções que viessem posteriormente a ser feitas.
Com paciência, com amor, a jovem técnica passou ao alto relevo envolvente, usando todos os instrumentos e materiais de douradura de que pôde servir-se. Com um coxim cortou pequenos segmentos de folhas de ouro e com uma paleta fê-los cair sobre os rebordos. Depois, com um pincel, servindo-se de uma pequena tina onde misturara pigmentos diversos de mica, deslizou sobre os rebordos restaurando o rútilo primitivo. O brilho era agora tão belo e tão veemente que Merino confirmou a sua suspeita: a peça que tinha em mãos seguia a escola de Gregório Lopes, em tudo similar ao óleo que o artista deixou na charola de um dos altares do Convento de Tomar. Era uma obra-prima!
Faltava ainda, contudo, recuperar as perdas na imagem, os pedaços que o tempo fizera desaparecer. Andreza colocou o retábulo sobre um cavalete e recorrendo aos conhecimentos do tratteggio principiou, repetindo incansavelmente as tentativas de seleção cromática, a preencher os lapsos, a completar os traços interrompidos, a tornar una, prístina e perfeita a cena retratada.
Quando ao cabo de sete meses deu por concluído o restauro, aplicados os produtos finais de fixação e proteção da madeira e das tintas, designadamente um verniz ultravioleta 292 para estabilização do anverso, deixou-se invadir pelo sentimento de humildade e gratidão de que tanto falava o seu orientador no Departamento de Conservação e Restauro.
Documentou profusamente o trabalho feito. Depois viajou de novo ao norte do país. Na paróquia discutiu-se muito o lugar onde exibir o tríptico. O padre desconfiou dos ladrões, o sacristão suspeitou do telhado ameaçador, as beatas lamentaram a pequenez física do retábulo, toda a gente se esqueceu de agradecer a Andreza Merino, a quem de resto, se sobejava o talento, o devia a Nosso Senhor.