Quando os eternos nos morrem

Herberto Helder (Alfredo Cunha)
Fotografia de Alfredo Cunha

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«A morte – diz o canto – é o amor enorme.» Herberto Helder tinha 33 anos quando publicou este verso (em Poemacto) e é irónico que essa mesma morte, ou outra morte qualquer, tenha finalmente levado um tal poeta. Essa mesma morte, ou outra morte qualquer, foi anunciada quatro dias mais tarde a Tomas Tranströmer ‒ se é possível que um poeta morra! Fica-me de memória esta sua meditação de 1983, deixada no poema «Bilhete-Postal Negro»: «Acontece, a meio da vida, a morte bater-nos à porta / e tomar-nos as medidas. Essa visita é esquecida, / e a vida continua. O fato, porém, esse / é cosido em silêncio.» (cito a tradução de Alexandre Pastor).

Quis o destino que assim fosse. Que se falasse de morte, no sentido puro que a morte pode ter, na estação em que a paisagem se enche com o branco imaculado das magnólias, com o matizado azul do agapanto, com o vermelho da amarílis, com os salpicos da serralha e das pascoinhas, com o verde da hortelã e do funcho, com o amarelo veemente do tojo. O espaço é enxuto, luminoso, celebrante. E, contudo, a morte anda-nos na boca.

É sabido o modo como Herberto Helder (nascido no Funchal, em novembro de 1930) e Tomas Tranströmer (nascido em Estocolmo, a 15 de abril de 1931) viveram discretamente, distanciados de certo ruído que lhes obscurecesse a visão do mundo, fiéis à servidão da metáfora com que definiram tão profundamente o ethos e o pathos humanos. Como tão bem notou Pessoa/ Ricardo Reis, «Cada um cumpre o destino que lhe cumpre», e eles, Herberto e Tomas, cumpriram-no, na certeza, na convicção inabalável de que a poesia fosse esse destino.

Dir-se-ia inevitável o conhecimento destes dois poetas. A muitos de nós, leitores-admiradores do seu (diferentíssimo) espaço criativo, tal encontro deu-se no universitário, em curtas seletas e traduções extraídas do Jornal de Letras, em edições muito folheadas e quase sempre sublinhadas por frenéticos lápis de discípulo. De Herberto havia a Poesia Toda, milagre de edição de que nunca consegui um exemplar! De Tomas Tranströmer havia pouca coisa. Inesquecível, porém, o contacto com a pequena recolha que nos era dada em Vinte e Um Poetas Suecos, de que fiz nessa altura, criminosamente, uma edição policopiada. Beleza plástica e contenção lírica, expressão do pormenor, domínio do inefável, brevidade e sentido de humor, eis como me chegou a poesia do psicólogo Tranströmer.

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AQUELE QUE ACORDOU COM O CANTO SOBRE OS TELHADOS

Manhã, chuva de Maio. A cidade está calma
como uma cabana. Ruas tranquilas. No céu
troa azul-verde um motor de avião ‒ a janela está aberta.
O sonho onde se dorme de membros estendidos
torna-se transparente. Move-se, tateia
pelos instrumentos da visão ‒ quase no espaço.

(Tradução de Teresa Salema, Vega)

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Não me recordo do primeiro poema que li de Herberto Helder. Lembro-me do estremecimento provocado pelo poema que principiava pelos versos «São claras as crianças como candeias sem vento, / seu coração quebra o mundo cegamente. / E eu fico a surpreendê-las, embebido no meu poema, / pelo terror dos dias, quando / em sua alma os parques são maiores e as águas turvas param / junto à eternidade.» (sexto andamento do poema «Elegia Múltipla» de A Colher na Boca). Com fervor quase religioso, como tomado pela mesma devoção com que leem alguns os seus guias místicos, fiz-me acompanhar na última década pelo volume precioso Ou O Poema Contínuo. Li-o integralmente vezes incontáveis, certo de que vive ali o génio e o sortilégio do melhor que se escreveu em língua portuguesa em toda a sua já vasta história.

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Lenha ‒ e a extracção de pequenas astros,
áscuas. De poro a poro,
os electrões das corolas. Somente no mais escuro
não há nada. No escuro a carne é um buraco
invisual, e o que arde é o pão
no estômago, e nos brônquios
cortadamente
o ar. E o carbono devora sono a sono a inocência
das imagens. O que toca o órgão mais profundo
do sopro não é a música
nem chama: apenas um dedo de mármore entre
as têmporas como
uma bala. E enquanto pontas de fogo marcam
a boca, morremos afogados
no espelho, no rosto. E se a loucura um instante
levanta as pálpebras.
A grande válvula do corpo.
A escuridão, a terra.

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Tomas Tranströmer (Ulla Montan)
Fotografia de Ulla Montan

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No verão de 2012 senti um fervor idêntico, quando principiei a ler os Cinquenta Poemas de Tranströmer editados pela Relógio d’Água. Não há na poesia do sueco o ritmo torrencial, encantatório, melódico dos versos de Herberto. Há, ainda assim, a mesma subtileza dos silogismos, o poder da imagem, a afirmação da palavra poética num mundo dolorosa, progressivamente mais prosaico. Há a beleza escultural, marmórea, luminosa de verdades que, não raro nos escapam, e que representam o privilégio da revelação e da sensibilidade poéticas.

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FURACÃO ISLANDÊS

Não um terramoto, mas um sismo celeste. Turner, bem amarrado, podia ter pintado aquilo. Ainda há pouco, uma luva solitária passou por mim redemoinhando a muitos quilómetros de distância da sua mão. Lutando contra o vento, tenho de chegar à casa que está do outro lado do campo. Como uma bandeira, adejo no furacão. Sou radiografado, o esqueleto entrega o seu pedido de demissão. O pânico aumenta enquanto avanço aos ziguezagues, vou a pique, vou a pique, acabarei por me afogar em terra firme. Que pesado se torna tudo o que tenho de arrastar, o que será para uma borboleta rebocar um batelão! Chego, por fim, ao destino. Um último combate com a porta. Já entrei, já entrei! Agora estou atrás da enorme janela envidraçada. Que estranha e fantástica invenção não é o vidro ‒ estar tão perto e não ser afetado… Lá fora, em debandada pelo campo de lava, uma horda de corredores, vestes insufladas, gigantes e transparentes. Mas eu já não esvoaço. Sentado atrás do vidro, quieto, sou o meu próprio retrato.

(Tradução de Alexandre Pastor, Relógio d’ Água)

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É quase manhã quando escrevo estas palavras. O trissar das andorinhas e dos estorninhos enche o espaço. Penso com o espanto de um mortal na complexa roda do tempo. Nos poetas que nos morrem e no quanto lhes devemos. No que dever significa e talvez nem saibamos. Na imprecisão com que se diz morreu o poeta Herberto Helder. Na devastação de se pensar que o poeta Tomas Tranströmer desapareceu. Porque um e outro deixaram seguidores, vagos epígonos, amantes, sementes e metáforas, luz. E talvez pudesse confessar o quanto um e outro trouxeram para dentro do meu coração por vezes despedaçado e maltratado. Ou talvez devesse explicar que a poesia de um e de outro enche uma pequena parte das minhas estantes de poesia, aonde regresso amiúde, como quem pretende converter-se a uma melhor humanidade. Ou talvez pense (pensando melhor) que talvez os poetas morram mesmo e que a morte de um poeta seja talvez a morte lenta da própria humanidade. Talvez pense que afinal não são tantos assim os que se importam e os que têm estantes de poesia em casa. Talvez pense que poucos serão os que regressam a certos livros de poesia como quem regressa a uma fé, ou a uma cela, ou a um certo silêncio impermeável. Talvez a humanidade tenha, finalmente, deixado os seus poetas morrer. E queira morrer com eles e sem eles, numa infinita e incapaz solidão.

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O que é um grande poeta?

Fotografia de Aaron Burden

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O que é um grande poeta? Sim, um poeta, digamos, da dimensão de Homero? De Safo? De Petrarca? De Shakespeare? De Baudelaire? De Breton? De Celan? De Herberto Helder? O que é preciso em rigor para se ser um?

Um professor de literatura garantia há não muitos anos que a comparação de grandezas, fosse entre poetas, impérios ou galáxias, depende muito mais do nível de satisfação sexual dos observadores do que da massa, densidade, tamanho ou longevidade dos observados. A frase chocou. Uma vez, duas, três vezes, sempre. Porque este professor de literatura parecia não levar nada a sério, mesmo quando publicava artigos capazes de rivalizar em erudição e hermetismo com Husserl, Russell, ou Georges Steiner. «A grandeza ou a pequenez é, antes de mais, coisa para se averiguar na casa de banho [sic], com a ajuda de uma vulgar régua de desenho…» Extravagâncias…

Não que não existisse por ali uma pontinha de génio, como anotaria Eça de Queirós. Não que não houvesse mesmo um fundo de verdade, uma frincha para a luz, digamos, porque havia. Havia até uma resposta para essa malsinada pergunta que me ocupa o título da crónica e a cabeça, não agora, mas desde os vinte anos. Porque alguma coisa subsiste de inútil na comparação de factos, de factos que só seriam efetivamente comparáveis num universo regular e coerente. E o nosso é tudo menos regular e coerente. Menos ainda eterno. Um dia destes as estrelas apagam-se, as galáxias esgarçam-se, o Big Bang perde a sua imensurável força, encolhe (ou será que explode? Ou que implode?) e cá se acabam as comparações…

Mas, mas (e insisto no mas), um leitor de poesia sabe distinguir o poema que agrada do poema que faz tremer as mãos. Sabe diferenciar o poeta bom, que se saiu (afinal) bem com a aguardente de medronho, do poeta que nos leva às lágrimas. Não falo dessas lágrimas sujas de rímel e pó de arroz, mas daquelas que verteu Mecenas e Otávio César Augusto: lágrimas de espanto. De incrédulo reconhecimento da perfeição. De agradecimento!

O leitor de poesia sabe comover-se com a Ilíada. Uma epopeia, uma batalha que decorreu (se é que alguma vez teve realmente lugar) algures na costa turca, onde os gregos (ou os seus antepassados) semeavam uma zona de influência. Homens matam, homens morrem, uns heroica, outros covardemente. Outros sobrevivem. Um, o mais singular de todos, volta as costas à querela, furioso com o chefe da sua hoste, o pastor dos homens, que o maltratou… O leitor de poesia vê que os deuses conspiram, (uns por despeito, outros por amor), vê que as mulheres e filhos dos troianos se assustam com o fragor das sucessivas batalhas. Que esse terror é ainda o nosso terror, que essas mães e essas crianças são ainda as nossas e foram as de sempre, em toda a história ensopada de sangue, que é a nossa!

Em contrapartida, o leitor cansa-se com a interminável subida das almas ao Purgatório de Dante. Sente-se torturado pelos maneirismos de Gôngora, nos floridos de Boileau, com as exasperações românticas de Byron. E coça a cabeça (por não saber muito bem o que achar deles) ao ler alguns poemas do Pessoa ortónimo, que são muito alarido inteletual, muito enfatuamento estilístico, um não-ir-a-lado-nenhum, como um cachorro em círculos, abocanhando a cauda…

Porque a mesma infinita embriaguez que nos faz delirar lendo em voz alta ou em silêncio, as grandes odes de Walt Whitman, Álvaro de Campos ou André Breton, a mesma corrente elétrica que percorre os textos megalómanos de Ruy Belo, a mesma satisfação que se sente no final dos inteligentes poemas de Wisława Szymborska ou Tomas Tranströmer, a mesma finura e delicadeza que entrelaça os versos de Elaine Feinstein, a mesma densa metáfora de Salah Stétié, a mesma musicalidade de Fiama Hasse Pais Brandão – particularmente na última fase –, é a que nos faz amadurecer a razão para a grande poesia de Píndaro, Anacreonte ou Alceu, para o poder de concisão (e precisão) da poesia japonesa, para o gosto pela luz crepuscular (primeva versão da nossa saudade) da poesia árabe, para a vastidão filosófica da poesia persa, para a metáfora metapoética da poesia chinesa (a que primeiro denotou um amor narcísico pelo desenho gráfico), para a violência dos elementos da poesia escandinava, etc…

A questão mexe por dentro, como um pinto dentro do ovo: o que é um grande poeta? O que distingue um fundador de um imitador? Um poeta capaz de atingir a essência de um poetastro que a circunda eternamente? Um Homero de um Horácio? (Porque Horácio nunca me seduziu, nem mesmo na famigerada Epístola aos Pisões) O que separa a água consoladora de um poema de Lorca, Auden ou Jabès da água tonta, inquinada, ácida de tantos e tantas que se dedicam a multiplicar títulos, a elogiar perversões, a gastar ideias, a alimentar mediocridade, a repetir, repetir, repetir…

O que é, em suma, um grande poeta? Um poeta do clube restrito de Omar Khayyām, JalāladDīn Rūmī, Pierre de Ronsard, Arthur Rimbaud, Rainer Maria Rilke, T. S. Eliot ou Sylvia Plath? Um que não desmerecesse a companhia de Kavafis, Pessoa ou Miłosz?

«Uma bizantinice, uma questão de lana caprina!» garantia o reputado professor de literatura…

Mesmo assim, quem deixa de o perguntar?

Não será um grande poeta, aquele que ocupa a estante principal da nossa biblioteca? Aquele a quem conhecemos composições inteiras de cor, a quem citamos o vulnerável equilíbrio de uma verdade incrustada nas suas palavras? Não será um grande poeta, aquele que, por (in)voluntário incitamento, por seu exemplo, por sua inspiração, por contagiante mestria, gera outros grandes poetas? Não será aquele que, pretendendo-o ou não, acaba por produzir palavras, textos, ideias que nos servem de referência – como de referência são os Evangelhos e o Corão, a bondade universal, a palavra ahimsa e o nirvana, o amor de uma mãe, a limpidez da água numa nascente, ou a fraternidade entre todas as criaturas no nosso mundo?

Um grande poeta é uma resposta, provavelmente individual, provavelmente consensual, ao espaço mais fundo que a consciência, a fé, a memória e o sonho demoraram a construir em conjunto no nosso espírito! Um grande poeta ocupa o lugar vazio que a vida sublimemente cava com o passar dos anos. E só ele pode ocupá-lo, como só ele pode desocupá-lo.

Quando lemos no Canto VI da Ilíada o desespero de Andrómaca, o susto de Astíanax, a réplica enternecedora de Heitor, é precisamente esse vazio o que nos permite absorver cada pedaço da cena e amar cada uma das belas palavras com que Homero nos solda ao sofrimento das personagens: («Homem maravilhoso, é a tua coragem que te matará! / Nem te compadeces desta criança pequena nem de mim, / desafortunada, que depressa serei a tua viúva.»; («Todas essas coisas, mulher, me preocupam; mas muito eu me / envergonharia dos Troianos de longos vestidos, / se tal como um covarde me mantivesse longe da guerra.»

Quando se lê ao longo dos vinte e quatro maravilhosos cantos deste poema símiles, sentenças, imagens, metáforas semelhantes a «palavras apetrechadas de asas», «a morte chega a quem nada faz e muito alcança», «a escuridão cobriu os olhos», «Por toda a terra espalhava a Aurora o seu manto de açafrão», «Assim como a linhagem das folhas, assim é a dos homens.», é ainda a sublime poesia a que nos imprime a mais viva emoção de um encontro: o que une a gramática à prosódia, a sabedoria e a transfiguração estética.

Colecionei com os anos incontáveis volumes de poesia de todos os tempos e lugares. Com eles forro o meu escritório e o meu quarto, procurando resposta a essa que julgo ser uma questão fundamental. Porque saber o que é um grande poeta é ser capaz de reconhecer o que é a poesia na sua dimensão mais pura. Leio-a todos os dias. Leio-a desde sempre. E, com Simone Weil, creio bem que nenhum poema se superiorizou, ainda, ao canto homérico, particularmente ao de Ílion.

Assim sendo, um grande poeta será sempre o mais parecido que houver de ser de Homero. O mais parecido que houver de ser da espantosa vivacidade da Ilíada, da coexistência de carnificina e amor, sublime poético e calão, arcaísmos e uma notável intemporalidade na leitura da condição humana…

Porque é a intemporalidade a que arbitra a questão. E é essa intemporalidade de Homero (seja ele um único homem, ou vários) a mais espantosa resistência e a melhor prova de o primeiro amor é o melhor amor de todos!

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