
.
A vida em Jan Meyen é assombrosamente dura.
Ao longo dos 365 invernos do ano, espera-se a melhor oportunidade para fotografar a bela linha azul turquesa da costa e as calotas que cobrem quase por completo o território da ilha.
Ou para escalar o Beereberg e observar a fosforescência hipnótica do firmamento noturno, varado de ponta a ponta pelas luzes boreais.
Ou para rezar.
Aqui, ou além nas ilhotas de Francisco José, a leste de Svalbard, ou na Gronelândia, mais a oeste ainda, a vida é um apontamento delicado. Os gestos, mesmo os banais, são um meio de superação desesperado.
Raras vezes pernoitam cá forasteiros. A palavra forasteiros é, ela própria, insidiosa, divertida, extravagante até. Os ursos polares e as foras diriam, se pudessem, que aqui indígena é somente o gelo. Ou talvez nem ele.
Aqui, neste acampamento de Olonkinbyen, reza-se.
Reza-se entre pensamentos adormecidos pelo frio. Reza-se por causa da cruz que pregaram numa das paredes da sala aquecida, onde todos os dezoito funcionários da Coroa se agregam duas vezes por dia.
Eles persignam-se ao vê-la, é um instinto.
Quando o vento glaciar queima o rosto e seca as lágrimas, quando no meio das tempestades de neve o som dos passos é amortecido pelo grande silêncio que lamina os ouvidos, Deus é um assunto muito sério:
Niels e Fiona juram que O escutaram em 2004, uma hora antes de perderem os sentidos.
Magnus, que os resgatou debaixo de uma chuva de salpicos aguçados, jura que Deus não existe e enfurece-se se lhe dizem que foi Ele quem o guiou até aos companheiros em perigo.
“Foram os meus três cães quem vos salvaram” repete sem entusiasmo.
Em Jan Meyen, Deus é uma voz longínqua.
A correnteza que desce do Ártico atemoriza todos os colossos. Um café quente, casacos, luvas e botas adequadas, mais a esperteza dos cães e a porcaria da aparelhagem anacrónica são tudo aquilo de que se precisa. Afora os víveres que o helicóptero atira de quando em quando.
Aqui todos os superlativos se assemelham a um desperdício.
Niels e Fiona são de opinião que Deus assume as formas mais extraordinárias. E que nos pormenores se escondem as grandes verdades do universo.
“Até o som do vento é diferente quando O escutamos. Até o gelo estremece de outro modo quando os Seus pés pisam aqui, ao lado dos nossos.”
Mas não existe consenso.
Linnea, a chefe da estação meteorológica – uma moderadora, portanto –, alega que nem valeria de muito negociar com pessoas tão diferentes. Não há dois seres humanos idênticos, ainda que gerados e nascidos nas exatíssimas mesmíssimas condições. E a questão de Deus é a grande não-questão de todos os tempos:
“Que importa discutir a fé, a maior das nossas reservas pessoais?”
Nos seus mapas há cores fosforescentes, círculos e sublinhados confusos, asteriscos, flechas, números que só ele parece entender.
Porém, essa linguagem é tradutível: o rigor ou a falta dele pode gerar cataclismos. O reino da Noruega conta com o empenho destas mulheres e destes homens: Niels, Fiona, Magnus, Knud, Mette, Jakob, Ada, Henrik, Olav, Markus, Vilde, Alinor, Iben, Tuva, Hedvig, Sigrid, Sverre e, acima deles, ela, a líder do grupo, sabem que domar o frio, a solidão e as próprias angústias constitui um feito de que o mundo não se dá conta.
Aqui, em Jan Meyen, a vida põe-se contra si própria. Todos os detalhes contam.
Nenhum dos dezoito que habitam este pequeno mundo imenso voltará ao continente como veio. Para quê gastar a cabeça com questões tão fundamentais?
Talvez aqui a cruz seja um sinal de civilização e não de fé. “Mas que importa isso?”, modera Linnea, entre encapuzados enchumaçados, acabados de chegar, ou prontos a enfrentar, as temperaturas mais baixas do planeta.
“Deus é muito mais do que entendimento. É a cama onde esperamos deitar-nos…”