Vilhelm Hammershøi, Partículas de pó a dançar nos raios de sol (1900)
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O tamanho da luz mede-se nas paredes, nestas aqui em Paris, nas de um iglô em Etah, na Gronelândia, ou nas grutas empoeiradas de Qumran. O desenho da luz alastra e escorre, avança e reflui, às tantas eclipsa-se entre volumes de uma natureza nem sempre compreensível. E é então uma solidão, uma devastação, um horror de arrepios onde se cai como num sonho, como num poço, como na morte.
O humorista Alphonse Allais medita no diâmetro silencioso da luz nessa manhã de 1889. Da luz solar intermitente, hiemal, luz levíssima que entra pelos vidrilhos da sala e se põe a fazer caretas iridescentes no estuque, nas portas, na porção branca da alvenaria que o grande armário de ébano não tapou. Não lhe ocorre uma única linha, não lhe ocorre uma única razão para começar um novo conto, não lhe ocorre sequer que mais de um século depois, noutro país, outro indivíduo pense exatamente o mesmo sobre a luz e nela reflita indecisamente, sem vontade de rir ou de fazer rir, completamente convencido de que a literatura – para renascer – precisaria da honestidade dessa luz, da boa luz que gela na Gronelândia e se sacode no pó ardente dos desertos do Mar Morto.
É incontestavelmente belo o rosto da luz.
Ele, ela, amplia os batimentos cardíacos, enormiza o poder das palavras (mesmo, ou sobretudo, as que não são ditas), aquece a natureza monstruosa das formas informes, atrai os gatos, faz abrir mais os olhos e os poros, dita as leis, se não as leis de Deus, as do cosmos.
O escritor Alphonse Allais bebe um porto. Prepara, como um lagarto consolado, uma folha de papel. Talvez haja descoberto a ponta da agulha por que tanto procurou toda a manhã. Entre as palavras desenhadas há, igualmente, acometimentos de um sol longínquo. Escrever é costurar com a luz o pano imóvel do vazio. A bem dizer não lhe importa nada. Importa-lhe tudo.
Ao longo dos 365 invernos do ano, espera-se a melhor oportunidade para fotografar a bela linha azul turquesa da costa e as calotas que cobrem quase por completo o território da ilha.
Ou para escalar o Beereberg e observar a fosforescência hipnótica do firmamento noturno, varado de ponta a ponta pelas luzes boreais.
Ou para rezar.
Aqui, ou além nas ilhotas de Francisco José, a leste de Svalbard, ou na Gronelândia, mais a oeste ainda, a vida é um apontamento delicado. Os gestos, mesmo os banais, são um meio de superação desesperado.
Raras vezes pernoitam cá forasteiros. A palavra forasteiros é, ela própria, insidiosa, divertida, extravagante até. Os ursos polares e as focas diriam, se pudessem, que aqui indígena é somente o gelo. Ou talvez nem ele.
Aqui, neste acampamento de Olonkinbyen, reza-se.
Reza-se entre pensamentos adormecidos pelo frio. Reza-se por causa da cruz que pregaram numa das paredes da sala aquecida, onde todos os dezoito funcionários da Coroa se agregam duas vezes por dia.
Eles persignam-se ao vê-la, é um instinto.
Quando o vento glaciar queima o rosto e seca as lágrimas, quando no meio das tempestades de neve o som dos passos é amortecido pelo grande silêncio que lamina os ouvidos, Deus é um assunto muito sério:
Niels e Fiona juram que O escutaram em 2004, uma hora antes de perderem os sentidos.
Magnus, que os resgatou debaixo de uma chuva de salpicos aguçados, jura que Deus não existe e enfurece-se se lhe dizem que foi Ele quem o guiou até aos companheiros em perigo.
«Foram os meus três cães quem vos salvaram» repete sem entusiasmo.
Em Jan Meyen, Deus é uma voz longínqua.
A correnteza que desce do Ártico atemoriza todos os colossos. Um café quente, casacos, luvas e botas adequadas, mais a esperteza dos cães e a porcaria da aparelhagem anacrónica são tudo aquilo de que se precisa. Afora os víveres que o helicóptero atira de quando em quando.
Aqui todos os superlativos se assemelham a um desperdício.
Niels e Fiona são de opinião que Deus assume as formas mais extraordinárias. E que nos pormenores se escondem as grandes verdades do universo.
«Até o som do vento é diferente quando O escutamos. Até o gelo estremece de outro modo quando os Seus pés pisam aqui, ao lado dos nossos.»
Mas não existe consenso.
Linnea, a chefe da estação meteorológica – uma moderadora, portanto –, alega que nem valeria de muito negociar com pessoas tão diferentes. Não há dois seres humanos idênticos, ainda que gerados e nascidos nas exatíssimas mesmíssimas condições. E a questão de Deus é a grande não-questão de todos os tempos:
«Que importa discutir a fé, a maior das nossas reservas pessoais?»
Nos seus mapas há cores fosforescentes, círculos e sublinhados confusos, asteriscos, flechas, números que só ele parece entender.
Porém, essa linguagem é tradutível: o rigor ou a falta dele pode gerar cataclismos. O reino da Noruega conta com o empenho destas mulheres e destes homens: Niels, Fiona, Magnus, Knud, Mette, Jakob, Ada, Henrik, Olav, Markus, Vilde, Alinor, Iben, Tuva, Hedvig, Sigrid, Sverre e, acima deles, ela, a líder do grupo, sabem que domar o frio, a solidão e as próprias angústias constitui um feito de que o mundo não se dá conta.
Aqui, em Jan Meyen, a vida põe-se contra si própria. Todos os detalhes contam.
Nenhum dos dezoito que habitam este pequeno mundo imenso voltará ao continente como veio. Para quê gastar a cabeça com questões tão fundamentais?
Talvez aqui a cruz seja um sinal de civilização e não de fé. «Mas que importa isso?», modera Linnea, entre encapuzados enchumaçados, acabados de chegar, ou prontos a enfrentar, as temperaturas mais baixas do planeta.
«Deus é muito mais do que entendimento. É a cama onde esperamos deitar-nos…».