O CAMINHO

dariosastre
Fotografia: dariosastre

 

Junto à costa portuguesa, nos antiquíssimos lugares onde mar e terra disputam eternamente cada milímetro de espaço, convergem belos caminhos luminosos ao longo dos quais, especialmente nos meses de verão, avançam centenas de peregrinos rumo a Compostela.

Não deixa de surpreender-nos essa visão do caminhante, não raro sozinho, bordão em riste, mochila pesada às costas, chapéu na cabeça, botas ou ténis nos pés, misturando-se aqui e além com a multidão de banhistas que vai descendo às praias, comendo gelado, espreguiçando-se nas incontáveis esplanadas que povoam o litoral.

Karen viajou da pequena cidade de Ålbaek, no norte da Dinamarca, para o Algarve, no sul de Portugal. Depois de um curto fim de semana em casa de amigos, subiu de comboio até ao Porto, a partir de cuja catedral iniciou o percurso atlântico que lhe faltava cumprir. É uma professora de línguas, especialista em idiomas raros e dialetos ameaçados, como o feroês, o emiliano-romanholo, o valão, o frísio, o iídiche, o gaélico, o romani ou o galego.

Há muito que a impressiona a língua do noroeste peninsular. Na sua húmil opinião, galegos e portugueses deviam inteirar-se do muito que possuem em comum e reaproximar-se. Não há muito publicou um artigo onde dava conta da sua concordância com as correntes filológicas mais modernas, segundo as quais «A língua galega deu origem à portuguesa e a língua portuguesa, filha ingrata, renegou a maternidade, fingindo-se fruto de outro parto».

Para si, esta variante do Caminho é mais do que um trilho medieval. É como atravessar o cerne de uma unidade antiga que continua a existir, tanto linguística como culturalmente, visto que para si para Portugal e Galiza são as duas metades de um mesmo pulsar ancestral, céltico, romanizado, distinto do modo de ser e do modo de pensar da restante Ibéria.

Uma das maiores conquistas da vida de Karen é o prazer de calcorrear a Europa e de se inteirar das maravilhas que o tempo não apagou inteiramente.

Esta manhã, por exemplo, um pouco antes de percorrer um passadiço entre cinco magníficos moinhos de pedra, viu uma mulher idosa puxar um pesado carrinho repleto de sargaço. E presenciou um pouco adiante à chegada de coloridos pequenos barcos, que (atrelados a um trator) iam escalando uma poderosa rampa até a uma lota, onde deixaram a sua pescaria confusa, no meio de uma nuvem de gaivotas e mulheres vestidas de negro.

Karen penetra agora numa igrejinha bem no centro de uma cidade ou vila, que lhe chamou a atenção pelo misto de casas de épocas diferentes, pela pacatez e limpeza das ruas, pelo número de cafés e lojas que se seguem uns aos outros, de portas tranquilamente abertas e todas com o franciscano Antonio (a que os de cá chamam de Lisboa e em Itália Il Santo di Padova) encimando prateleiras, carregando o Menino num braço, no outro os Evangelhos, em toda a sua pessoa carregando a esperança de sucesso e de bons negócios dos comerciantes.

A igreja onde entrou é realmente minúscula. Vem aqui carimbar a sua credencial, orar num templo católico na fé luterana em que foi ensinada, confirmar as informações que constam no seu guia. Karen observa o altar-mor, ricamente adornado com motivos florais, os altares secundários (de Nossa Senhora das Dores, trespassada por sete espadas agudas, do Cristo agónico, vestido de roxo, arrastando a cruz em que há de ser supliciado), os arcos, o púlpito, o brasão com as armas de Portugal, os caixotões no cimo, a capela lateral, construída (segundo apurou) em honra do Senhor dos Mareantes e em cujo teto estão pintados os doze profetas messiânicos do Antigo Testamento.

Causa-lhe desconforto esta profusão de santos, cristos, virgens, profetas, talha dourada, azulejos e pinturas contrastante com a severidade do chão lajeado, dos bancos de madeira e mesmo com o coro-alto. Choca-lhe estas esculturas barrocas, cheias de uma dor e de uma piedade absortas e postiças. Ao menos, a estátua de São Tiago é neutra: o apóstolo segura o seu cajado, a sua cabaça, a sua concha, o seu manto, o seu chapéu dobrado com a vieira estampada, a sua escarcela, sem enfatuamento, como embalsamado no pasmo de que por sua causa venham novos e velhos de todo o mundo percorrer, como esta mulher nórdica, as insondáveis veredas que conduzem às suas relíquias, esquecendo que deveriam conduzir antes ao Altíssimo.

Na primeira fila está um homem ajoelhado. Karen afirma nele o olhar, surpreendida de nele não ter reparado antes. Detém-se instintivamente, receando perturbar com o som dos seus passos o momento religioso. Ninguém deve interromper o diálogo de um crente com o seu Deus. É um homem de meia-idade, não se saberá precisar-lhe a idade, talvez trinta e muitos, talvez quarenta e poucos. Não possui os traços de um cristão vulgar, pois se assemelha a um qualquer homem citadino no vestir, no corte de cabelo, nas feições secularizadas e arrogantes. Nas mãos segura um mistério, um desses fios de contas que lembram um terço mais curto ou a japamala dos budistas. É notável que não esboce qualquer movimento com os lábios ou com os olhos. Os dedos tocam as pedras, mas quase não se vê girar o objeto, denotando ausência de pressa, quem sabe uma convicta conversa com o Além.

O passaporte está carimbado. Karen deve tingi-lo duas vezes por dia até ao término da sua jornada, a duzentos e dezassete quilómetros a nor-noroeste, ou se preferirmos a cinco dias de viagem.

Abandona a igrejinha pensativa. Não lhe sai do pensamento a ideia de que rezar é um caminho interior complexo. À medida que se percebe o quanto é fútil mostrar, mais lhe parece necessário esconder. Ao longo dos séculos, milhões de peregrinos (reis e rainhas incluídos) chegaram à mesma conclusão: o Caminho de Santiago aprende-se muito devagar, não raro ensanguentando os pés, muitas vezes ferindo o orgulho.

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