A Grande Onda

Katsushika Hokusai, A Grande Onda de Kanagawa, c. 1830
Katsushika Hokusai, A Grande Onda de Kanagawa, c. 1830

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A GRANDE ONDA

Muitas vezes ocorre sermos surpreendidos por uma espécie de fadiga que pulveriza tudo aquilo de que gostamos e que parece ceifar pela raiz o tronco das nossas emoções. Sentimo-nos cambalear por dentro, ébrios de uma paralisia implacável, sonâmbulos de uma morta temporária, derribados por aquilo a que os anciãos chamam de fastio, ou os poetas de acídia, aquilo a os psiquiatras chamam de astenia ou vulgar, indiferenciadamente, desgosto, depressão, tédio.

Quando somos tragados por essa onda – e é impossível não evocar aqui aquela que Hokusai pintou, engolindo as pobres barcaças dos pescadores de Kanagawa – resta-nos muito pouco, praticamente nada, como se perdurássemos numa existência de cinzas e de silêncio.

Acontece, no entanto, sobrarem na grande viagem dos dias e dos anos alguns farrapos de milagres. Depois da fadiga, do marasmo, da paralisia, sobrevém sempre uma época de brilhantes aberturas da alma. Reacende-se nela, tal como uma chama que se aviva nos carvões mal apagados de uma lareira, o sentido da existência, o fio das palavras, o lampejo da alegria. É o tempo mais fascinante da nossa vida, aquele em que se opera a redescoberta do Eu e da Fé.

04.11.2024

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Logótipo Oficial 2024

O canto do café

Fotografia de Natalia Ciobanu
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Gostava daquele canto do café, em cujas janelas podia ver o encontro do mar e do rio. Gostava de sentar-se na mesma mesa, na mesma posição, com a chávena entre os dedos, à espera que ela chegasse.

Vira-a uma vez havia quase um ano. Desde então sonhou todas as noites com a possibilidade de voltar a trocar o olhar com ela.

Esse dia não chegava. Por isso, para melhor se alimentar da esperança, sentava-se naquele sítio, espreitava o modo como a ondulação do rio se entregava ao mar, lia poemas, escutava conversas, tornou-se íntimo dos empregados e de alguns clientes.

Uma tarde, quando entrou, deu de caras com ela. Trajava de negro da cabeça aos pés. Reparou como tinha os olhos envelhecidos e como em volta deles o rosto murchara. Não era bonita já, nem sequer atraente.

Sentiu-se atordoado. Aquele lugar pareceu-lhe demasiado pequeno, cheio de sombra, bolorento. Asfixiava. Levantou-se e saiu sem a olhar. Nunca mais ali voltou.

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Mãe

Mãe
Fotografia de Tatyana Tomsickova

A rapariguinha estugou o passo. Não demoraria a chuva. Era uma tarde estranha, uma rua comprida, uma gente de rosto frio. De quando em quando, sempre que a acometia ao de leve uma suspeita, uma voz mais alta, uma ameaça, acariciava o ventre: bendito o fruto que ali devagar, desapressada, maravilhosamente, crescia.

A rapariguinha levava as golas do sobretudo erguidas, a bolsa a tiracolo, o coração aos pulos. Queria chegar a casa, descalçar os sapatos, abrigar-se no seu canto, sentir o aconchego das paredes e do silêncio, ser tocada pelo pulsar dos objetos conhecidos. Havia muito de umbilical ali: uma promessa de conforto, uma sensação de perenidade e de paz, uma resistência contra tudo e contra todos. Era dentro dela que gostava de pensar, de sonhar o futuro, de acalentar o rebento por nascer.

A rapariguinha à noite, quando ninguém a poderia escutar, dizia ao gato e ao sofá e às lâmpadas acesas, dizia como quem gostasse de ser ouvido «Este meu filho triunfará», «A este menino não faltarão o amor ou que comer», «Ninguém fará mal a esta criança, que eu não deixo».

A rapariguinha estremecia ao murmurar estas palavras. E era toda ela uma coragem, toda ela uma certeza, toda ela o encarnar de uma força desconhecida. E não chovia. E ninguém se atravessava entre si o tempo. E nenhum perigo se aproximava sequer do filho acalentado. E ela era tão franzina. E a criança tão pequena.

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