Diga-me você, meu caro!

Andre du Plessis
Fotografia de Andre du Plessis

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Foi por esta altura que nos conhecemos. O frio de novembro estampando-se em todas as janelas, eu desempregado, tu no lar de idosos. Aquela frase soou. Certeira e inesquecível como uma reprimenda.

‒ A ruína é sempre mais feia do que bonita, não lhe parece?

Eu desempregado, tu segurando uma bengala, de pé, com olhos trocistas. Em volta um armazém de corpos tremelicantes e babosos, corpos esquecidos retomando às vezes numa grita desenfreada o caminho das dores e da frustração.

‒ Que lhe parece esta velharia toda?

Eu desempregado, ajudando uma senhora a erguer-se, outra a sentar-se. Eu sem voz, aquecendo as mãos desamparadas de um avô a quem o Alzheimer veio furtar os últimos farrapos de lucidez. Eu acabrunhado, aturdido, com a alma pesando-me na alma, como um cacho de melancolia. Eu atrozmente perseguido pelo inverno de uma ponta à outra ponta das paredes. Eu desejoso de me tornar numa centopeia e de poder esgueirar-me por uma fresta. Eu desempregado, em fuga. E tu quieto, vertical como uma âncora suspensa. Em proa. Agudo como um discurso da consciência.

‒ Já viu bem a miséria que nos espera?

Foi por esta altura que nos conhecemos. Que cruzámos palavras. Que estreitámos a distância. Que aprendemos o preço da amizade. Essa que nos obriga a mentir e a falar verdade e a mentir como só na verdade se mente.

‒ Nem tudo na velhice é forçosamente mau, não acha?

Tu muito sereno. Tu muito contido. Tu muito senhor das palavras que, ditas no momento exato, ficam gravadas para sempre. Tu com um sorriso enigmático, quase de mofa, quase de simpatia, quase feliz, quase pungente.

‒ O senhor parece tão bem disposto!

E as velhotas guinchando, chorando, batendo palmas num estertor de loucura. E os velhos, com os coturnos calçados, com o fio de baba, com a lágrima ao canto do olho, enquanto as funcionárias, sempre com voz estridente, sempre fingindo euforia, vinham meter-lhes a sopa na boca, rapar os iogurtes, acomodar-lhes os travesseiros.

‒ Tem aqui tantos amigos!

E tu sem resposta. Tu mordendo o lábio, cheio de intenção. As sobrancelhas franzindo, aconchegando um pensamento satírico, com vontade de me mandar à merda. Tu incapaz de acreditar na piedade voluntariosa. Tu sereno e belo como um mestre grego. Aproximando-te. Mastigando a verdade. Pondo-me a mão no ombro.

‒ Um dia saberá distinguir tão bem a vida da morte, que lhe parecerá insuportável o tempo perdido…

‒ Como assim?

‒  Lá chegará! Lá chegará…

E eu desempregado, à procura de um norte. E tu desprotegido, à espera do fim. Um de cada lado, agarrados à mesma visão, como as duas serpentes entrelaçadas de um caduceu.

‒ Vejo que é bom rapaz. Pena é não ser lá muito esperto…

Foi, sem dúvida, por esta altura. O frio de novembro estampando-se em todas as janelas, embaciando-as, fechando-as numa estranha obscuridade de cinzas e pó. Eu asfixiando, ajudando uma senhora a erguer-se, outra a sentar-se. Tu aos ziguezagues, atravessando um corredor, saindo para o quarto.

‒ Ou talvez seja mais esperto do que parece… E me julgue tolo!

Foi por esta altura que nos conhecemos. O frio de novembro cobrindo os ossos. As horas caindo na penumbra depressa de mais. A noite caminhando como uma sombra gigante sobre os olhos. Foi assim que nos tornámos íntimos. Cheios de retórica. Irmanados pelo mesmo parágrafo de tristeza e de amor. E nunca pude responder-te. Nem agora que morreste e te levam baloiçando, fechado num enigma de mogno, com a cruz ao cimo, feia e sinistra, brilhando, prometendo a eternidade…

‒ Não é feliz aqui?

Eu desempregado. Tu calado, voltando-me uma última vez o rosto, com aquela última frase na ponta da língua, como a despedir, como a dizer, como a perguntar.

‒ Diga-me você, meu caro: o que é a felicidade?

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O homem que pedia cigarros

Foto: Tatsuo Suzuki
Fotografia de Tatsuo Suzuki

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O homem chegou e sentou-se na mesa ao lado. Suspirou. Fê-lo tantas vezes e tão fundo que conseguiu a minha atenção. Foi o bastante. Endireitou a posição da cadeira de modo a ficar mais próximo. Sorriu. Pediu um cigarro. Dei-lho. Não tardou a contar-me a sua vida.

‒ O meu problema são estes dentes de merda!

Mirei. Uma boca combalida com hematomas e roxidões suspeitos, um sorriso feio, esburacado, agarrando dois dentuços sobreviventes, tortos como estacas de uma paliçada em ruínas.

 ‒ O que lhe aconteceu? Caiu?

O sorriso, que não lhe saíra do rosto, aprofundou-se. No refluxo dos lábios, viam-se agora as gengivas dolorosas, inflamadas, rubicundas, onde cicatrizes hemorrágicas testemunhavam uma enfermidade que nunca eu vira.

‒ Não. Tenho é a boca toda lixada!

Duas pessoas quiseram confirmá-lo. A segunda era uma senhora devota da Marie Claire. Exibiu aquele ar de quem acabou de engolir comida estragada. O homem sorriu-lhe também. Não desgostou que nos tivéssemos interessado por si, que o olhássemos de soslaio, que franzíssemos o nariz, que lhe reprovássemos a vida. O homem (via-se!) apreciava que o mundo lhe estendesse uma mão. Que o mundo lhe estendesse ao menos um dedo!

‒ Isto está a dar cabo de mim, sabe?

E pausou.

‒ No outro dia o meu irmão levou-me lá a casa um bife. Mas não pude comê-lo, por causa destes dentes de merda… O que vale é que estavam ali uns gatos… Atirei-lho. Só comi o arroz e as batatas…

E pausou de novo.

‒ Se você me pudesse arranjar outro cigarrito!

Dei-lho. A rapariga do café aproximou-se. Veio explicar ao homem que não podia importunar os clientes. Que precisava de ir-se embora. Que não voltasse. Que o patrão não o queria lá. E o homem fez uma momice, um sorriso doido, como se aquilo acabado de escutar fosse um jogo e ele tivesse principiado a divertir-se muito. O meu caderno, escancarado como uma porta inútil, registava meia página de coisas cuidadas, frases com brilho, ideias promissoras. Não podia agora compreendê-las. O homem fez uma vénia com as mãos juntas, como quem faz a súplica a um santo. A rapariga expirou pelo nariz, contrariada. Recolheu a chávena na mesa entretanto abandonada pela senhora impertinente e regressou ao interior. Uma hora de trabalho (como foi possível?) reduzida num piscar de olhos à inconsistência das cinzas… O homem quis ser agradável (lia-se-lhe nos olhos a vontade de querer saber). Perguntou.  

‒ O senhor é daqui?

‒ Sim. Quer dizer, mais ou menos…

Apontou para o isqueiro. Emprestei-lho. As mãos muito magras deram-me a impressão de estar a conversar com um moribundo. Arrisquei.

‒ Isto faz-lhe mal! Não devia fumar tanto!

‒ Não, não… Os cigarros são porreiros, tiram-me as dores todas…

Um casal chegou. A rapariga julguei reconhecê-la da televisão: sem devolver qualquer vestígio de empatia pelo mundo, devorou o espaço em redor multiplicando sons. Percebi que o meu refúgio naquela esplanada havia cessado. Uma nova espreitadela ao caderno fez crescer a labareda da frustração. Detestei-me. Detestei o desgraçado que, cadeira com cadeira, continuava a sorrir e a soprar o fumo numa espécie de êxtase. Detestei a fulana arrogante. Fiz menção de sair e de me despedir.

‒ Bem, muito gosto em conhecê-lo!

O homem levantou-se para me apertar as mãos.

‒ Muito gosto, meu senhor!

O desconforto foi indizível. A beata queimava-lhe quase os dedos. A tarde tornara-se subitamente fria, como muitas vezes sucede na passagem das estações. Consultei o telemóvel, ocorreu-me um contacto, teclei. Do outro lado, uma voz recebeu-me, acalentou-me. O homem erguera-se. Apanhava desprevenido o casal. Pedia tabaco. A rapariga, elegante, com a cigarette espetada entre o indicador e o médio, continuava a falar sem lhe voltar o rosto. Do outro lado do telemóvel, a voz confirmava o encontro para as cinco. O carro continuava ali mesmo, sonolento como um cachorro. Entrei. Abri os vidros. A rapariga da televisão exaltava-se, arremessava com desprezo a beata para o jardim. E o homem mergulhava. Como um nadador, como um pai aflito, o homem lançava-se em sua perseguição. O desconforto foi enorme. Ele, triunfante, saltando no relvado como um doido, estrafegando com os dois dentuços, esforçava-se por reacender o corisco. Do outro lado do telemóvel, a voz despediu-se. Fiquei mudo. A voz perguntou-me se tinha ouvido. Disse que sim. Estava bem, sim. Estava combinado. E o homem desapareceu como tinha vindo. Em direção ao nada.

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Um homem desempregado

Enzo Penna
Fotografia de Enzo Penna

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A fila no Centro de Emprego é uma lombriga roendo as entranhas desde o começo da manhã. Passam centenas de automóveis, os autocarros da Carris, os táxis, os peões, a meia dúzia de biciclistas matutinos, as carrinhas cheia de pressa dos correios, outras centenas de automóveis, uma ambulância histérica, os idosos agarrados aos andarilhos, as carrinhas da Moviflor, mais umas quantas centenas de automóveis, um carro funerário (com as suas bandeiras negras e roxas e o espalhafato contido dos ramalhetes comprados por obrigação)… Passa meia cidade por aqui, passam centenas de automóveis, curiosos, enfastiados, com tipos bem-dispostos, com tipos maldispostos, com tipos agarrados ao nariz e às secreções que nele se tornam bolas amovíveis, passa mais uma ambulância ferozmente ruidosa do INEM, mais uma fornada de miúdas louquinhas da Católica, e um tipo no mesmo sítio, na mesma dobra da rua, atascado à mesma esquina da vida, a pasmar para dentro, a envergonhar-se dos papéis que precisa de carregar, à espera que uma voz estridente, defeituosa, sem açúcar, lhe diga:

‒ Precisa de fazer alguma coisa pela vida, Sr. Martins!

Ser desempregado começa por ser uma coisa engraçada. Acorda-se uma bela manhã com a sensação do outro («Ai que prazer/ não cumprir um dever»), anda-se pelo interior da casa em roupa interior, a olhar para as coisas com a complacência de uma mãe que não se cansa de amar a cria.

‒ Preciso de fazer alguma coisa pela vida, pá!

Arruma-se a casa de uma ponta a outra. Tira-se dos armários a roupa de inverno, guarda-se em caixas e nos armários coisas que possivelmente nunca mais terão uso. Limpa-se o pó aos móveis, aos livros, às memórias e à alma. Visita-se uma tia no Lar. Passa-se pela Igreja para estar na penumbra dos santos, para se poder sem pressa a respirar o cheiro das velas, o silêncio e o vazio das orações ciciadas ao longo dos séculos. Passa-se no regresso pelo minimercado, para comprar pão, leite, cento e cinquenta gramas de fiambre e uma esfregona.

‒ Precisa de fazer alguma coisa pela vida, Sr. Martins!

A fila é um cordão. Um cilício. A princípio custa muito, demasiado. Parece que a nossa vida quer deixar de ser nossa. Tudo é uma ferida: as horas abrem clareiras monstruosas, como se aquele tempo que nos faltou sempre tivesse passado a pertencer-nos irremediavelmente, embebedando-nos de tédio. Pensamos. Pensamos em enviar o Curriculum às empresas da concorrência, às que até aí supúnhamos uma ameaça, às que poderão ter uma palavra a dizer sobre o nosso futuro. À medida que um tipo se sente encarquilhar, torna-se mais premente escrever uma carta de motivação, um texto repleto de energia, um tributo à boa educação e à esperança e ao futuro. Urge mostrar qualidades, fazê-las competir com os sortudos, com os que têm salário e casa paga no final do mês. Não pode haver lugar para melancolias e autocomiseração…

‒ Preciso de fazer alguma coisa pela vida, pá!

A maior parte das empresas, porém, não responde. A maior parte das empresas está servida. O Curriculum devia ter uma alínea qualquer onde pudéssemos avaliar o tamanho do coração. Devia ser um dos quesitos eliminatórios. Mas as empresas ignoram o poder do coração e importam-se mais com as línguas estrangeiras e com o grau académico e com a capacidade de simular. O silêncio torna-se brutal, assassino, feio como os olhos que espreitam à janela num dia de novembro e se veem rodeados de barba e cabelos desgrenhados. As únicas pessoas que se importam connosco são as que se nos dirigem por «Ex.mo Senhor» em envelopes de janela.

‒ Precisa de fazer alguma coisa pela vida, Sr. Martins!

E eu olho a técnica do Centro de Emprego com os mesmos olhos de sempre, apenas um pouco mais baços, ligeiramente mais apagados, um pouco menos felizes, quase em lágrimas. Carrego papéis, provas, o testemunho de que não caí na derrota, de que não aceitei ainda a fatalidade da queda. Mostro-lhe a minha preocupação, o meu desejo de encontrar trabalho e de me libertar do famigerado subsídio. Falo-lhe das minhas antigas funções, do excelente desempenho na empresa, da estima do patrão e dos colegas, do azar do contabilista aldrabão que afundou os sonhos de todos, como um torpedo certeiro no meio de um couraçado. E ela faz com a cabeça que «sim», impacienta-se com as descrições pormenorizadas, aconselha-me a passar uma lâmina pelo rosto, a cuidar das unhas, a tratar da roupa, a sorrir.

‒ Preciso de fazer alguma coisa pela vida, pá!

Mas agora tudo é dificílimo. Sorrir, então! Ao cabo de meses de desemprego, de sucessivas derrotas, de curricula enviados em vão, de ressentimento contra o mundo, contra o destino, contra o governo, contra os antigos amigos, contra nós mesmos, sorrir tornou-se a arte mais difícil de todas. Ao pé do sorriso de um desempregado, as partituras de Bach são canja. Lutar contra a sensação de perda irremediável na sua cabeça, os trabalhos de Hércules são coisa de criança. Sorrir é tão lógico e perturbador como compreender o caminho do agrimensor de Kafka.

‒ Precisa de fazer alguma coisa pela vida, Sr. Martins!

De modo que respondo torto! Levanto-me da cadeira de plástico, ponho um brilho assassino nas palavras ‒ subitamente acordadas da letargia ‒, e respondo que «Ora essa!». Há gente a espreitar, bem sei que há. A inflexível correntinha dos óculos ordena que me sente, que me acalme, que a oiça com muita atenção. É um aviso. Mostra os «pontos fracos» do meu «processo», identifica «lacunas formativas», revela-me «alternativas», «módulos de requalificação». Ou isso, ou «Adeus ao subsídio». E eu sento-me. Eu acalmo-me. Eu oiço-a com toda a atenção. Eu aceito tudo. Eu peço-lhe desculpa. Eu compreendo que estejam a fazer o melhor que podem. Eu entendo que tenho pontos fracos, que preciso de suprir as lacunas, de encontrar alternativas, de reciclar a alma devassada pela imisericórdia e pelo insucesso.

‒ Preciso de fazer alguma coisa pela vida, pá!

E é com espanto, com uma leveza invulgar nos olhos (como se tivesse deles removido uma película suja ou acrescentado neles uma fúria nova), que saio para a rua. A mesma rua, o mesmo bulício de carros e furgonetas passando pelo meio dos carros e carrinhas mal estacionadas, a mesma rua de velhos infelizes e estudantes de Direito, a mesma rua de floristas e peixarias misturadas com lojas que aceitam ouro usado e prometem bons negócios… A mesma rua, que de repente me parece uma extensão de um mau sonho acabado de deixar para trás. Preciso de fazer algo pela vida. E, no entanto, estou na iminência de um soluço, de um sufoco, de uma tristeza abissal, como a que tem um desempregado incapaz de tomar um rumo. Se ao menos houvesse uma réstia de sorte! Um pouco daquele Deus de Abraão, Isaac e Jacob que decidisse dar-me uma mãozinha! Um pouco daquele romantismo dos filmes de Charles Chaplin ‒ em que surge do nada, à mesma esquina gradeada, um milionário de Monopólio (de cartola e bigodinho) a propor-nos um desafio em condições, um sonho real, uma promessa verdadeira… sem ser preciso o pacote indigesto de inúmeras formações de vinte e cinco horas, com que pretendem salvar-me do trágico fim a que me votou este país de banda desenhada.

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Espécie de elegia

W. Eugene Smith - Charlie Chaplin, 1952 I
Fotografia de W. Eugene Smith (1952)

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«A coisa mais triste do mundo é assistir ao espetáculo de um humorista que perdeu a piada» disseste certa vez enquanto empurravas o charuto com a língua e humedecias as palavras com bourbon do forte. «Assistir a uma trampa destas pá, que tristeza!» Não me lembro do nome do artista nem das anedotas que contava. Lembro-me das lantejoulas, do chapéu, das mesas redondas e de ter pensado como é terrível alguém tornar-se caricatura de si mesmo. «Este tipo chegou a levar quinhentos contos por meia hora…». Fixei o número. Nem por um segundo desconfiei que fosse exagero. «Olha-me para ele agora… um palerma a imitar o pior do Herman… Que trampa!»

Sempre tive medo dessa fase. Sempre. Do Elvis gordo e sem timbre. Da Marilyn embriagada e sob o efeito dos barbitúricos. Do último Hemingway. Do último Picasso. Do último Pollock. Do último Coltrane. Do último Sinatra. Da Amália titubeante. Do Herberto Helder de Servidões e A Morte Sem Mestre, malcriado e escassamente luminoso. Sempre tive medo de me confrontar com o espelho, (como Chaplin em Limelight) e de tropeçar com olhos míopes e cansados num ser que se tornou paródia da sua própria pessoa.

«Agora dão-lhe cinquenta euros! Às vezes dão-lhe só de comer. Por piedade! Ao que este tipo chegou, pá!» As palavras cheiram a álcool. Ácidas e incisivas como enzimas devoradoras. Alguém na penumbra forçou uma gargalhada. É pavoroso que se simule um relâmpago tão inocente. A rapariguinha loira veio perguntar se tomávamos mais alguma coisa. Daí a nada o cabaré ia fechar. Com um sorriso apagado, frio como a sopa fria, restavam dois casais, uns quantos solitários e nós. «Cheguei a pedir-lhe um autógrafo… No princípio até lhe propus gravarmos uma cassete!»

Com angústia o palco e o microfone tornam-se claustrofóbicos. Um tipo suado e sem modos passava um pano no balcão e fez tilintar os copos com desdém. As bailarinas, já sem maquilhagem e com as golas dos sobretudos subidas, despediam-se desrespeitosamente deste barman saído dalgum filme lúgubre. O ruído dos tacões fez dispersar o que restava da nossa atenção. «Olha-me só para aquela mulata… Muito bem, hem?» O público bateu as palmas finais, aliviado, infeliz, como todo o dever cumprido sem amor. «Este tipo não presta. Foi tempo perdido… O que vale é ali a mulata. Boa, hem?» E levantámo-nos. Fizeste menção de pedir mais dois copos. Recusei. Insististe. Insististe mesmo em pagar um copo ao tipo do stand-up. À rapariga crioula também. Fui obrigado a beber.

Sempre tive medo destes copos que se bebem com fome, desta espécie de buraco negro absorvendo-nos as ganas de viver com um ou dois cubos de gelo, ou mesmo sem gelo nenhum. «O que é preciso é alegria, meu amor!» O humorista engolia o malte à pressão. Achava muito bem. O que era preciso era muita alegria. A rapariga gostava que cochichasses e lhe desses beijos no pescoço. «O que é preciso é isto, muita alegria, hem!». E eu sempre tive medo dessa tristeza, desse apelo ao esquecimento, desse convite à cirrose hepática e a todas as formas de estar em ruínas no mundo. «Haja alegria, pá!» O tipo do balcão, sob o acicate de uma gorjeta generosa, pôs de novo a música a tocar e a acompanhá-la o globo anacrónico, como nos tempos em que usávamos patilhas imitadas do John Travolta.

Saí sem me despedir. Não quis interromper-te a química. Tu feliz, eu sabendo que a coisa mais triste do mundo é essa impotência voluntária, quando um tipo começa a cair e não consegue nem intenta reerguer-se («Assistir a uma trampa destas pá, que tristeza!» ), quando um tipo percebe que a coisa mais cruel é ter de olhar-se olhos nos olhos («Olha-me para ele agora…») e não suportar o que vê…

Saí. Farrapos de nevoeiro voavam sobre os telhados. A noite pareceu-me finalmente uma coisa concreta. Uma casa a que me recolhia sem pressa, sem palavras e sem piedade.

E não há nada mais triste do que isto. Tombar muito devagar, em câmara lenta, com a sala às escuras, à espera das palmas mecânicas, à espera que nos paguem o cachê, e digam «Muito bem», e perguntem «Amanhã à mesma hora, hem?», e nos paguem um copo, e nos façam sentir menos mal, um pouco menos mal, um pouco acima da linha do alcatrão sujo e quebrado.

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Outra sobre livros

Xelo Moya 03
Fotografia de Xelo Moya

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No momento em que escrevo estas palavras estou tomado por uma fúria descontrolada, que entre outros perversos efeitos psicomotores me faz escrever cada palavra como se tivesse nascido malaio, russo ou etíope, de modo que a fúria de fúria se alimenta e às tantas estou a martelar no teclado e a fazer dramáticas caretas para o ecrã branco à minha frente, parede de luz e de silêncio que me ignora, aliás, as graves razões por detrás e o significado de cada esgar de louco que lhe lanço. Não, não é um ótimo começo de crónica. É só um começo. De resto, imagino que quem me lê (dois ou três amigos que não atiraram ainda a toalha ao chão, para me servir de uma metáfora da moda) se pergunte quais serão, enfim, os motivos de uma tal perturbação, ou se questione (não o duvido) se o autor destas palavras não estará apenas a ganhar tempo para encontrar alguma coisa que valha a pena ser dita, andando daqui para ali e dali para acolá, às voltas e às voltas, a espalhar a fúria, como se espalha cinza, ou uma punhado de sal no gelo. Não, definitivamente o juízo não me acompanha!

Adianto a explicação: andando eu, esta tarde, em verificação de certos cartapácios e obras menos procuradas, descobri que uma infiltração de água cá em casa, uma dessas malditas entradas da chuva, quando há chuva (e este inverno tem havido muita, Deus seja louvado), veio descendo uma e outra e outra vez, sempre em segredo, sobre uma das mais altas estantes da minha biblioteca, e, assim mesmo, sem avisar, fez-me apodrecer (não é exagero, é apodrecimento sem tirar nem pôr) mais de metade da minha extensa e preciosa coleção de pintura da Taschen, levando consigo seis romances de Milan Kundera, um de Gabriel García Márquez (tudo Publicações Dom Quixote), umas quantas recolhas de contos (entre eles três dos sete volumes de contos de Anton Tchékhov, edição da Relógio d’Água), entre outros títulos que nem vale a pena aqui chamar à récita. Vi tudo com incredulidade. Vi o empastamento das folhas, vi o encarquilhamento da humidade, os círculos monstruosos, cancerosos, do bolor. Toquei na ferida. A polpa dos dedos levantou sem dificuldade páginas inteiras da minha religião principal, e pedaços, nesgas de papel, ângulos de prosa e pinturas imortais, que (a salvo de semelhantes infiltrações) jazem felizmente enxutas nas salas dos museus mais diversos do mundo…

Se não for inconveniente, nem excessivamente efeminado, permita-me o leitor (uso o singular, mesmo convencido de que serão afinal dois ou três) que chore. Permita-me que sofra o desgosto outra vez, que o reviva devagar com o secador do cabelo em riste, que faça ainda um derradeiro esforço para salvar o insalvável, e que gema, que grite, que berre, que barafuste, que bata com o punho, que ameace a frincha maldita por onde desceu esta gangrena, que ameace com dinamite e depois com cal e tinta o maldito lugar por onde o mal veio ao mundo. Ao meu escritório pelo menos!

E chegado a este ponto, ainda sem ter conseguido iniciar a crónica, devo explicar o seguinte: há uns dois meses, quando alinhava os poemas do meu último livro; quando precisei de qualquer coisa que sabia o que era mas não de quem; quando percebi que era uma citação de Mário de Cesariny de Vasconcelos, descobri o que não se deve descobrir. Que emprestei o Manual de Prestidigitação e não mo devolveram. E como um mal leva a outro, como uma falha nos aviva a memória de falhas anteriores, dei-me conta de ter emprestado também Horto de Incêndio de Al Berto e de não o ter em casa. E um tomo das crónicas de Fernão Lopes (dedicado a el-Rei D. Pedro). E também um romance de Isabel Allende (quem o tiver em sua posse, faça bom proveito). E era justamente para conhecer a real dimensão do problema que me propus fazer uma vistoria. Pelo que me propunha escrever uma crónica, a começar assim:

«Por causa de um prospeto conheci a poesia de Al Berto, por causa de um flyer conheci a de Mário Cesariny de Vasconcelos. Dois superpoetas do século XX (que viram a esquina do milénio), dois inconformados, dois rebeldes que (cada um à sua maneira) ganharam fama de malditos, ou, pelo menos, de mal-amados.

Se Horto de Incêndio me abriu a porta para o poeta de O Medo, foi o extraordinário «Discurso ao príncipe de Epaminondas, mancebo de grande futuro» que me deu a conhecer Manual de Prestidigitação e, depois dele, Nobilíssima Visão, Pena Capital, A Cidade Queimada, Titânia e, já no mestrado, Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (que afinal já conhecia, na versão mais curta de Nobilíssima Visão) e O Virgem Negra. Sigo a ordem por que os li e não a que seguiu o autor ao escrevê-los ao longo de meio século de paciência, polémicas e amor incondicional à arte de Homero.

Só esta tarde, aquando de uma arrumação que aqui não importa esmiuçar, é que me lembrei de o ter emprestado e não o ter recebido de volta. E porque o emprestei a alguém que agora se encontra em parte incerta, só esta tarde me inteirei da perda. Estou consternado! Os livros não são emprestáveis, especialmente os de poesia: eu já o devia ter percebido, eu que somo até hoje reveses consideráveis em relação a Mário de Sá-Carneiro, Herberto Helder, Sophia de Mello Breyner Andresen e Wisława Szymborska (neste caso derradeiro com a sorte de haver, entretanto, podido comprar um novo exemplar do volume “desaparecido”) e, por alguma razão os citei de início, também Al Berto e Cesariny.

Moral da história: venho por este meio, fria, solene e publicamente declarar a minha absoluta, voluntária e inegociável indisponibilidade para ceder doravante por empréstimo, ou outro igual expediente, qualquer livro de poesia, podendo nos restantes casos, desde que não seja a minha porção de teatro (grego, de Goldoni, Ibsen, Lorca, Brecht e Beckett), de ensaios (com Lourenço e Steiner à cabeça), ou de ficção (portuguesa, europeia, universal), considerar a hipótese de. Repito: os livros não são emprestáveis, nem riscáveis, nem dobráveis, nem sujáveis com impressões digitais, nem são bons lugares para guardar os números do Euromilhões e números de telemóvel. Pela parte que me toca, sou fundamentalista do livro limpo, do livro impecável, do livro inteiro e intacto, como o tipógrafo o pôs no mundo. E, dito isto, calo-me, porque o que tinha a dizer disse!»

Isto era a minha proposta. Mas compreendi que uma tal crónica, além de breve, além de estranha (seria realmente aquilo uma crónica), além de provocadora, não seria bastante para conter a expressão de miséria humana que revoluteia dentro do meu sangue a estas horas, tendo tomado eu conhecimento do desastre a que aludi inicialmente e que continua a empurrar-me as omoplatas para baixo, como uma carga de cimento sobre os ombros. Tonto, triste, totalmente desolado. Alitero em para sublinhar musicalmente o elegíaco tom em que me vou esta noite deitar, já não tomado pela fúria, mas tão só pela mágoa e frustração, de quem ama os livros (certos livros mais do que os outros) e os perdeu à força de os querer guardar no lugar mais extremo da sua caverna. Moral da história: antes os tivesse emprestado!

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Bibliotecas

Biblioteca do Mosteiro de Strahov
Fotografia de Jan Gravekamp

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Entre as mais poderosas imagens que o meu cérebro construiu do mundo, conta-se a do lugar imenso, insondável, sagrado, das bibliotecas. Um tal território não é apenas espaço, nem apenas depósito, nem apenas silêncio de livros. Mas verbo, verbo incontido e multiplicado, verbo prestes a conjugar-se, prestes a parir, prestes a replasmar o próprio verbo divino que é, desde S. João, o começo e a duração dos tempos. Um tal território é sede do fascínio e do abismo, do poema e do pó, da palavra e do vazio. Porque as bibliotecas são, muito para lá da metáfora do labirinto em que Borges as refundou, a metáfora da luz em que sonho eu!

A primeira que amei era escassa, mal iluminada, nos fundos de uma escola velha e obsoleta. Administrava-a uma funcionária carrancuda, sempre sentada e com o aquecedor aos pés, para quem a maçada de ter alunos a pedir-lhe que abrisse os armários (sábia e prudentemente fechados a cadeado) só competia com a maçada de ter de levantar-se de duas em duas horas para ir à casa de banho. Ainda assim, foi dentro das suas paredes que me repastei com aventuras do Superpato, ou com os vinte e um volumes do quinteto inesquecível de Enid Blynton, ou com as histórias e Pica-Pico e da Gaivota Laila de Friedrich Wolf. Benditos seis metros quadrados e repletos de mofo, onde me inteirei do bruxedo da Galinha Verde que Ricardo Alberty generosamente partilhou.

Ganhar coragem para entrar e desafiar os óculos em armação de osso da matrona, que uma vez retirados significavam cólera ou impaciência pelo menos, foi o primeiro sinal de que nascera para aquilo. E aquilo, que era muito diferente quando o professor Miguel Monteiro lá estava, deu-me a primeira noção do saber, do saber incalculado e incalculável que está à mão de semear e que, ao mesmo tempo, nos foge da mão.

Preciso de homenagear este homem. Professor de Língua Portuguesa (como eu me haveria de tornar), ele foi o poeta do giz, aquele que nos lia em voz alta fábulas de Esopo e contos de Hans Christian Andersen, excertos das fantasias de Júlio Verne e contos russos, quadras de António Aleixo ou de Fernando Pessoa, aquele que nos falava dos mitos e do teatro grego, que nos ensinou que texto quer dizer tecido, ou que as palavras mais não são do que roldanas que nos ajudam a puxar pesos enormes e que por isso devemos mantê-las bem oleadas, próximas e disponíveis. Não tive outro professor assim. Nenhum que haja conseguido de forma igual penetrar a carapaça (quase sempre oca) da burocracia e nos tenha feito ler, falar, ouvir e escrever com paixão, com amor e com sentido estético no que, dentro de uma língua, há de passional, amoroso ou literário.

Foi ainda o professor Miguel Monteiro quem nos desafiou a inscrever-nos como sócios na Biblioteca Municipal. O precioso cartão plastificado, com o nome e o número escritos à mão, foi mais do que a possibilidade de conhecer a Casa da Cultura, requisitar livros e levá-los para casa. Foi o passaporte para um mundo solene, cujas estantes e móveis austeros se deixavam antecipar pelo aroma da cera e da madeira, cujas amplas janelas (banhadas ora pela luz do sol ora pela chuva) se mantinham tão longe e tão perto da rua quanto o desejável. Havia com efeito um mundo para lá e outro para cá das vidraças, ambos tão deliciosos quanto imiscíveis pelo olhar, o que me faz, desde então, e num assomo de nostalgia, espreitar o céu aberto e o bulício sem som (como num filme mudo) a partir de dentro, e os lustres e pesadas lombadas, os leitores dobrados e silenciosos, a partir da rua. Em mim subsiste muito do antigo adolescente; primeiro com Altino do Tojal e Dumas; depois com os dicionários de latim e de grego, com enciclopédias, atlas e histórias universais, com Carl Sagan e Herbert Reeves, com as Memórias do Cárcere de Camilo debaixo do braço. Alcunhavam-me de Crânio e eu de néscios. As duas batalharam durante anos, na pior das guerras de difamação.

Quando nasceu a minha irmã Catarina, quando ingressei na Faculdade de Letras, o intelectual estava feito. Feito, mas com impurezas graves e falhas maiores. Não conhecia dezenas de autores portugueses (não me atrevo a cifrar a quantidade de estrangeiros), não dominava bem o inglês, não viajara, não dispunha de conhecimentos categóricos no que concerne à vida noturna, vivia recluso de ideias humanistas do tempo do senhor Damião de Góis, pese não o seguir no exemplo da erudição. Para os meus colegas de curso, apresentava o aspeto de um monge tardio e mais ou menos provinciano. E por essa razão me abastardei. Não apenas com a leitura compulsiva dos franceses, dos americanos, dos italianos, dos ingleses, dos alemães, dos russos (preferi quase sempre os que não integravam o currículo), como sobretudo com as surtidas para o jornal académico (onde frequentei tertúlias e publiquei uma ou duas crónicas de ocasião), ou com as bebedeiras na Ribeira, na Foz e na Boavista. Quase perdi o terceiro ano.

Ainda assim, e porque os amigos eram bons e muitos nesses anos venturosos, lá me endireitei e acabei a tempo. E porque precisava de silêncio e de solidão, o lugar onde me resgatei ao precipício foi a majestosa biblioteca sobre o Rio Douro, na ainda chamada «Vista Panorâmica». Poiso dos marrões, dos grupinhos de estudantes idiotas e das beldades de Filosofia, ela era o refúgio dos três ou quatro poetas que então já se afirmavam, com Daniel Faria à cabeça. E era o meu refúgio também. Como no filme de Wim Wenders, Der Himmel Über Berlin, que a saudosa professora Vera Lúcia Vouga exibia sempre às suas turmas, em Introdução aos Estudos Literários, eu imaginava-me uma dessas vozes interiores que declamavam de si para si Homero, Kierkegaard ou Noam Chomsky.

Vem-me muitas vezes à memória o profundo contraste de luz e sombra nesse espaço, uma torre com meia dúzia de pisos, onde li Dante, Petrarca, Gôngora, António Vieira, Poe, Machado de Assis, Baudelaire ou Breton. Não poucas vezes me exigiram silêncio, porque me distraio facilmente. Não poucas vezes me perdi a cismar nos rabelos e embarcações de carga que transpunham o horizonte, acompanhados pelo grito das gaivotas e pelos meus olhos fartos de Linguística, de Literatura ou de Metodologia. Lamentavelmente, não me assiste o dom da paciência que transforma homens comuns em excecionais. Fui sempre um leitor fantasista e um pouco tolo.

Em 2011 estive em Praga. Aí visitei a biblioteca do Mosteiro de Strahov, um exemplar da sua espécie que me comoveu até às lágrimas. Não é muito diferente da biblioteca do Convento de Mafra, por exemplo, mas, como muitas vezes sucede com as civilizações a norte, é mais despojada, mais pura, mais livros, mais saber, mais biblioteca! Sempre quis folhear um desses códices medievais, com iluminuras e letras em estilo gótico. Quis o destino que esse privilégio me pudesse ter sido dado em terras eslavas, nas mesmas salas e corredores por onde circularam Tycho Brahe e Johannes Kepler. E por tê-lo conseguido aí, sempre Praga morará no meu coração, como morará sempre a pequena biblioteca do Ciclo Preparatório ou a do meu quarto, onde guardo apenas os livros de poesia inquestionáveis!

Perguntaram-me há tempos se conhecia a nova biblioteca de Alexandria. Não conheço, infelizmente. Mas também esta moderna não me seduz como seduziria a outra, a histórica, aquela que desde os relatos de Heródoto e Tucídides me incendeiam a imaginação. Aliás, como as bibliotecas de Jorge Luis Borges ou a dos copistas d’O Nome da Rosa de Umberto Eco. Porque um ingrediente transforma um depósito de livros numa biblioteca, ou, na sua ausência, uma biblioteca num simples depósito de livros: a vontade de ficar, de permanecer, de regressar.

E é, por isso, que me orgulho de ter criado na Vila de Arões, onde vivo (no edifício da sua Junta de Freguesia), uma biblioteca. Pequena, mas funcional. Escassa, mas disponível. Incompleta, mas preparada para crescer. E é, por isso, também, que não poderia deixar de homenagear aqueles que trabalham todos os dias nas bibliotecas escolares, e que as convertem num espaço de acolhimento, de aprendizagem e de prazer. Não conheci nenhuma mais ativa, nem mais humana, nem mais bem-sucedida do que a da Escola E. B. 2, 3 do Viso, no Porto, sob o cuidado da Emília Pinho e da sua equipa. E, por isso, também ela me ficou. No coração, claro está!

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Delírios

Paula Rego, «A Sereiazinha», 2003
Paula Rego, «A Sereiazinha», 2003

           

Na cabeça enviesada de um doente passam-se coisas inexplicáveis, coisas como decerto as que descreve o senhor Brás Cubas nas suas Memórias Póstumas, labirínticas coisas que são o eco da batalha entre o devaneio e a razão, que é como quem diz entre a febre e doses cavalares de ben-u-ron.

Por qualquer motivo da minha compleição física, sou achacado a delírios, tão mais indescritíveis quanto fascinantes: sou amiúde um pássaro sobrevoando a minha casa e o meu bairro, vendo ao pormenor os vizinhos a assar pimentos e sardinhas nos respetivos fogareiros e a fazer-me sinais ameaçadores lá de baixo, como se fosse intenção minha roubar-lhes o petisco. Outras vezes, sou outra vez criança e fujo da escola, porque a minha professora tem uns horríveis lábios vermelhos e quer-me por força beijar. Não é raro ser abordado por personagens históricas, que sobem da tumba para me fazerem interrogatórios ou pedir conselhos. Já houve um que me veio pedir a devolução de dinheiro que alegadamente me emprestara… De todos o mais espantoso foi o velho Marquês de Pombal, que insistia roubar-me o telemóvel e ameaçava despir-me em público se não lho entregasse…

Recuperado destes episódios de bullying psicótico, pude rir ou ficar seriamente convencido de ser semilouco. Mas a loucura é uma caso muito mais complexo do que se pensa; quem assim o afirma é Emil Kraepelin, que diz também «alto lá e para o baile»: nem todos os fenómenos de perturbação mental são propriamente um caso de psicose, demência, neurastenia, histeria ou esquizofrenia. A febre não faz do seu portador um louco, como o livro de filosofia debaixo do braço de um estudante não o torna propriamente um filósofo.

Assim sendo, incapaz de decidir-me quanto ao que me cabe de manifestamente louco, ou ao que é exclusivamente do domínio da febre, comecei a anotar algumas dessas fabulosas aventuras, convencido de poder servir-me delas como delas se serviram nos seus livros Baudelaire ou Borges, embora num caso o absinto, no outro a cegueira tivessem dado uma ajuda preciosa no aprofundamento e correção das ideias. Simplesmente, não pude divisar até hoje como me seria útil descrever num poema o quanto fugi do sinistro Popeye (que me aterrorizou a infância e não só por causa dos espinafres odiosos), ou como dar seguimento numa novela às façanhas conjuntas com Zorro, o meu maior herói masculino até ter-se abandalhado com Antonio Banderas…

A verdade é que os meus delírios possuem pouca literatura: é lá coisa que se aproveite Dom Sebastião ser apanhado a fumar e a faltar à lição de piano? E que dizer de Afonso Henriques a levar dois estalos por faltar ao respeito à catequista? «Aqui quem manda sou eu, meu menino» — e di-lo com uma faca em riste. Não poderia explicar numa história da minha lavra porque leva o primeiro rei de Portugal um par de bofetadas da catequista, ou porque lhe chama essa terrível figura de avental «meu menino», ou porque recita ela a catequese empunhando uma faca de degolar galinhas…

Paula Rego, acostumada a visões deste calibre, dir-me-ia existir qualquer coisa de freudiano nos meus textos. E eu haveria de escutá-la com comedimento, com pundonor, com excitação. Porque me convenceria de habitar em mim, afinal, algum ADN de artista. Mas era preciso que eu soubesse multiplicar literatura a partir desses achados piréticos. Infelizmente, a única coisa que consigo é esgotar a paciência àqueles que me trazem chá e panos molhados à cama, me trocam os lençóis e me obrigam a mudar de pijama.

Pela minha parte, recupero de um fim de semana em que me fui tomado por um mistura de constipação e de gastroenterite (infundado o receio de gripe A). Na minha cabeça, como no areal repleto de despojos de A Sereiazinha, que Rego pintou em 2003, jazem incontáveis e incongruentes fantasmas de episódios mentais, que em breve serão recolhidos pelas vigorosas mãos dos meus enfermeiros domésticos.

Porque definitivamente há circunstâncias com que lido mal e de que tiro escasso partido. Invejo quem o faz, ou fez, como o grande Machado de Assis, por exemplo, que levou longe o talento de fazer render a contrariedade da doença. Mas os grandes são grandes, e com a devida vénia me retiro… para a sopa de arroz.

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