Nós gostamos da neblina

Luigi Bondurri
Fotografia de Luigi Bondurri

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M. caminhava com pressa nessa manhã. Fazia-o por causa do frio, mas outrossim em virtude do hábito (no verão caminhava igualmente apressado; talvez, neste caso, por causa do calor). De todas as partes da cidade, por onde a água corresse, subia uma neblina espessa e álgida que engolia tudo: um olhar não demasiadamente perspicaz vê-la-ia erguer-se do rio, mas também das sarjetas, dos chafarizes, nos jardins públicos, e das bocas ofegantes dos transeuntes.

M. lembrou-se (ultimamente era uma memória assídua) da ponte de outros dias, no fim da primavera, quando aí costumava comprar a uma velhinha de lenço na cabeça cerejas magníficas, e se punha a observar a lentidão do caudal quase transparente, e os junquilhos lhe debruavam as margens, e uma mulher o esperava na outra banda, ao lado da igrejinha românica, cujos lábios carnudos confundia às vezes, no inferno de uma insónia, com a cor e a carne das próprias cerejas maceradas na sua boca.

M. suspirou. Teria vivido o que viveu? Chegava a duvidá-lo. Olhou o céu com um suspiro. O sol, um sol cor de prata, forrado pela neblina como por bocassim, ia e vinha por entre os prédios, aparecia e desaparecia no meio da cabeça ossuda das árvores. M. suspirou de novo. Era uma visão do passado e não tanto de um déjà vu o que lhe estava a acontecer nesse preciso instante, porque nalguma parte de si sabia há muito que iria viver esse momento, esses suspiros, essa pressa, essa nebulosa divagação por entre espaços e pelo âmago do tempo. Principiara a acreditar no eterno retorno. Convencera-se mesmo que, algures, na viagem da nossa vida, apesar de não vermos o antes ou o depois, repetíamo-lo.

Entrou na farmácia e pediu aspirina.

– Uma caixa, senhor?

– Três, por favor!

– Três?

– Três.

M. gostava de comprar tudo a triplicar. Detestava a sensação de ver esgotar-se algo de que precisava ou de que gostava. Casara três vezes, tantas quantas as que se divorciara. Começara três cursos na universidade, sem ter concluído, porém, por culpa de um tédio irreprimível, nenhum. Era assim. Se pudesse, teria nascido em três e falecido outras tantas ocasiões, para não lhe escapar qualquer pormenor e pelo prazer de regressar a um ponto exato da existência.

– Aqui tem. São treze euros e vinte cêntimos.

M. pagou e saiu. Doía-lhe a cabeça. Doía-lhe amiúde. Caminhava com pressa, em direção a qualquer parte que a neblina não deixava divisar bem. Ah, as cerejas túmidas, a velhinha simpática, a amante que o esperava com um sorriso tímido, num banquinho de madeira, à porta da antiga igreja. M. entrou na neblina como se entra num sonho.

Até agora não voltou a ser visto.

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Uma história de amor

Fotografia de Masatoshi Washimi
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A pouco mais de meia centena de quilómetros de Quioto fica a aldeia de Kawajima, no sopé do Monte Fo. Daí pode contemplar-se o Lago Biwa e os cumes de outros montes, como os de Minako e Hiei.

Em Kawajima vive Ichiro, um artesão viúvo de apenas vinte e seis anos. Casou aos vinte, perdeu a mulher (a belíssima Sakura) aos vinte e três. Não tem filhos, exceto os maravilhosos cadernos de papel grosso cosidos à mão, os estojos e coldres de couro, os famosos ko-daiko que as suas facas, tesouras e agulhas constroem dia e noite, noite e dia.

Ichiro não é um homem melancólico. As suas mãos trabalham depressa e os olhos e ouvidos não perdoam lapsos. A perfeição é uma ordem, tão ontológica como o fogo, como a água do riacho onde vai beber, como a majestade dos animais ferozes que de quando em quando se aproximam do seu casebre.

Nesta altura do ano, contudo, lembra-se muito de Sakura. Era uma mulher simples, ainda uma rapariguinha, de encantadores olhos cor de mel e silhueta elegante. Sente em especial o vazio que ficou no lugar onde os braços de Sakura o apertavam, no lugar onde os seios de Sakura o despertavam, no lugar onde os cabelos soltos dela o acariciavam e o faziam rir. Nesta altura do ano, as cerejeiras principiam a carregar-se de um tom maravilhosamente claro, enchendo-se de pequeninas pétalas de cores rosa e branca, em tudo idênticas à luz do nascer do dia.

A essa hora Ichiro sai para o jardim completamente nu, colhe um punhado de pétalas repletas de orvalho e esfrega com elas o rosto, o tronco, o sexo, os braços e as pernas.

Este costume causa a maior admiração na aldeia. Ninguém compreende o seu significado ou a exata doença de que padece. Um estudante de medicina, num dos regresso à cidade natal, interessou-se pelo assunto. Prometeu reportar o assunto aos mestres na universidade. Aí lhe dirão com toda a certeza a qual género de loucura obedece a cabeça de Ichiro.

Não lhe dirão que na noite de núpcias o jovem casal, depois de terem feito amor pela primeira vez, olhando os alvos lençóis manchados pelo sangue de Sakura, prometeu que naquele leito jamais se deitaria outro homem ou outra mulher. Era uma entrega para sempre, uma jura de amor.

Quando o desejo atiça Ichiro, a dor da partida precoce da esposa é lancinante, uma dor que aperta as cordas da sua alma como ele aperta as cordas dos pequenos tambores que constrói.

Limpa-se, portanto, do desejo com a casta beleza das pétalas das cerejeiras, com a água visceral que escorre dos telhados e das folhas, com o frio do vento por onde o espírito de Sakura (tinha a certeza) vagueou toda a noite, infeliz e cheio de saudade.

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O assassino

Tom Baetsen
Fotografia de Tom Baetsen


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Esperava amar e ser amado. Porém, ela deixou-o e no lugar do amor ficou o ressentimento.

Deu-se conta, no início, de que o irritavam os risinhos dos jovens casais na rua, o estalar dos beijos entre sucções bruscas (por causa da pastilha elástica), o efeito moroso de certas interjeições demasiado teatrais.   

Depois tornaram-se-lhe abomináveis os operários da construção civil, rebarbando eternamente pontas metálicas. E os táxis buzinando a toda a hora e em toda a parte. E as sereias das ambulâncias. E os apitos dos elevadores e dos micro-ondas. Com o tempo, o seu ódio estendeu-se aos latidos dos cães à noite, ao miar imaginado do persa que ela levou depois do divórcio, à algazarra das crianças no recreio ou no parque defronte o seu apartamentozinho. Não tolerava os estalidos de madeira, o zumbir do frigorífico, o súbito aumento de decibéis no intervalo dos programas televisivos, o timbre metálico de certas vozes que o chamavam, interpelavam, interrogavam.

A misofonia e crescente misantropia eram nomes, uma explicação. Nada mais.

Nos sonhos, a cena do crime e o cadáver profanado, desfeito, transportado com empenho e ardil até ao alto do paredão e trinta e três vezes lançado à albufeira em trinta e três meticulosos e sinistros sacos herméticos, todo esse empenho vinha à boca e ele falava. Os pesadelos dobravam-no, enlouqueciam-no. Eram como terramotos que retorcem e amesquinham o aço.

Esse o seu castigo.

Ninguém suporta que lhe digam, especialmente nos sonhos, que até a vida indigna de um assassino o é por alguma razão. Que até para ela há um sentido, uma cura, um perdão.

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Mãe

Mãe
Fotografia de Tatyana Tomsickova

A rapariguinha estugou o passo. Não demoraria a chuva. Era uma tarde estranha, uma rua comprida, uma gente de rosto frio. De quando em quando, sempre que a acometia ao de leve uma suspeita, uma voz mais alta, uma ameaça, acariciava o ventre: bendito o fruto que ali devagar, desapressada, maravilhosamente, crescia.

A rapariguinha levava as golas do sobretudo erguidas, a bolsa a tiracolo, o coração aos pulos. Queria chegar a casa, descalçar os sapatos, abrigar-se no seu canto, sentir o aconchego das paredes e do silêncio, ser tocada pelo pulsar dos objetos conhecidos. Havia muito de umbilical ali: uma promessa de conforto, uma sensação de perenidade e de paz, uma resistência contra tudo e contra todos. Era dentro dela que gostava de pensar, de sonhar o futuro, de acalentar o rebento por nascer.

A rapariguinha à noite, quando ninguém a poderia escutar, dizia ao gato e ao sofá e às lâmpadas acesas, dizia como quem gostasse de ser ouvido «Este meu filho triunfará», «A este menino não faltarão o amor ou que comer», «Ninguém fará mal a esta criança, que eu não deixo».

A rapariguinha estremecia ao murmurar estas palavras. E era toda ela uma coragem, toda ela uma certeza, toda ela o encarnar de uma força desconhecida. E não chovia. E ninguém se atravessava entre si o tempo. E nenhum perigo se aproximava sequer do filho acalentado. E ela era tão franzina. E a criança tão pequena.

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Tu

Fotografia de Mario Raia

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Duas coisas distinguem a vida de um homem da vida de outro homem: a capacidade de suportar a dor e a capacidade de produzir prazer. Uma terceira coisa o distingue depois da morte: a exemplaridade da sua memória. Tenho, a esse respeito, tido grandes mestres. Mas tu foste o maior!

Porque nesta época em que tudo se confunde, ruído e realidade, poder e importância, espetáculo e reconhecimento, ouro e pechisbeque, nesta época em que se não distingue autenticidade e clichés, nobreza e velhacaria, nesta época vil e mecânica, nesta época automática e plástica, insossa e cega, nesta época de famigerados da fama, ó Régio!, de louvadores do fácil, nesta época de nadadores em mares de contentamento, ó grande Camões!, nesta época provavelmente não menos nem mais facínora e execrável do que todas as outras, tu passeias-te no meu pensamento muitas vezes, nítido ainda, inteiro como dantes, muitas vezes, subindo com as neblinas a várzea silenciosa, lento, firme, feliz, com ou sem a espingarda ao ombro, com ou sem coelhos à ilharga, feliz, firme, lento, para me ensinar.

Um homem não vale pelo que tem, nem sequer pelo que é. Mas pelo que fará ter aos outros, pelo que for capaz de deixar de seu, não a uma, mas a dez gerações!

E como eu te escutava, meu velho amado! Os nossos colóquios eram na cozinha, junto à lareira grande de pedra, onde o fumeiro e os grandes potes de ferro enegreciam. Onde a ciência intemporal dos teus provérbios ardia. Onde me contavas as tuas histórias de licantropos, homens voadores, sereias e mouras encantadas. E como eu te escutava, meu velho amado! Como ardem ainda as manhãs nevoentas, em que desjejuávamos os dois, rapando com um pedaço de pão o prato dos ovos estrelados! Como recordo esses ovos de gema sumarenta, esse pão de sêmola, junto dessa lareira grande nessa cozinha escura e fumada! Como estremeço ainda à tua voz, às tuas palavras despidas de vaidade.

Quando chegares à minha idade, meu filho, vais perceber que o céu é para quem o ganha e este mundo para quem mais apanha… Bem prega Frei Tomás, faz como ele diz e não como ele faz! É tão certo isto, como dois e dois serem quatro, meu filho!…

E tu limpavas os beiços a um pedaço de pão. Limpavas o catarro com um gole de vinho. Como eu amava aquela história do homem que queria voar, das imprudentes asas de cera, do sol impiedoso, da queda no oceano. Tudo narrado ao pormenor, sem pressa, com a paixão de quem semeia um tempo por vir… Deves ter-me contado essa história umas vinte mil vezes. Na cama, onde te admirava as ceroulas de flanela e a cicatriz no abdómen, no quintal, enquanto semeavas favas e ervilhas; no lagar, onde depois das vindimas depositavas caruma e palha seca, onde nasciam às dezenas, pintos magnificamente enxutos e amarelos. Porque me contavas as histórias sem querer ensinar.

Porque os vícios se aprendem depressa e os sublimes prazeres devagar. É preciso amar a vida para se compreender a vida, meu filho!

Julgo que uma ou outra vez, empolgado pelas lições, quis fumar também. O teu maço de doze Kentucky era uma tentação. Mas tu somavas em voz alta os cigarros que ficavam a guardar-te a casa enquanto ias dormir a sesta. Limitava-me a colocá-los na boca, a imitar-te de longe, a fingir-me caçador, lento, firme, feliz.

Porque o exemplo e a memória que nos fica de um homem é a terceira e mais importante coisa que distingue um homem de outro homem, logo depois da sua capacidade de suportar a dor e da qualidade dos seus prazeres.

Julgo que arrostaste com estoicismo o cancro. Eras um velho já tão velho que o meu amor por ti não cessava de crescer. E, no entanto, não compreendi jamais a tua derradeira cama, os cigarros abandonados, a espingarda com teias de aranha, os ervilhais deixados ao deus-dará, os ovos por recolher e pintos nascituros nos remansos da cave, a lareira sem lume, as histórias por contar, as manhãs sem ti…

Penso em ti muitas vezes, avô. Porque nesta época em que tudo se parece estranho e estéril, feio e enfermo, esquálido e esquecido, doloroso e dorido, demasiado e diminuído, sinto a falta do maravilhamento calado dos teus olhos, do catarro sombrio que enchia a alvenaria da casa, do desembaraço e desembaciamento e sonoridade limpa de cada um dos teus gestos, da luz das tuas palavras, da certeza que tinhas então sobre mim.

Um homem vale pelo que tem cá dentro, meu filho! Lembra-te disso! Um homem vale pelo tamanho do seu coração! Homens graúdos têm o coração do tamanho de uma melancia, ouviste?

E eu a querer um coração grande, com medo de que pesasse tanto que me afundasse. E eu a imitar-te em tudo, meu velho. E eu a não perceber aquela gente que me dizia que tinhas uma doença, que tinhas morrido, que tinhas partido, que não virias contar-me mais histórias de lobisomens e ícaros, sereias e mouras, anões, sapateiros e hortelões, raposas matreiras e criados do diabo…

Não te perdoei a primeira, nem todas as outras manhãs em que não regressaste das neblinas sobre a várzea silenciosa. Julgo que uma ou outra vez, esquecido das lições, quis fumar também. O maço em cima da escrivaninha. O isqueiro em cima do maço. Os dedos em cima do isqueiro. Penso em ti muitas vezes, avô. Em ti, corpo encarquilhado, cansado de lutar, escavado pelo mal. Porque uma terceira coisa distingue um homem depois da morte: a exemplaridade da sua memória. Em ti, que um dia não regressaste. Porque duas coisas distinguem a vida de um homem da vida de outro homem, não é assim? Em ti. Julgo que uma ou outra vez quis fumar também. A capacidade de suportar a dor e a capacidade de produzir prazer, não é verdade? Como te escutava, meu velho amado!

Não deixei que o vício me levasse a palma, avô. Porque os vícios se aprendem depressa e os sublimes prazeres devagar. Não é assim?

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Lembro-me de tudo

Fotografia de Örvar Atli Þorgeirsson

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A praia esvaziava-se até à melancólica reunião das gaivotas. Era então uma profusão de sulcos em forma de cunha e gritos selvagens. O ronco do mar, com o ir vir das ondas, desfazia-se num som borbulhante de espuma e cansaço, como se também o mar arquejasse e pedisse a noite. O vento erguia nuvens de poeira e tornava-se cada vez mais forte e frio, fazendo oscilar as bandeiras das marcas de gelados e as tolhas coloridas, ao longe, nas varandas dos prédios. Era essa a hora amada. Um pouco antes do sol-pôr, na travessia final do dia para a noite, quando podia caminhar praticamente só pelo areal e sentir os pulmões inchar com a mescla de elementos contrários, húmidos e enxutos, vindos das entranhas do oceano e das dunas áridas, onde rizomas resistiam e abrigavam um sem-número de ervas aromáticas.

Da planta dos pés às circunvoluções do cérebro, todo o meu ser habitava ali e ali se deixava habitar pelo tempo e o espaço. Às vezes a brisa fazia enfunar o casaco de malha e o capuz parecia tenso, como a vela de um navio. Não raro, a respiração do sargaço fazia-me recuar até à infância mais remota, até antes das minhas primeiras memórias, aquietando-me num pensamento infindável de paz e bem-estar. Era como se tivesse sempre pertencido a esse instante e tudo antes não tivesse passado de um desvio involuntário. Eu era aquela ali!

Caminhava primeiro para norte e depois em sentido oposto. O calção arrepiava-se com os salpicos de alguma onda mais veemente, álgida, cansada. E depois com os salpicos quentes de alguma represa pueril, deixada para trás, no seu tortuoso desenho de canais e torres de areia molhada e onde permaneciam agora algum caranguejo ou alguma estrela tresmalhados e sem vida.

Foi assim que nos conhecemos. Julgo que o destino nos faria aproximar de uma ou de outra maneira. O primeiro vislumbre aconteceu numa dessas evasões de agosto, quando me deixava guiar pelos cheiros e pelo recorte azul acinzentado das montanhas galegas.  Tudo muito simples, espontâneo, quase sem história. Não sei qual das duas reparou primeiro na outra. Nem como chegámos à palavrosa descoberta das coisas comuns. Tudo singelo e doce, como numa canção. Sem sobressaltos. Sem a urgência de um reencontro, de um nome, de um perfume. Tudo crepuscular e delicado, como blandícia de uma voz ou de uma brisa.

‒ Olá!

‒ Olá!

Sorrias. O teu sorriso era, ele próprio, um lugar dentro da paisagem. Foi assim que nos conhecemos. Saía do meu casamento. Devorada pela incompreensão, adendo devagar, esboroada pela dor e pelas traições, pelo nojo… Caminhava sempre com os olhos enregelados, como se um vidro maldito os tivesse aprisionado e subjugado. Caminhava a essa hora, em que o dia e a noite dão as mãos e se despedem e nos pedem uma derradeira prova de coragem. Dizias amiúde:

‒ A primeira coisa que amei em ti foi os teus olhos… Tão tristes…

Foi assim que nos conhecemos. Até que eu própria descobri o meu amor por ti. Quando tive a certeza de que talvez pudesse não voltar a ver-te e me queimou uma sensação precoce de perda.

‒ Não quero que partas!

E tu sorriste. E o teu sorriso era um lugar dentro da paisagem, onde, como num pingo de âmbar, se deixava antever o futuro, selado e transparente, irremediavelmente perto e intocável.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu sabia que cada instante vivido contigo era agora um acumular de memória. E eu sabia que aquele primeiro vislumbre se parecia eternizar, mais vivo do que tudo o que vivera.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu revia o teu vestido salmão, a tua pele morena, os teus pés descalços, o teu olhar penetrante, meigo, inquiridor, faiscando como um pequenino carvão indecifrável.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu sabia que partirias primeiro, que te velaria numa mágoa sem fim, que regressaria a este areal, que caminharia só, nesta hora de abandono, em que uma espécie de espuma gélida se segrega do ventre rumoroso do mar.

Lembro-me de tudo. Das noites que se seguiram. Dos rostos sombrios sobre nós. Dos paredões de ódio contra o nosso amor proibido. Das incertezas e dos choros. Das noites que se seguiram. Da solidão que é maior quando ousámos enfrentá-la. Da praia vazia. Das nuvens ofegantes e dolorosas, carregadas de grãos de areia. Dos anos que vivemos recompreendendo tudo. Da felicidade inesperada que nos abriu, qual gazua omnipotente, o sentido de todas as coisas. Lembro-me de tudo.

‒ Amor e morte andam sempre por perto. Como a terra e o mar. Como o dia e a noite…

Lembro-me de tudo. Das palavras que dizias, vindas de não sei que país inabitável. De que premonição terrível. De que sabedoria tua, temível, temida…

Foi assim que nos conhecemos.

E quando soube que amar-te era possível, deixaste-me. Aos poucos. Primeiro, no cimento intransponível de uma casa onde me não deixaram entrar. Depois, nas paredes brancas de um hospital, onde me aceitavam, fugaz e criminosa, como um gato. Porque era proibido o nosso amor, e eu soube que era possível amar-te.

Lembro-me de tudo. De saber então, quando aqui partilhávamos o lusco-fusco, que um dia, passassem os anos mais depressa ou mais devagar, este lugar me serviria de refúgio. De saber então, quando a felicidade crescia e me curava as lentas feridas de um outro tempo, que um dia regressaria aqui, como regressam todos os que amam aos lugares onde descobriram o amor. Lembro-me de tudo!

‒ Olá!

‒ Olá!

Sorrias. O teu sorriso era, ele próprio, um lugar dentro da paisagem. Foi assim. É sempre assim. Porque o amor nos escolhe e não o contrário. Tudo muito simples, espontâneo, quase sem história. E tu dizias, dizias muitas vezes, e eu queria que o dissesses:

‒ A primeira coisa que amei em ti foi os teus olhos… Tão tristes…

E eu sabia (sempre o soube, desde a primeira vez que nos vimos) que o destino nos faria aproximar de uma ou de outra maneira. Porque o amor nos escolhe e não o contrário. Mesmo contra rostos sombrios. Mesmo obrigando-nos a quebrar paredões de ódio e de betão. Mesmo depois da morte.

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Tudo gente boa

Rui Palha
Fotografia de Rui Palha

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Sempre foi um defeito considerável este meu hábito de meter conversa e querer conhecer as pessoas. Não consigo ficar-me pelo «Bom dia», «Boa tarde», «Como está?», «Como tem andado?». Às duas por três, estou a saber a alcunha, a parentela, a história do divórcio, os resultados dos exames médicos, os sonhos de infância de toda a gente. E a compreender, a consolar, a aconselhar, a passar a mão pelo ombro, a dizer «Vai ver que sim! Vai ver que sim!». E a contar algo meu, a explicar que isto custa a todos, a mostrar que não há nada mal nenhum em ser-se frágil, querendo ser-se forte, nas coisas que nos tocam mais fundo.

Sempre fui incapaz de ignorar uma boa história, mesmo se para a conseguir me arrisco a uma reprimenda. Porque é fácil exasperarem-se comigo, pelo tempo que demoro nas lojas, na rua, no gabinete, na sala de espera, no parque de estacionamento. Só para me despedir do colega, da moça do balcão, do amigo reencontrado, do pedinte, do transeunte estrangeiro (de guia turístico em punho).

‒ João, vens?

‒ Já vou, amor! Espera só um bocadinho…

Aprendi este ofício com Maria Antonieta, vendedora ambulante, peixeira, na cidade do Porto, quando lá vivi, nos tempos universitários. Aprendi com esta profissional da psicanálise o costume de ler nos olhos e de entrar, com licença ou sem ela, nos corredores complicados da alma e da cabeça de cada pessoa. Aprendi-a como se aprende o jargão, ou uma anedota, ou um trejeito, ou seja, à conta de tantas vezes conversar consigo, de me rir consigo, de lhe entregar confidências, de lhe escutar outras tantas à puridade.

‒ Olha, olha… O senhor doutor da mula ruça!

‒ Bom dia, dona Maria Antonieta…

‒ Ó caralho, que cara é essa?

‒ Cansaço… Estive a fazer noitada…

‒ Menino, cara de enterro não faz dinheiro! Cara de gente é que é sempre para a frente!

E trepávamos os dois a escadaria íngreme da rua da Bandeirinha; ela, de avental plástico e com a canastra sobre uma rodilha na cabeça, saracoteando as ancas; eu, com o saco a tiracolo e a Teoria da Literatura do Aguiar e Silva debaixo do braço. Enquanto não desembocávamos na praceta, ficava ao corrente da humanidade vizinha: das maleitas e da solidão da dona Esmeraldina, octogenária com filhos mas sem família; dos cornos do Freire, a quem sempre faltou coragem para o suicídio; dos calotes da Magali, beldade da rua que diziam ser acompanhante; da condicional do Francisco Terra, regressado meia dúzia de dias antes de Paços de Ferreira.

‒ Tudo gente boa. Conheço-os como a palma da minha mão…   

E eu, dividido entre as mamas da Magali e o descontrucionismo de Derrida, a aceitar a explicação.

‒ Tudo gente boa… Dava um rim por esta gente, menino… São meus fregueses e meus amigos… Quando for dar aulas, vai ver como se afeiçoa depressa à miudagem…

‒ Sei lá se vou dar aulas…

‒ Ó caralho, que anda você a fazer com os livros?… A passeá-los?…

Aprendi a ir ao fundo das coisas, a deitar a rede onde o parece ser em menor número e miúdo, quase insignificante. Aprendi-o com jeito, com modos, com arte, com a intuição de que por detrás de cada rosto se esconde uma vida, com o respeito que se exige a cada mágoa e a cada miséria.

‒ Ó Xico, fica lá com meia dúzia de chicharros, homem!

‒ Hoje não.

‒ Caralho, se tos dou, é porque hoje vais ficar com meia dúzia de chicharros…

E o Xico anuía, com o cigarro amolecido, barba por fazer e olho inseguro, relampejando a cólera e a aguardente.

‒ Olha lá! Tira-me esse cu do sofá e vai dar uma volta! Deita-me o olho ali à velhota. Ela que tome o remédio. Se precisar de ir à farmácia, diz-mo tu, ouviste? Tira-me esse cu de casa…

E o Xico dizia que sim com a cabeça, agradecia em monossílabos, aceitava um pouco de luz pelos intervalos da sua paliçada.

Fiquei com o costume. Absorvi-o à medida que me foi parecendo ser mais e mais urgente espalhar essa luz por outras humanidades. Porque a humanidade, em geral e decerto em particular, vive como uma toupeira, escavando às cegas e vivendo sem alegria. Sei que irrito, que aborreço, que prolongo um simples encontro casual, uma compra, um pedido de informação, um «olá», num acontecimento, às tantas numa gargalhada, algumas vezes numa lágrima à esquina do olho.

Tenho escutado reprimendas, avisos, ameaças. Tudo porque acredito nas coisas boas que guardamos em silêncio. Porque gosto de viver menos depressa e ir ao encontro da alma. Porque, como a varina, prefiro o ritual da luz, a multiplicação dos gestos e das boas palavras.

‒ Tudo gente boa, menino…

Ela, indo-se embora, deixando um rasto brilhante de escamas no empedrado. E os moradores à janela, a cismar, a fumar, a esperar pelo dia seguinte, pela hora do aceno, do cumprimento, da companhia.

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