Volto às crónicas

Jay Satriani
Fotografia de Jay Satriani

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Recomeçar é o mais difícil. Destapo, tapo, volto a poisar a caneta, ponho-me a andar pela casa, a tocar nos objetos, a retocar-lhes a posição (as gavetas guardam ainda segredos), a anotar mentalmente os ruídos que me chegam de todas as partes, regresso à mesa, abro o caderno, destapo a caneta, a cabeça parece oca, cheia de ecos e de pó, digo em voz alta coisas obscenas, a noite sufoca, tapo e volto a poisar a caneta.

(«Deves fazê-lo com tesão, com paixão, com amor, com tudo. De outro modo não o faças!»)

A casa é curta, as coisas estão tão perto que lhe escuto o respirar, cansa-me a polpa dos dedos. Não há meio de descortinar um fio condutor, uma ideia razoavelmente capaz, um devaneio suficientemente promissor. Falta-ma às palavras profundidade, abertura, sentido. Sufoco nelas como numa gruta. Sufoco. Ponho-me a caminhar de novo às escuras, num derradeiro esforço de espeleólogo, através de obstáculos invisíveis e intransponíveis.

(«O pior de um escritor é esse desespero de homem falido, de macho que confessa a sua impotência na cama!»)

Às vezes o sofá é uma solução. Embrutecido como uma alimária no meio do lamaçal, ligo a televisão e ponho-me a clicar à toa. Às vezes tenho sorte, quando me esbarro com uma dessas relíquias da era monocromática. Há dias revi um programa do Bob Ross (o mesmo despenteado volumoso, a mesma camisa, o mesmo timbre paralisante da voz, os mesmos nomes fabulosos na paleta (branco titânio, azul prussiano, siena escuro, ocre amarelo, castanho van dike), o mesmo «Beat the devil out of it», o mesmo riso cheio de bonomia). Mas a maior parte limito-me a fechar os olhos, a esperar que as coisas deslizem, circulem, corram no movimento de caleidoscópio por dentro dos olhos. Adormeço entre frases soltas como um elefante sedado.

(«Quando sabes que não podes ganhar a guerra, limita-te a garantir que não morres na guerra. Dias melhores virão.»)

Às vezes os sonhos escrevem tudo sozinhos. Vejo-me de repente no meio de uma praça ampla, ornada de colunas brancas e estátuas de mármore. Tu voltaste inteira, com o teu rosto bonito, a tua voz melodiosa, com o teu decote generoso, o teu medo de errar as perguntas e não saber ouvir as respostas. É horrível. Beijamo-nos e fazemos amor, mas num piscar de olhos estamos de costas voltadas, tu a choramingar, eu a pensar que era bom desaparecer num passe de mágica, poder escapulir-me como uma lagartixa pela fresta de uma parede. Tudo tão vivo e tão claro, tão competentemente paragrafado, que acabo por acordar com os olhos cavados e uma sensação de vómito na boca.

(«Não escrevas com o aparo. Tão pouco com as palavras. Escreve com a vida. Que ela desenhe círculos de ar e de luz no teu caderno.»)

Recomeçar é uma tarefa desmedida. Há rabiscos e rasuras nas folhas que violento com ímpetos de homicida. À minha volta, vindos da janela, há cheiros complexos (talvez dessas plantas repletas de veneno nesta terra que as multiplica: umbelas de cicuta, tintureiras infestantes, ramos de lobélias, cachos de dedaleiras), há a presença multiplicada dos vizinhos desamparados pela inteligência (insultando-se por causa dos estacionamentos, do fedor provindo dos sacos do lixo, do patear e do ganir do cachorro), há o ácido paladar das ameaças que faço a mim mesmo, indeciso entre sair e ficar, continuar ou desistir.

(«Convenhamos, meu caro: a literatura excita, a mediocridade oscita!»)

Debato-me entre querer muito e não querer mais, entre sentar-me à mesa de trabalho, com a Pelikan alinhada com o Moleskine, e sentar-me à mesa da cervejaria Munique, com uma Erdinger a escorrer gotas de âmbar e um prato de tremoços a compensar-me aos poucos a poética desapiedada. De maneira que penso nas palavras do velho professor de Estudos Literários e me ocorre que a maior humilhação é não perceber o instante em que se é humano e não se tem forma para subir ao Olimpo, o pavoroso instante em que um indivíduo puxa de um cigarro e renasce na miserável solidão de saber que tudo é inútil e estéril como vento que passa.

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Talvez as palavras nos adoeçam

Jonathan Thomas
Fotografia de Jonathan Thomas

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Não sou, como muitos pensam, bom com as palavras. Sou péssimo com elas. A relação é difícil, cada vez menos pacífica. Como se o nosso amor tivesse terminado. Obceca-me o rigor das definições e dos sentidos. E as palavras obstinam-se num significar autónomo, autómato, automático, como se quisessem sentir por mim o que (real, verdadeiramente) sinto. Como se fossem a minha máscara de gesso. Como se fossem o meu dizer. Como se não houvesse mais EU do que a primeira pessoal verbal…

Detesto este jogo.  

Li e reli há dias O Estrangeiro. Senti admiração. Inveja. Senti o respeito que por instinto se devota àquilo que nos subjuga. Porque o livro de Camus é um tratado de como escrever bem escrevendo com simplicidade. Frase a frase, eloquente e inteligente ‒ simples e sincrético ‒ como o dizer dos provérbios. Ao folheá-lo em duas ou três noites de insónia, ocorreu-me o pensamento de que «Os livros não são folhas mortas, mas palavras vivas». Vivas e capazes de fazer viver…

Ando cansado…

Por mais do que uma vez pensei em desistir. Quando me encontro com velhos amigos alfarrabistas e me sinto perdido nas suas lojas vetustas, entre milhares de edições mergulhadas no esquecimento (na decadência em que caem devagar todas as coisas humanas), pergunto-me qual a razão de tudo isto. Digo, de continuarmos a produzir lixo intelectual. Digo, de ousarmos supostas eternidades. Digo, de sonharmos com melódicas citações em grandes anfiteatros apoteóticos!

Tenho preferido o silêncio…

O mesmo silêncio que amo nos primeiros dias de setembro, quando me é possível caminhar de novo em paz pelas avenidas dos plátanos e das ginkgo bilobas. Quando uma súbita bátega (com o seu trovão solitário, o seu granizo abundante) sacudiu da praia, qual revoada de moscas, os últimos turistas e, ao pisar a areia molhada, luto contra essa orfandade indescritível do tempo que passou sem deixar rasto.

Um pouco de silêncio nunca fez mal a ninguém…

Leio. Tomas Tranströmer, por exemplo. Que no magistral poema «De março de 79» (do livro A praça selvagem) confessa: «Cansado de todos os que chegam com palavras, palavras, / mas sem linguagem / parto para a ilha coberta de neve». Asfixia essa, a das palavras que nada dizem. Ou dizem tudo. Leio, portanto. Em silêncio. Para ver melhor. Para escutar mais longe. Para sentir mais fundo. Tranströmer conclui o seu poema, lendo nos mantos de neve da ilha onde se refugiou pegadas de corço. «Linguagem, e não palavras».

Talvez, enfim, as palavras nos adoeçam.

E com isto chego ao ponto de partida. Não me venho entendendo facilmente com elas. Não me entendem as palavras. De um e do outro lado da nossa comum tentação (quase vertigem) de amarmos o mundo, cresce a desconfiança de que talvez não saibamos dizer afinal o que queremos dizer. É terrível este antevislumbre do divórcio. E quem agora me lê, qual transeunte abismado (ou divertido) com um grande solilóquio, que me perdoe. Falar para os botões pode ser um excelente motivo para uma última crónica. Ilhas cobertas de neve esperam de braços abertos escritores em crise. Sempre melhores ‒ mais tranquilas pelo menos ‒ do que praias ruidosas, cobertas de multiplicadores de som…

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Na mesa de trabalho

The Travel Writer, (Deviant Mind)
Fotografia de Deviant Mind

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Na mesa de trabalho cabem agora somente objetos imprescindíveis. Um dicionário atualizado, a Bíblia, cadernos de sebenta, uma lapiseira e algumas canetas de pincel (de tinta preta), um cinzeiro (com a função exclusiva de pisar papéis) e um volume de poemas de Tomas Tranströmer, no lugar que foi já de Elaine Feinstein, Salah Stétié, Ian Hamilton, Wisława Szymborska, Ruth Fainlight, Anise Koltz ou Czesław Miłosz. Tenho também as gavetas apetrechadas com a subsistência: uma resma de papel, uma caixa com duas canetas de aparo e respetivas cargas de tinta, uma coleção de livros de bolso da Assírio & Alvim, uma agenda, montes de cadernos antigos (de que não fui ainda capaz de me separar) e um isqueiro elegante (capeado em pele e metal, muito elogiado por amigos e parceiros de tertúlias, quando principiava a publicar há pouco mais de uma década e o ostentava em cigarros de ocasião).

Sobre o tampo da mesa, impecavelmente arrumado e limpo (sobretudo, do pó) há também um candeeiro vermelho que me ficou dos tempos universitários, e cujo design me fascinou na época. Há ainda, por último, uma ampulheta, objeto este sem qualquer serventia, e por isso o mais casto e importante de todos. Como é pesado, imagino que um dia, se me entrar pela janela do escritório um larápio, me possa finalmente ser propício usá-lo…

Ultimamente, quatrocentas páginas de produção poética minha dividem com estes escassos objetos o retângulo de madeira. São o fruto de quase seis anos de criação e divulgação em blogue. Foram mais, mas a salamandra incinerou num primeiro instante os “devaneios”, resultado, evidentemente, de noites mal dormidas ou do álcool!

Tanta filharada junta espatifa-me a paciência. Um a um, vou-lhes passando a boca por cima e sublinhando a mercê de cada qual. Ou então riscando-lhe uma cruz, com a preciosa anotação de «Lixo», com que o cesto tem engordado, a ponto de ter também uma caixa de cartão ao lado, para acolher a rejeição. Não sou, reconheço, um crítico imparcial, ou ser benquisto da minha própria literatura. Sempre suportei mal em mim mesmo o rigor, quase despotismo, da abordagem. E tudo porque, com horror de fiscal, considero os meus poemas francamente defeituosos, em particular por causa dos erros de musicalidade, por causa de lapsos na disposição formal, ou, no pior dos casos, por causa da falta de ideia, pura e simples!

É-me penoso ler e reler-me!

Aliás, essa a minha grande inveja em relação a outros, que me confessam o prazer (e até o júbilo) de juntarem as suas coisas num livro. Porque no lado de cá da rua, também há quem saiba combinar maravilhosamente a roupa com os assessórios.

Não é o meu caso, lamentavelmente. Aliás, vem muito a propósito narrar a peripécia que em 2005 deu origem ao volume dias desiguais. Desesperado e com o ultimato do editor a fazer-se ouvir cada vez mais alto (tinha os poemas, mas não a sua ordem de sucessão), precisei de espalhar pelo soalho de um apartamento desabitado toda a minha obra, mais ou menos como fazem os polícias nos filmes de polícias com as provas de crime dos serial-killers. E foi do chão (e não do céu aureolado de alguma musa) que me caiu a lógica do livro, se alguma lógica é possível…

Sou, com efeito, péssimo a arrumar-me. Neste momento, com cerca de quatrocentas páginas, a coisa parece-se com um bazar marroquino. Há de tudo, dos poemas curtos (à laia de epigramas) a poemas de fôlego com que me atafulhei de reflexão metapoética. Enfronhado nesta feira de palavreado, procuro o melhor do melhor, alguma manifestação de génio com que sacie a fome dos meus vinte e cinco leitores e justifique horas e horas e mais horas inumeráveis de ofício.

A eliminação, porém, é dolorosa. Quer dizer, a princípio é. Porque imponho a máxima do “tudo ou nada”. Uma vez reprovada a folha, não há reciclagem que lhe valha. Nenhum poeta gosta de esbanjar vestígios de incompetência artística ou de fragilidade intelectual. Todo o poeta, pelo menos por princípio e pretensão, é divino. E também as divindades punem mortalmente. Porque também as divindades cometem fífias e delas se desgostam. E se desgostam mais das testemunhas da sua fraqueza. Pela parte que me toca, a minha divindade roça às vezes o olimpo de uma taberna.

Ato contínuo, e para não me perder mais em labirintos retóricos, direi que a eliminação age como a tempestade sobre o alcatrão: apaga-lhe os indícios da imundície. Nada, exceto a perfeição, deverá sobreviver em poesia. A lei de Darwin, no fim de contas, é também a lei da literatura! A memória do sistema, já Bloom o afirmou com todas as letras, é um processo de branqueamento contínuo, metáfora simpática para dizer apagamento. E eu antecipo-me ao tempo. Eu voluntariamente apago!

Para me compensar de tamanha empresa, faço-me acompanhar por chocolate amargo (setenta por cento de cacau). Podia ser uísque, mas julgo-me incapaz de tanta virilidade: diria como Graham Greene “I’m not Hemingway, for God’s sake!”. E o chocolate sempre é mais barato. Diga-se que mais limpo também. Diga-se, ainda, que não tão mau para a vesícula…

Não, reler-me é penoso!

E fazê-lo com um tão grande caudal de escrita será o décimo terceiro trabalho de Hércules. Cá estarei nos próximos tempos para o conseguir. Pouco a pouco, peneirando e peneirando, à cata de pepitas que, oxalá, façam do meu próximo livro um bom motivo para continuar vivo e apaixonado pela vida! Há que reconhecer: um bom poema, nascido das nossas mãos, é motivo suficiente para tanto…

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