O monge do fogo divino

Simone Eufemi
Fotografia de Simone Eufemi

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Albericiano era camponês. Aos quarenta e cinco decidiu deixar os campos, o pecúlio e a mulher para se juntar aos monges de uma ordem menor da província de Lucca.

Os filhos, todos maiores e casados, não acharam bem nem mal. À esposa não fez aquilo mossa, porque um marido negligente significava o mesmo que uma lareira sem lume. Os vizinhos aproveitaram o caso para encher a boca, satisfeitos por se verem livres de um focinho tão difícil, com crenças tão teimosas, multiplicado em gestos tão irrespondíveis.

Albericiano depressa preferiu o retiro das penhas ao interior pouco amistoso do mosteirinho onde o receberam.

Jejuava amiúde. De tal forma que o ventre mal se via. E orava. Orava com o silêncio, com os olhos, com as mãos. Para viver bastava-lhe a beleza dos restolhos, o orvalho das ervas, as penas e o pelo dos bichos que acariciava e que sabia serem duplos de Deus, se é que Deus visitava sítios como o penhascal onde se acoitou.

Nasceu a lenda de que Albericiano não precisava de se alimentar, nem sequer de raízes e gafanhotos como João Batista. Contava-se que convertia as criaturas perdidas das falperras (trânsfugas, salteadores e assassinos) em homens de fé. E que curava não apenas gafos e tuberculosos, mas todos os que definhando da cabeça ou morrendo de desgosto o procuravam.

E, no entanto, em toda a sua existência não proferira uma palavra, uma única palavra. Porque Albericiano era mudo.

Contavam que ele se nutria do fogo divino.

Como o brilho do luar sobre as folhas mádidas dos carvalhos, o monge alumiava sem tocar e ensinava sem falar.

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Cinzas

Nastya Kkvokka
Fotografia de Nastya Kkvokka

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Gosto de tocar as cinzas, de sentir o leve esboroar da sua forma frágil erguendo às narinas um olor distante de madeira consumida pelo fogo e dias de chuva e janelas altas sobre um horto de infância. Gosto de as varrer do ferro fundido da salamandra, ou do fogão, de usar um guardanapo humedecido com farrapos dessa matéria insubstancial para polir os vidros e até os metais. Gosto da limpeza que me fica quando dela liberto o espaço e à sucede saturação o ar limpo da sua ausência.

Gosto de olhar as minhas mãos e as minhas unhas manchadas, bordejadas, sujas pelo pó daquilo que existiu e se entrega ao nada sem protesto.

Desconheço texto mais belo sobre elas do que o que escreveu Robert Walser, integrado num livrinho magnífico, intitulado Cinza, Agulha, Lápis e Fosforozitos. Apetece quase ler esse texto como uma oração, como o delírio de um eremita, como uma provocação silenciosa àqueles que (como nós) vivemos inteiriçados de orgulho e confiança nas coisas materiais. Eis um excerto: «A cinza é a humildade, a insignificância e a própria inutilidade e, muito em especial, ela própria está impregnada da crença de que não serve para nada. Pode alguém ser mais instável, mais fraco e mais pobre do que as cinzas? Dificilmente. Existe algo que poderia ser mais indulgente e tolerante do que elas? Muito pouco provável. A cinza não tem caráter e está tão afastada da madeira como o desânimo do triunfo.»

Quantas vezes nos sentimos como essa cinza de Walser. E quão especial podemos ser!

13.11.2024

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Poesia

Toa Eftiba
Fotografia de Toa Eftiba

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POESIA

Há muito que leio, escrevo, coleciono e amo a poesia. As minhas estantes amparam um número considerável de volumes escritos nesta arte que os antigos gregos diziam consagrada a Euterpe e cujo interesse cresce com o passar dos anos, à medida que me dou conta do incrível poder da liberdade deste ποιείν (poein): liberdade de pensar, liberdade de sentir, liberdade de dizer.

Hoje, nas minhas aulas, raro é o aluno que escolhe um poemário para a sua leitura lúdica e autónoma. Muito raro aquele que propõe aos colegas a leitura de uma obra poética de Sophia, José Régio, Miguel Torga, Antero, Pessanha ou até de Florbela Espanca ou Eugénio de Andrade (que, pese os «maus tempos para o lirismo», como escreveu Bertolt Brecht, ainda vão aquilatando algum sucesso). Raríssimo aquele que me confessa gostar, ou sequer compreender por intuição, este género literário.

Talvez, por isso, amargurado por também esta crise, por esta lenta extinção de amor, vou pensando cada vez mais obsessivamente num modo de preservar Homero e Hesíodo, Vergílio e François Villon, Whitman e Emily Dickinson, Federico García Lorca e Anna Akhmátova. Num modo de os fazer sobreviver à grande catástrofe do esquecimento e, sobretudo, ao cataclismo da indiferença. Porque o tempo me vem ensinando que as grandes batalhas pela sobrevivência do espírito estão quase condenadas numa sociedade brutalizada e brutal, prosaica e suja dos sentimentos aos cubos de cimento que pisamos na rua.

É preciso cuidar da poesia com urgência. Urge, como no grande silo das sementes de Svalbard, resguardar o mais extraordinário poder que detêm (conjugados) o cérebro, o coração e a coragem humanos. Simplesmente, no lugar de grãos, devemos calafetar versos no seu interior.

10.01.2024

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Livros

Ler_Jilbert_Ebrahimi
Fotografia de Jilbert Ebrahimi

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Todos nós guardamos um lugar indefetível na biblioteca pessoal, um espaço onde habitam livros que descobrimos fora das sugestões académicas, por mero acaso, por sorte, por instinto, livros aos quais regressamos muitas vezes e em diferentíssimas ocasiões, livros que nos defendem da mediocridade e do miserabilismo do tempo, que ostentam o nome de um autor e uma literatura tornados nossos, livros que como uma paisagem vulcânica de Lanzarote, ou como os acordes de Joaquín Rodrigo no Concerto de Aranjuez, ou como os cromáticos feéricos de Jan Vermeer passaram a pertencer-nos pelo efeito de um amor incondicional e inconcessível.

Esses livros podem ser de poesia ou um romance, podem conter áridos núcleos científicos ou filosóficos, podem recuar a uma ilha grega do século VIII a. C. ou fazer-nos avançar na direção de um futuro irreconhecivelmente robotizado, como os de Aldous Huxley. Voltamos a eles na condição de refugiados e em fuga. Procuramos escapar a uma catástrofe. Assim, a porta da salvação fechamo-la por dentro, acendemos a luz bendita de um candeeiro e, ainda que a altas horas, pomo-nos em marcha, buscando num caminho não mapeado o reencontro com a inteligência, com a sensibilidade, com a subtileza.

Nestes dias atrozes (hoje quase ignoramos que atroz decorre do latino atrōx, ōcis, adjetivo que integra significados como cruel, ameaçador, violento, teimoso ou indomável), ler, ler esse filão em particular de livros bons, que amamos, pode aguentar-nos. Quero dizer, pode manter-nos os olhos abertos e a cabeça limpa, uns e outra sem argueiros, mascarras ou teias bolorentas.

09.11.2024

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Pat Metheny & Charlie Haden

Joshua Choate
Fotografia de Joshua Choate

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Durante anos, nas minhas viagens de automóvel por autoestradas ou caminhos secundários em direção às escolas onde trabalhei, escutei centenas de álbuns de música clássica, eletrónica, jazz, pop-rock, new age, guitarra espanhola, fado, canto gregoriano, afrohouse, alternativa, álbuns de muitos outros géneros de difícil catalogação. A escolha recaiu sempre no estado de espírito do momento, na vontade de imergir numa certa paz de empréstimo ou de iluminar todas as reentrâncias da cabeça e da alma com sonoridades enérgicas, fortes, despoletadoras por moto próprio de uma ação ou de uma reação.

Ouvir o Shout dos Tears for Fears às sete da manhã, quando se está ainda a sair do sono e a manhã entra connosco na A7, vinda das linhas longínquas do Marão, não é algo que se esqueça. Nem se esquece o efeito das notas de Elegy of the Uprooting de Eleni Karaindrou, no instante em que observamos cheios de poesia um bando de pombos que decide voar em círculos (como um cardume prateado) sobre uma floresta de plátanos e álamos cheios de cor outonal. Tão-pouco se perderá da memória Teardrop dos Massive Attack naquele instante em que a sonolência do carro nos leva ao rasto dos aviões no horizonte, na precisa fração de segundo em que o sol os interceta e eles se parecem caracóis segregando pachorrentamente a sua baba hialina.

Um álbum me acompanhou muitos meses, Beyond the Missouri Sky, de Pat Metheny e Charlie Haden. A guitarra de um e o baixo do outro foram um poderoso calmante, um apaziguador maravilhoso, para as horas de trânsito e para as outras, em que o asfalto parecia levar-me em solidão para lá de Deus. Muitas vezes escrevi em pensamento com esta banda sonora em fundo. E nunca soube, ou pude, dizer obrigado. Porque a música (como a poesia) tem de ser escutada, amada, agradecida.

05.11.2024

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A Grande Onda

Katsushika Hokusai, A Grande Onda de Kanagawa, c. 1830
Katsushika Hokusai, A Grande Onda de Kanagawa, c. 1830

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A GRANDE ONDA

Muitas vezes ocorre sermos surpreendidos por uma espécie de fadiga que pulveriza tudo aquilo de que gostamos e que parece ceifar pela raiz o tronco das nossas emoções. Sentimo-nos cambalear por dentro, ébrios de uma paralisia implacável, sonâmbulos de uma morta temporária, derribados por aquilo a que os anciãos chamam de fastio, ou os poetas de acídia, aquilo a os psiquiatras chamam de astenia ou vulgar, indiferenciadamente, desgosto, depressão, tédio.

Quando somos tragados por essa onda – e é impossível não evocar aqui aquela que Hokusai pintou, engolindo as pobres barcaças dos pescadores de Kanagawa – resta-nos muito pouco, praticamente nada, como se perdurássemos numa existência de cinzas e de silêncio.

Acontece, no entanto, sobrarem na grande viagem dos dias e dos anos alguns farrapos de milagres. Depois da fadiga, do marasmo, da paralisia, sobrevém sempre uma época de brilhantes aberturas da alma. Reacende-se nela, tal como uma chama que se aviva nos carvões mal apagados de uma lareira, o sentido da existência, o fio das palavras, o lampejo da alegria. É o tempo mais fascinante da nossa vida, aquele em que se opera a redescoberta do Eu e da Fé.

04.11.2024

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Comunicação

Ronald Plett
Fotografia de Ronald Plett

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Por vezes, ainda de olhos endurecidos pelo sono, venho ao pátio e quedo-me alguns minutos a contemplar. Vejo as linhas triplas de alta tensão, a fuselagem em movimento de um avião pelo meio delas, o rendilhado às vezes esfiapado, translúcido, das teias de aranha nas cornijas do telhado, as estradas subindo e descendo, curvando, nos sítios que foram e são toda a minha vida.

Pergunto-me se estas linhas não serão elas também uma forma de linguagem, de escrita, tal como o sol, as ervas, ou o próprio vento. Não serão uma forma de escrita cuja decifração depende em grande medida da argúcia dos olhos e do sentido da ocasião em que mergulham na realidade e a veem de outro modo?

A poeta polaca Wisława Szymborska diz-nos que «Duas vezes nada acontece / nem acontecerá. É assim sendo, / nascemos sem prática / e sem rotina vamos morrendo». É uma variante do adágio popular «ninguém nasce ensinado». As formas de comunicação do mundo são um pouco como o falso silêncio do cosmo: depende sobretudo do tipo de telescópio com que o perscrutamos. A nossa inocência cessa no instante em que descobrimos um modo de ler o que se encontra para lá de nós.

03.11.2024

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