O fim do inverno

Fotografia de Almos Bechtold

.

Esperou que a escrita voltasse.

Todas as manhãs, com o lápis afiado sobre o caderno, o escritor aguardava a primeira frase: alguém lha ditaria, algo lha faria lembrar, algures um relâmpago explodiria no cavername cerebral.

Mas a escrita não voltava.

O escritor preparara-se para essa crise. Sabia que em alturas críticas da vida a cabeça se desentende consigo mesma, que as dúvidas paralisam a imaginação, que o amor (ainda que profundo e sincero) nos esgota.

– Todos os poços secam umas quantas vezes. É assim em todo os lugares do mundo. É como uma lei matemática. – pensou.

O escritor era um homem paciente. Em cada nova manhã esperava o regresso das boas frases. Tinha o lápis aparado, o caderno pronto e macio, como um campo lavrado, a chávena de café bebida e nasalada em haustos febris. Sabia que as boas frases haveriam de regressar, de regressar como regressa a chuva, de regressar como regressou o velhaco Ulisses, de regressar como regressará inevitavelmente a fome e a peste. Era uma questão de tempo, é uma questão de tempo, sê-lo-á sempre.

Mas a escrita não voltava.

Encolerizado, o escritor pôs-se a empilhar certa noite, em começos de março, todos os seus papéis usados e por usar no pátio e regou-os com álcool. Depois deitou-lhes um fósforo.

Deflagrou, então, uma chama imensa, que bulia no ar como uma dançarina, dando estalos e mudando constantemente de cor. Vieram pessoas à varanda espreitar. Era uma visão extraordinária, as labaredas consumiam as trevas e nelas subiam em centelhas infinitas, que cantavam desde o braseiro e se confundiam com as estrelas tremeluzentes lá em cima.

O escritor, cheio de amargura, sorriu. Era uma bela fogueira.

Nessa madrugada compôs um poema. Um epitáfio. Falava da desaparição. Do muito que se nos pede às vezes por tão pouco. Da dignidade tardia das cinzas e do pó, quando o vento ou uma vassoura os empurram – e o antes dá lugar ao depois, e este a mais nada…

.

O falsário

 

Fotografia de Raul Pires Coelho.

.

– Quem é afinal este Georges Le Brun? – perguntou o Procurador.

O Oficial de Justiça deu um jeito às sobrancelhas, arqueando-as, encheu os pulmões, levantou-se, abriu um dos armários metálico gigantes, apontou com o polegar à retaguarda e fê-lo deslizar horizontalmente, de maneira a incluir toda uma estante a abarrotar de capas e dossiês atados por cordéis de ráfia.

– Isto tudo, doutor….

Depois, como quem tem uma boa história para contar, encontrou uma frase sua disse-a num gozo antecipado.

– O doutor sabe. Em Montreal, os invernos são especialmente cruéis para quem é de fora…

O Procurador estava prestes a conhecer a prodigiosa biografia do maior falsário de literatura de Sainte-Anne-du-Lac no Quebeque, de todo Canadá, provavelmente do mundo inteiro.

Georges Ambroise Roger Le Brun nasceu em 25 de agosto de 1944, em Brénac, na margem direita do rio Vézère, na comuna de Montignac. A singularidade da data e a proximidade da gruta de Lascaux criaram no rapaz uma certa crença de que a sua vinda ao mundo fora de algum modo providencialmente preparada para grandes feitos. Na escola sempre os professores o consideraram um aluno excelente, tendo aprendido e dominando vários idiomas (vivos e mortos), entre os quais o alemão, o neerlandês e o russo, o latim, o grego, o hebreu e o aramaico. Desde os tempos universitários tornou-se um incansável perseguidor de arquivos, frequentador assíduo de cronicões e livros hagiográficos, leitor ávido de biografias, colecionador de histórias raras, mas também estudioso de caligrafia e, sobretudo, de literatura comparada. Nesta última área fez o seu doutoramento na Sorbonne, com vinte e sete anos, e na mesma academia permaneceu como professor agregado até surgir o convite que o fez atravessar o Atlântico, rumo à Universidade de Montreal. Publicou dezenas de livros, centenas de artigos, milhares de recensões para os jornais da elite intelectual francófona.

Mas, curiosamente, foi na escrita de Kafka que os seus olhos poisaram definitivamente. Sentiu ciúme muitas vezes de Max Brod, figura que lhe pareceu indecorosamente bafejada pela fortuna, não apenas por a si ter o genial escritor confiado testamentariamente escritos que mais ninguém conhece, como por ter privado, conhecido e sabido de Kafka o que jamais mortal algum (nem porventura Felice Bauer) pôde saber.

Georges Le Brun leu os romances de Kafka com obsessão. Depois de anos de estudo aturado, principiou a escrever ao estilo do escritor de Praga, acalentando a ideia de poder acrescentar à sua bibliografia e à que ficou nos cofres de Brod escritos inéditos, manuscritos, novidades com que o mundo dos literatos jamais sonhara.

– Não me vai dizer que este Le Brun inventou obras de Kafka? – sorriu o Procurador.

– Inimaginável, doutor… Este tipo conseguiu enganar alguns dos decanos dos melhores centros de literatura, apresentando papéis autenticados, cadernos, autógrafos de alguns dos maiores autores do século XX (Kafka foi apenas um deles) e vendeu-os a leiloeiras, institutos, colégios, bibliotecas a preços absurdos.

 – Incluindo a do Congresso dos Estados Unidos. – completou o outro, dando um jeito nos óculos.

– Incluindo a do Congresso dos Estados Unidos. – confirmou o Oficial de Justiça.

Georges Le Brun sentiu na juventude um fascínio enorme pela figura de Han van Meegeren, o fracassado pintor holandês que impingiu vermeers aos nazis. O mesmo fascínio fê-lo descobrir Tommaso Debenedetti, jornalista italiano, autor de entrevistas falsas que correram mundo, confundindo tudo e todos com opiniões de figuras públicas que trazia para a ribalta, sem que as mesmas tivessem alguma vez proferido o que quer que fosse do que Debenedetti publicava. Mais recentemente, no início do milénio, Le Brun divertiu-se com as pirâmides que Semir Osmanagićh descobriu na sua Bósnia natal. O mundo torna-se maravilhosamente mais rico, mais criativo, mais liberal com os falsários.

Após uma visita à Bodley, em Oxford, durante a qual mergulhou com penetrantíssima atenção nos sagrados papéis deixados a Max Brod, Le Brun concebeu o romance que Franz Kafka gostaria de ter escrito. Chamou-lhe O Labirinto. Nele, o conhecido agrimensor K. cava um labirinto, profusamente preenchido de corredores e de memórias, cada vez mais fundo (como os círculos infernais de Dante) e, osmoticamente, cada vez mais dentro da sua cabeça, como se escavando a terra escavasse a alma e a consciência, até chegar aos primórdios, ao lugar absolutamente escuro onde a picareta, batendo em pedra, fez saltar a chispa que deu origem à sua própria vida. Um romance freudiano, o mais freudiano de todos os que o checo compôs.

Para dissipar dúvidas autorais, estudou até as elipses, as interrupções que Kafka faria num texto de publicação incerta, como se tomado de assalto por dúvidas e por um cansaço progressivamente mais letais. O Labirinto não seria publicado pela forte razão de não ser imperfeito, mas tão perto de o ser que o leitor ajuizado descontaria na fúria de Kafka o valor da obra deixada praticamente completa. Georges Le Brun cometeu o atrevimento de forjar uma carta recebida de Dora Diamant, na qual a amente aludia à muita expetativa em torno do livro. Não contente com isso, depois de pacientemente o ter redigido com caneta de aparo, com tinta e sobre papel que metodicamente envelheceu na cave, junto com garrafas de moscatel e serrim, Le Brun sobrepôs rasuras, hesitações no alemão, glosas, sinaléticas iguais às que consultou nos manuscritos de Oxford. Fê-lo três vezes. Esperou vinte e um anos pelo envelhecimento apressado do original. Depois pediu por ele dois milhões e meio de dólares. E obteve-os.

– Diz-me que há outros. Deixe-me quem são os outros

O Procurador retirava dossiês, deslaçava capas, abria ficheiros. Era um depósito monstruoso de provas.

– Vai divertir-se. O tipo foi Hemingway, Gertrude Stein, Brecht, Simone Beauvoir, até Shakespeare. Andava ultimamente a traduzir evangelhos apócrifos. Não o tivesse a Interpol apanhado a tempo, tínhamos aí outra Bíblia.

– Caramba. – disse o Procurador. – Este tipo promete…

– Também o que se pode fazer em Montreal, no meio do gelo?

Ambos quiseram rir. Mas rir seria estranho, como quem receasse parecer demasiado idiota perante um caso difícil, impossível de adivinhar.

.

O estrangeiro

Fotografia de Raymond Hoffmann
.

Empoleirado no alto rochoso das serras nevadas, no cimo dos juníperos e dos pinheiros bravios, o vento torna os dias nesta fase do ano mais insuportáveis. Aqui chamam araucárias aos pinheiros e “El triste” ao vento. É uma metonímia. Não é o vento que é triste, mas a solidão daqueles que se aventuram há séculos a dividir esta paisagem com as lamas e os condores e os coiotes. Mais a sul, na Patagónia, erguem-se os contrafortes das Torres del Paine, uma das rotas de peregrinação do turismo internacional. Para norte e oeste estende-se o enxuto Atacama, santuário do silêncio e das estrelas, dos remoinhos de pó, das paisagens lunares, dos astrofísicos, dos arqueólogos.

Aqui não há forasteiros. Há gente pobre, pastores e tecelões, oleiros e obstinados cultivadores de batata e de uma espécie de milho raquítico, mas saboroso, a quem dão o nome de “pan del diablo”. É realmente uma proeza que a agricultura sobreviva em latitude e altitude tão duras.

Não há forasteiros exceto um. Já a coletiva memória se esqueceu de que veio de fora, há tanto tempo que isso foi, aquele que habita uma das casas mais altas da aldeia. Falamos de Frei Juan Miguel Ibañez, o padre, o doutor, o filósofo, o eremita que gasta os seus dias há mais de cinquenta anos em oração, contemplação, leitura e escrita.

Entrando no seu casebre entra-se numa biblioteca. O ar entrincheirado por baixo da porta volta-lhe as folhas, faz tremelicar a luz da vela, sacode-lhe as farripas brancas do cabelo. Está habituado a esta brincadeira. Há muito que deixou de pertencer às preocupações do mundo e se concentra na sabedoria dos homens. Grossos fólios, tomos, atlas, dicionários, missais, textos de teologia, exemplares da Bíblia e de exegese bíblica, manuais de anatomia, biografias, volumes de poemas e de teatro, discursos e tratados filosóficos empilham-se nas suas paredes. É tudo o que possui. Foi condiscípulo de Hubert Reeves, aluno outrora de mestres do pensamento moderno, sacerdote admirador da vida dos santos anacoretas. Hoje sente-se um estrangeiro no mundo e por isso lê-o, estuda-o, interpreta-o.

– Ler é o meu modo de agradecer à Providência. Só Deus poderá dizer-me quando parar.

Os aldeãos respeitam-no, procuram-no às vezes, estranham o seu parco comer, sentem-se fascinados pelas palavras tocadas de música que ele usa, mais belas do que o som da flauta ou da ocarina. Mas nunca o entenderam verdadeiramente.

– O que faz um homem da cidade, um homem do outro lado do mundo, aqui? Foge de quem? Que crime terá cometido? Como poderemos nós saber se é verdade tudo quanto ele afirma?

O padre Juan Miguel Ibañez amassa o seu próprio papel, pacientemente, com materiais e métodos arcaicos. Deixa secar longas tiras que depois corta com precisão, servindo-se do gume de uma obsidiana. Cose os seus próprios cartapácios, recobre os seus livros com peles de animais. Quando não está nestes ofícios, nem a rezar, nem a ler, nem a estudar os nativos, gosta de subir aos píncaros azulados das montanhas desta parte do Chile e de anotar nos seus cadernos o sopro intraduzível da existência.

– Existir é o mais extraordinário milagre sobre o universo. Tudo o que existe é o prodigioso dedo de Deus sobre o vazio, irmão do mesmo ar que os lábios do Senhor sopraram sobre as narinas de Adão. E por isso todas as estrelas e todos os planetas, todas as plantas e todos os animais, todo o pó e todos os pensamentos são a mesma fórmula e o mesmo intento e a mesma miraculosa revelação…

Meio século de escrita é mais do que tiveram alguns dos grandes autores da história da humanidade para compor e criar. Juan Miguel Ibañez escreve sobre o sentido da vida e sobre a perfeição de todos os corpos, escreve sobre a espantosa alegria das palavras combinadas umas com as outras e sobre o espírito original que existe em cada poema, escreve sobre a sublime e sobre a miserável evolução da nossa espécie, dada a capítulos de luminosa sensibilidade e a capítulos de abjeta selvajaria, escreve sobre a matemática omnipresente nas formas físicas e sobre o profundo mistério que se esconde do outro lado da cortina da ignorância humana.

– Porque quererá o Senhor esconder-nos a verdade toda? Quem seríamos nós se a conhecêssemos? Destruí-Lo-íamos? Destruir-nos-íamos? Será o nosso próprio fim o propósito da Criação?

A tinta dos cadernos mais antigos é já ténue, como uma tatuagem semiapagada. Talvez ninguém venha a aceder a este manancial de literatura e de filosofia e de antropologia. Ultimamente, um pesadelo ocupa-lhe a cabeça com persistência durante a noite. Vê-se no meio de um incêndio, de um fogo voraz que tudo consome, madeiras, papel, a sua própria carne. Sofre com este sinal, julga que Deus lhe envia uma mensagem.

– Se o Senhor assim quiser, assim será. Do pó ao pó. Sempre soubemos que tudo é pó, vaidade, vento que passa…

.

O padre

Young priest short-story
Fotografia de Nini Filippini

Ao sol está agora uma roupa tão branca que parece, sob a força do primeiro, uma cascata de lâmpadas acesas. O jovem padre olha-a enternecido. Gosta de contemplar a castidade onde quer que ela se encontre.

Na sua terra natal, a esta hora cheirará ao preparo das cozinhas, a alho e a azeite, a refogados e a estrugidos. Em breve rescenderá a peixe frito. No lugar onde costumava beber o seu café matinal, três esquinas adiante da velha Sé de pedra basáltica, ver-se-á o recorte da costa no Atlântico, a sombra azul das ilhas desertas, e há de misturar-se no corpo atento de quem ali um instante repousar o lume roxo dos jacarandás, a aragem das casuarinas e araucárias, o travo vestigial e amargo do café, o paladar doce do papel velho, o ruído manso dos transeuntes na Baixa e pela marina.

Mas vive agora na grande cidade. Aqui são o rio e o Cristo gigante de braços abertos que dominam a sua atenção. E essa luz forte que chega a doer. E esse rumor indecifrável de um milhão de coisas simultâneas e em conflito entre si.

O padre bem se esforça por anotar ideias, juntar frases, trazer de volta o seu dom. Depois do serviço religioso, vem até esta parte. Caminha largos minutos a pé, em absoluto silêncio, procurando absorver a paisagem. Visita os jardins, vê os telhados, escuta os barcos no meio do azul. Os novos paroquianos saúdam-no. Ele acena-lhes. A brisa de junho é macia, impregnada no aroma das tílias.

Morar aqui não é assim tão diferente de viver lá. 

E, no entanto, a poesia ainda não regressou. A sua alma verdadeiramente virá quando ela vier, somente quando ela chegar. Entristece-o saber que assim é e que assim será. É uma espécie de pecado mortal que não pode sequer confessar.

Se o fizesse, quem o absolveria?

.

Coisas tão perfeitas

balcony, varanda
Fotografia de Marc Huybrighs

.

Ao sol está agora uma roupa tão branca que parece, sob a força do primeiro, uma cascata de lâmpadas acesas. Devo dizer que nunca vi uma cascata assim, é uma metáfora, pelo que a expressão é meio absurda. Mas também nunca a roupa me pareceu faiscar tanto como esta que vai batendo no lado de fora da parede, produzindo às vezes um ruído mais forte, que, junto com a luz, a torna viva e bela.

Empurra-a uma corrente amornada, de brisa para vento, já de mistura com a fragrância de certas flores e plantas de fim de inverno. A roupa cheira maravilhosamente a sabão marselha, e esse perfume enovelado no primeiro entra-me pela janela como um saltitão inesperado e faz-me sorrir. Sorrio muitas vezes a coisas destas género, a episódios (digamos) de importância nenhuma a que tendo amar mais do que às coisas de importância capital.

Desde que se acorda anda-se à volta de meia dúzia destas ninharias para com elas atar um poema. Infelizmente, o peso das prioridades, a sombra delas, o zumbido das suas horríveis asas frenéticas impede-nos de chegar ao âmago das imagens e dos sons, das palavras que se procuram.

Uma pessoa lida épica e estoicamente, silenciosamente, com problemas deste jaez. A chávena do café secou, o caderno com as rasuras lembra uma confusão de fios telefónicos, a caneta tapada e destapada é um homem que não sabe se é capaz ainda de amar a sua mulher. O proveito é escasso, a mesa é o palco de um drama anónimo (nada anódino), os papéis amarrotados fazem doer as mãos, e mais que elas os pulsos, e mais que os pulsos os olhos.

Nessas alturas apetece o disparate.

Por isso, abre-se uma janela e fica-se a espantar. Os clarões descem até nós pelo telhado, saltitam e gorjeiam pelo meio dos algerozes, ondulam no estendal, acendem o mármore do parapeito, cintilam nos vidros distantes, correm no céu à velocidade das nuvens. Ou então, folheiam connosco o livro antigo que não paramos de visitar, renascem nas antigas estrofes sublinhadas a lápis, explodem na coda de um canto que o autor escreveu para um filme. Os clarões são castos, sensíveis, exatos, difíceis de tão precisos que são.

O poema dentro de nós volta a dar sinal de si. É como um tremor de terra. Um pequeno sismo para que saibamos que a água continua a jorrar, ouro freático debaixo de dolorosas camadas de pedra.

Tira-se outro café da máquina. Abre-se um caderno novo. Experimenta-se outro aparo, outra tinta, outras sílabas viscerais. Sob a mão protetora do livro visitado, escavamos o nosso próprio sulco no silêncio. A manhã vibra de viva, é imprescindível que o poema à sua maneira o diga, o implique, o conquiste. Devo notar que a catarse é perfeita.

Assim o escrevi. 

COISAS TÃO PERFEITAS

a bigorna de Amakuni,
os movimentos de Má Vlast,

as formas híbridas, paradoxais, engenhosas de Maurits Cornelis Escher

a varanda, o impossível,
bardana, aspargo, alecrim, calêndulas,
como se pudesse cada manhã persegui-lo melhor ou pela primeira vez

.

Volto às crónicas

Jay Satriani
Fotografia de Jay Satriani

.

Recomeçar é o mais difícil. Destapo, tapo, volto a poisar a caneta, ponho-me a andar pela casa, a tocar nos objetos, a retocar-lhes a posição (as gavetas guardam ainda segredos), a anotar mentalmente os ruídos que me chegam de todas as partes, regresso à mesa, abro o caderno, destapo a caneta, a cabeça parece oca, cheia de ecos e de pó, digo em voz alta coisas obscenas, a noite sufoca, tapo e volto a poisar a caneta.

(«Deves fazê-lo com tesão, com paixão, com amor, com tudo. De outro modo não o faças!»)

A casa é curta, as coisas estão tão perto que lhe escuto o respirar, cansa-me a polpa dos dedos. Não há meio de descortinar um fio condutor, uma ideia razoavelmente capaz, um devaneio suficientemente promissor. Falta-ma às palavras profundidade, abertura, sentido. Sufoco nelas como numa gruta. Sufoco. Ponho-me a caminhar de novo às escuras, num derradeiro esforço de espeleólogo, através de obstáculos invisíveis e intransponíveis.

(«O pior de um escritor é esse desespero de homem falido, de macho que confessa a sua impotência na cama!»)

Às vezes o sofá é uma solução. Embrutecido como uma alimária no meio do lamaçal, ligo a televisão e ponho-me a clicar à toa. Às vezes tenho sorte, quando me esbarro com uma dessas relíquias da era monocromática. Há dias revi um programa do Bob Ross (o mesmo despenteado volumoso, a mesma camisa, o mesmo timbre paralisante da voz, os mesmos nomes fabulosos na paleta (branco titânio, azul prussiano, siena escuro, ocre amarelo, castanho van dike), o mesmo «Beat the devil out of it», o mesmo riso cheio de bonomia). Mas a maior parte limito-me a fechar os olhos, a esperar que as coisas deslizem, circulem, corram no movimento de caleidoscópio por dentro dos olhos. Adormeço entre frases soltas como um elefante sedado.

(«Quando sabes que não podes ganhar a guerra, limita-te a garantir que não morres na guerra. Dias melhores virão.»)

Às vezes os sonhos escrevem tudo sozinhos. Vejo-me de repente no meio de uma praça ampla, ornada de colunas brancas e estátuas de mármore. Tu voltaste inteira, com o teu rosto bonito, a tua voz melodiosa, com o teu decote generoso, o teu medo de errar as perguntas e não saber ouvir as respostas. É horrível. Beijamo-nos e fazemos amor, mas num piscar de olhos estamos de costas voltadas, tu a choramingar, eu a pensar que era bom desaparecer num passe de mágica, poder escapulir-me como uma lagartixa pela fresta de uma parede. Tudo tão vivo e tão claro, tão competentemente paragrafado, que acabo por acordar com os olhos cavados e uma sensação de vómito na boca.

(«Não escrevas com o aparo. Tão pouco com as palavras. Escreve com a vida. Que ela desenhe círculos de ar e de luz no teu caderno.»)

Recomeçar é uma tarefa desmedida. Há rabiscos e rasuras nas folhas que violento com ímpetos de homicida. À minha volta, vindos da janela, há cheiros complexos (talvez dessas plantas repletas de veneno nesta terra que as multiplica: umbelas de cicuta, tintureiras infestantes, ramos de lobélias, cachos de dedaleiras), há a presença multiplicada dos vizinhos desamparados pela inteligência (insultando-se por causa dos estacionamentos, do fedor provindo dos sacos do lixo, do patear e do ganir do cachorro), há o ácido paladar das ameaças que faço a mim mesmo, indeciso entre sair e ficar, continuar ou desistir.

(«Convenhamos, meu caro: a literatura excita, a mediocridade oscita!»)

Debato-me entre querer muito e não querer mais, entre sentar-me à mesa de trabalho, com a Pelikan alinhada com o Moleskine, e sentar-me à mesa da cervejaria Munique, com uma Erdinger a escorrer gotas de âmbar e um prato de tremoços a compensar-me aos poucos a poética desapiedada. De maneira que penso nas palavras do velho professor de Estudos Literários e me ocorre que a maior humilhação é não perceber o instante em que se é humano e não se tem forma para subir ao Olimpo, o pavoroso instante em que um indivíduo puxa de um cigarro e renasce na miserável solidão de saber que tudo é inútil e estéril como vento que passa.

.

Isto

Micha Rainer Pali
Fotografia de Micha Rainer Pali

.

Ultimamente rasuro muito. Rasuro folhas de papel reciclado e rasuro pensamentos. Rasuro conversas e silêncios. Rasuro convites para almoçar e idas ao cinema. Rasuro velhas preferências e a possibilidade de encontrar para elas um remédio, um remendo, um refrigério. Rasuro planos e sonhos e antigos devaneios de adolescente. Rasuro intenções, recordações, ilusões. Rasuro até a música, até Mozart, Bach, Ravel, Debussy. Rasuro. Quero dizer, rasuro imenso, sem contemplações, sem piedade, sem meios termos, sem pensar duas vezes, sem me importar com os destroços, sem imaginar a incomensurável tristeza da nossa pessoa em cinzas, sem meditar devidamente na dor incontida do tempo escoado à toa, desperdiçado, imprestável, empeçonhado, desvivido…

Por vezes acontece-nos isto.

Precisarmos de recomeçar tudo. Precisarmos de recomeçar tudo do zero. De recomeçar abaixo de zero. De recomeçar do lugar maldito onde nos encalhou a alma.

Por vezes é assim.

Precisamos dos ossos estatelados, quebrados, macerados, precisamos de fazer com eles um tripé, um bordão, uma escada. Precisamos de sair do poço. De seguir em frente. De sentir a dor e vencer a dor e sentir que é nossa outra vez a vida que sempre foi nossa.

Por vezes não há outra forma.

É quando estamos fartos. Quando desconfiamos que fizemos tudo mal. Quando descobrimos que fomos desonestos com a consciência. Quando esgotamos o repertório de truques, malabarismos, fantasias e nos vemos olhos nos olhos.

– Chiça, que merda é esta?

Quando percebemos que levámos os olhos à pior das miopias. E nos damos conta de que nada nos liga já à infância. E se tornou evidente que a vida que temos pela frente é a partir de agora uma questão de tudo ou nada. Quando não suportamos a misericórdia das promessas. E sabemos que há outro modo de ouvir Mozart, Bach, Ravel e Debussy. Outro modo de tocar as palavras. Outra forma de enlaçar os pensamentos. De preferir. De querer. De aceitar. De partilhar. De recordar. De planear. De pertencer. De resistir.

Porque às vezes há outra forma.

Os domingos deixam de ser tão horríveis. As noites deixam de ser tão implacáveis. As doenças deixam de ser tão definitivas. Os ataques de rabugice deixam de ser tão veementes, dementes, consequentes.

Porque às vezes é assim.

Precisamos de dar pontapés, murros, cabeçadas à nossa teimosa misantropia. Precisamos de reaprender a respirar. Precisamos de ouvir sobre a nossa falta. Quero dizer, da falta que fazemos. Precisamos que nos lembrem que há um chão onde nos esperam de pé. Precisamos de encontrar uma boa resposta para todas as grandes perguntas.

Porque às vezes é assim.

Aprende-se a somar e a subtrair o mau humor, os narcisismos, egoísmos e snobismos, os arroubos infantis, os arroubos antissociais, os arroubos de toda a espécie, os vícios, as más finanças, a profissão detestável, as teimosias, as hipocrisias…

– Chiça, que merda é esta?

Um tipo rasura, rasura, rasura. Vê-se diante do espelho, considera, cisma, reflete, encontra a prova de que é humano e sempre foi. Um tipo sente em si a verdade, sente-a circular num jorro de catarse ao longo da alma, entre as pregas do cérebro, nos ossos, do posponto da pele às secreções. Um tipo limpa-se. Um tipo lava-se. Um tipo reconhece-se. Um tipo queima a pele velha. Um tipo entrega-se a uma cura sem tempo certo. Rasura o caderno, rasura os pensamentos, rasura as conversas, rasura o silêncio, rasura os convites para almoçar, as idas ao cinema, rasura os planos e os sonhos, os devaneios de adolescente, rasura intenções, recordações, ilusões, rasura até a música, Mozart, Bach, Ravel, Debussy, rasura tudo, tudo, tudo! Porque às vezes não há outra forma e há esta forma. Porque a solução é um milagre pessoal e não há certezas. Porque não há somente isto. Isto. Quero dizer, isto!

.