História do Padre Angélico

Vulcão, Kanenori
Fotografia de Kanenori

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Saiu de Fiumicino em direção à Sicília, como faz todos os anos. Entrando no vulcão, cujo cone fez o tempo parcialmente derruir num amontoado de lixo basáltico, põe-se a alisar o solo cinzado e sujo onde, com a ajuda de uma vara, faz perfurações para nelas sepultar bolotas de carvalho vermelho. Lança-lhes um gole de água e persigna-se. Depois é com Deus e com a natureza.

Um ato tão incompreensível pede pelo menos uma explicação excelente.

Num dos seus sonhos de juventude, a pessoa de quem falamos viu-se num bosque primitivo, em cujo chão folhas recortadas brilhavam sob o efeito da lua e onde uma neblina translúcida se mexia a cada passo que dava. Não havia aí ruídos, intrusos, serpentes tentadoras. Via-se, nesse sonho, tão velho que as suas mãos aparentavam o aspeto calcinado de raízes. E tão feliz que não duvidou que o único lugar da terra igual ao de Adão fosse um onde a terra se pudesse reinventar, lavando-se (como num banho de vitriolagem) do bodum humano.

Aos vinte e cinco anos, já depois de ordenado, deixou aqui as primeiras sementes. Agora, no miolo do caldeira adormecida, vão brotando a esmo os miraculosos troncos da sua teimosia. Ou da sua loucura. Decidiu que a localização da choupana fica para mais tarde. Quando as árvores tiverem atingido a altura de um ciclope, virá construí-la, edificar o seu eremitério, provar a modernidade do seu sacrifício.

Onde antes era uma garganta para o inferno, Nosso Senhor quererá outro Éden. Desta vez sem Evas ou répteis. Sem anjos com espadas de fogo.

Um ato tão incompreensível deve ter outra explicação que desconhecemos.

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Logótipo Oficial 2024

O tradutor

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Fotografia de Megumi Murakami

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«Não desejes o que não sabes encontrar, não busques a fonte do que não podes compreender. Uma âncora desce da tua alma para que não se te confundam os olhos, não te ensoberbe a língua, não se te tresmalhe a razão.»

Sem grande esforço, o noviço ia traduzindo do latim as palavras piíssimas de São Germano, desatento a anacronismos como o da âncora que o eremita jamais poderia ter usado como metáfora, se por inventar se encontrava o mecanismo. Não era mau traduzir. Noutro século teria ele de replicar aquelas palavras medievas, enchendo com laboriosa e abnegada e infatigável mão o seu pergaminho no Scriptorium de todos. Precisaria de uma pena de ganso, e de tinta avonde, e de arte de desenho. Agora bastava-lhe um dicionário e uma certa capacidade equitativa de disfarçar bocejos e de provocar à sorrelfa os outros irmãos.

Porque raio lhe atribuíra o mestre um dos velhos não fazia ele ideia? Seria punição, ou má vontade, possivelmente ambas. Só por castigo se obrigava alguém a mergulhar num discurso tão resseco (ou recesso, tão insosso, tão ressentido) de um homem que via, que ouvia, que pressentia Deus no brilho da mica, no farfalhar das árvores, no hálito dos lobos, mas que desconfiava do sopro sulfuroso das minas, do sibilar das ervas e, sobretudo, do olhar das mulheres.

«Porque diabo o prazer pode ser tão mau, se tudo o que a ele diz respeito se parece tão dúlcido, saboroso e vivo? Tão próximo do maravilhamento e do êxtase divinos?»

O moço fazia perguntas, mas mantinha-as bem calafetadas na cabeça. Não eram sequer perguntas. Talvez desabafos, corredios pensamentos, entoações da sua retórica juvenil já ornamentada. Nada que uma careta ocasional, vinda de um dos cantos da grande sala, logo não abafasse e lhe provocasse um ar de contidíssimo riso.

«Não cobices o esterco do mundo.»

De quando em quando, as palavras do santo iam longe de mais.

«Não macules a nívea candura da tua alma com os pífios apetites da carne.»

Traduzir era o seu forte. Mesmo se tropeçando, como acabámos de notar, em pleonasmos. O moço cismava na forma libidinosa de certa rapariga morena que todos os dias o ia espiar, para lá das grades do claustro. O bater do coração era então um rufar de sangue. Porque havia de ser mau, perverso, pecaminoso, amar?

Traduzia sem esforço. Enquanto o fazia, as palavras iam e vinham. Dificilmente ficavam.

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O estrangeiro

Fotografia de Raymond Hoffmann
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Empoleirado no alto rochoso das serras nevadas, no cimo dos juníperos e dos pinheiros bravios, o vento torna os dias nesta fase do ano mais insuportáveis. Aqui chamam araucárias aos pinheiros e “El triste” ao vento. É uma metonímia. Não é o vento que é triste, mas a solidão daqueles que se aventuram há séculos a dividir esta paisagem com as lamas e os condores e os coiotes. Mais a sul, na Patagónia, erguem-se os contrafortes das Torres del Paine, uma das rotas de peregrinação do turismo internacional. Para norte e oeste estende-se o enxuto Atacama, santuário do silêncio e das estrelas, dos remoinhos de pó, das paisagens lunares, dos astrofísicos, dos arqueólogos.

Aqui não há forasteiros. Há gente pobre, pastores e tecelões, oleiros e obstinados cultivadores de batata e de uma espécie de milho raquítico, mas saboroso, a quem dão o nome de “pan del diablo”. É realmente uma proeza que a agricultura sobreviva em latitude e altitude tão duras.

Não há forasteiros exceto um. Já a coletiva memória se esqueceu de que veio de fora, há tanto tempo que isso foi, aquele que habita uma das casas mais altas da aldeia. Falamos de Frei Juan Miguel Ibañez, o padre, o doutor, o filósofo, o eremita que gasta os seus dias há mais de cinquenta anos em oração, contemplação, leitura e escrita.

Entrando no seu casebre entra-se numa biblioteca. O ar entrincheirado por baixo da porta volta-lhe as folhas, faz tremelicar a luz da vela, sacode-lhe as farripas brancas do cabelo. Está habituado a esta brincadeira. Há muito que deixou de pertencer às preocupações do mundo e se concentra na sabedoria dos homens. Grossos fólios, tomos, atlas, dicionários, missais, textos de teologia, exemplares da Bíblia e de exegese bíblica, manuais de anatomia, biografias, volumes de poemas e de teatro, discursos e tratados filosóficos empilham-se nas suas paredes. É tudo o que possui. Foi condiscípulo de Hubert Reeves, aluno outrora de mestres do pensamento moderno, sacerdote admirador da vida dos santos anacoretas. Hoje sente-se um estrangeiro no mundo e por isso lê-o, estuda-o, interpreta-o.

– Ler é o meu modo de agradecer à Providência. Só Deus poderá dizer-me quando parar.

Os aldeãos respeitam-no, procuram-no às vezes, estranham o seu parco comer, sentem-se fascinados pelas palavras tocadas de música que ele usa, mais belas do que o som da flauta ou da ocarina. Mas nunca o entenderam verdadeiramente.

– O que faz um homem da cidade, um homem do outro lado do mundo, aqui? Foge de quem? Que crime terá cometido? Como poderemos nós saber se é verdade tudo quanto ele afirma?

O padre Juan Miguel Ibañez amassa o seu próprio papel, pacientemente, com materiais e métodos arcaicos. Deixa secar longas tiras que depois corta com precisão, servindo-se do gume de uma obsidiana. Cose os seus próprios cartapácios, recobre os seus livros com peles de animais. Quando não está nestes ofícios, nem a rezar, nem a ler, nem a estudar os nativos, gosta de subir aos píncaros azulados das montanhas desta parte do Chile e de anotar nos seus cadernos o sopro intraduzível da existência.

– Existir é o mais extraordinário milagre sobre o universo. Tudo o que existe é o prodigioso dedo de Deus sobre o vazio, irmão do mesmo ar que os lábios do Senhor sopraram sobre as narinas de Adão. E por isso todas as estrelas e todos os planetas, todas as plantas e todos os animais, todo o pó e todos os pensamentos são a mesma fórmula e o mesmo intento e a mesma miraculosa revelação…

Meio século de escrita é mais do que tiveram alguns dos grandes autores da história da humanidade para compor e criar. Juan Miguel Ibañez escreve sobre o sentido da vida e sobre a perfeição de todos os corpos, escreve sobre a espantosa alegria das palavras combinadas umas com as outras e sobre o espírito original que existe em cada poema, escreve sobre a sublime e sobre a miserável evolução da nossa espécie, dada a capítulos de luminosa sensibilidade e a capítulos de abjeta selvajaria, escreve sobre a matemática omnipresente nas formas físicas e sobre o profundo mistério que se esconde do outro lado da cortina da ignorância humana.

– Porque quererá o Senhor esconder-nos a verdade toda? Quem seríamos nós se a conhecêssemos? Destruí-Lo-íamos? Destruir-nos-íamos? Será o nosso próprio fim o propósito da Criação?

A tinta dos cadernos mais antigos é já ténue, como uma tatuagem semiapagada. Talvez ninguém venha a aceder a este manancial de literatura e de filosofia e de antropologia. Ultimamente, um pesadelo ocupa-lhe a cabeça com persistência durante a noite. Vê-se no meio de um incêndio, de um fogo voraz que tudo consome, madeiras, papel, a sua própria carne. Sofre com este sinal, julga que Deus lhe envia uma mensagem.

– Se o Senhor assim quiser, assim será. Do pó ao pó. Sempre soubemos que tudo é pó, vaidade, vento que passa…

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O paraíso

Fotografia de Bragi Ingibergsson
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O velho Malojo entrou na cozinha com as giestas secas e duas laranjas apanhadas pelo caminho. Roubar fruta não era pecado, pecado era deixá-la aos pássaros ou a apodrecer nos ramos. Dobrou as giestas de modo a caberem no fogãozinho e pôs-lhes lume. A névoa azul encheu a penumbra até à soleira, vogando entre as paredes mascarradas e o teto baixo. Depois colocou a cafeteira encardida sobre a placa de ferro, procurou o frasco da chicória e trouxe-a para cima da mesa. Possuía ainda o suficiente para duas ocasiões. Pão também lhe restava algum, assim como toucinho, e juntava a tudo isto as duas formidáveis laranjas trazidas da propriedade do antigo patrão.

Quando a noite vinha, gostava de ligar o aparelho de rádio e de se entreter com as notícias. Também gostava de chocalhar as ave-marias convencionais e de soltar as suas duas ou três lágrimas de cada novo dia. Ligou, portanto, o aparelho e pôs-se à escuta. Era a hora de ouvir e rezar.

Do outro lado do mundo, na realidade a somente duas centenas de quilómetros de distância, os craques da Seleção preparavam o desafio com a França. Ronaldo em dúvida constituía indubitavelmente o tormento do apressado jornalista. Sempre o fado dos portugueses, sempre o nunca poder contar com a sorte para nada, sempre a miséria de sofrer até ao último instante, a ver se sim se não.

Depois, noutro tom, o mesmo jornalista fanhoso informou que prosseguiam as buscas da Judiciária no escritório de um conhecido empresário do futebol e na sede dos clubes mais importantes do principal escalão. A mesma descarada vergonha do costume, pensou o velho Malojo. Isto vai mal, a roda do mundo está empenada, uns a trabalharem por uma côdea, a terem em casa mulher e filhos para manterem, outros com categoria a pilharem milhões.

O velho Malojo não se dera conta ainda de que os pais de família já não sustentavam sozinhos o rancho e que as mulheres, entretanto, se tinham transformado em pais de família. E também que o Estado, o Estado que lhe enviava todos os meses duzentos e trinta e oito euros, fazia as vezes dos pais de família, sustentando o rancho, incluindo as mães e também os modernos pais de família.

Mas não teve tempo para lamentar o mau estado o futebol. A Renascença mudava o foco da atenção dos ouvintes, seguia para Fátima onde de seguida se iria recitar o terço.

O velho Malojo espreitou à porta. O céu admitia entre as suas tonalidades cores tão diferentes como o magenta, a púrpura ou o laranja, ou mesmo o negro-carvão de uma banda e na outra o azul celeste, o azul ferrete e de novo o negro, à medida que o horizonte se afastava do lugar do sol posto. Naquele barranco não morava mais ninguém. Ele era um eremita. Deus, Nosso Senhor, dava-lhe o bastante para sobreviver, para ser digno, para não alimentar ambições ou sobressaltos. De algum modo, pensava o velho Malojo, a sua vida era privilegiada, ele tinha tudo, aquilo era como viver no paraíso.

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O eremita

Fotografia de Derek Galon

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I

A meio e no alto do bosque fica o eremitério. Escassa gente atravessou estes portões nos últimos cem anos e nas centúrias anteriores quem o fez pôde descrevê-lo como nós o descreveremos agora: é um lugar ermo, tosco, bendito, impoluto.

Os adjetivos nada dizem, reconheçamos. Haverá quem deseje um relato pormenorizado sobre as suas escadarias, sobre as suas varandas e jardins incultos, sobre a cozinha com forno e celas desertas, sobre o oratório. Mas nem esses serão bem sucedidos. Não há que descrever mais do que paredes e arestas descarnadas, granitos com manchas de humidade e tenebrosos entrançados de silvas ameaçando o lintel das janelitas, junto à cumeeira do tugúrio.

Tudo se mantém inalterado desde a era dos primeiros santos que aqui resgataram a sua existência ao bulício e ao sorvedouro das grandes cidades. A natureza só não submergiu por completo esta edificação pelo caridoso ofício do irmão Anthony Montague, a quem cabe a guarda destas vetustas e gastíssimas lâminas, com que vai limpando como pode as balaustradas, os tetos e as esquinas de pedra musgosa.

Mas o visitante importar-se-ia sobretudo com o silêncio.

De manhã à noite, a maior gratidão do eremita é para o depurado silêncio que brota de todas as coisas em redor, por fora e por dentro de tudo. O bom silêncio envolve-o numa paz profunda e ao ter-se a ele acostumado de tal forma disciplinou o ouvido que alcança facilmente os mínimos estalidos, os mais distantes assobios, o sussurro da água nas fontes do bosque, a súbita mudança do soprar do vento na cabeleira dos pinheirais. Ao mastigar o bocado de pão à noite, os estertores da boca ou o crepitar da lenha tornaram-se palavras inteligíveis de que gosta mais do que das antigas, cujo significado lhe pareceu tantas vezes embaciado e inútil. Mesmo as orações, que medita e repete várias vezes ao dia e durante o serão, prefere pronunciá-las sem articular a língua, dizendo-as com o seu timbre de voz interior, tão belo e abafado tanto tempo. O silêncio tornou-se o seu modo de estar com Deus e o único motivo por que vale a pena continuar vivo.

Montague vive no eremitério há somente cinco anos. Veio de Dublin, onde foi casado e onde exerceu os cargos mais distintos na vida política e também na empresa multinacional EMPIRE.

Depois de nesse dia de outono ter contemplado na paisagem a formação de bulcões, sobre uma brisa quente e pressaga, lava-se agora à chuva abundante da noite com um quadrado de sabão. A tempestade faz as sombras mais suspeitas, com rebrilhos de relâmpago. Ao lume tem o eremita o seu caldo de feijão e sobre a mesa o De Civitate Dei, que vem há muito decompondo gulosamente em epifania e amor pelo próximo.

Depois de se secar num monte de trapos, sentindo a pele exalar o doce torpor da purificação, Montague dirige o olhar para o firmamento. Há no imo da sua alma qualquer reminiscência druídica, pois a natureza por si só o comove como um deus e lhe apetece alimentar-se de raízes e ervas para reencontrar um caminho perdido.

Escuta então um restolho. Um restolho e um gemido. Julga ouvir, também, o mover das bisagras e o raspar de metal sobre um lancil. Não tem dúvidas de que algo ou alguém vem aí. A pele empola-se, os pelos estão eriçados. Nunca lhe sucedeu igual. A sua santidade, tão duramente procurada nestas paragens, não o impede de apossar-se do tronco de carvalho que lhe serve de cajado e de o projetar defensivamente. É uma arma tão boa como qualquer outra e não tendo outra é esta melhor ainda. Um halo argênteo e azulado corre as paredes, invade-lhe o interior do casebre. Prepara-se para brandir o que segura nas mãos, quando uma voz o imobiliza.

– Olá, está aqui alguém?

II

A rapariga sorria e agradeceu muito o cuidado. Encontrar um chão seguro, poder abrigar-se da chuva e comer algo quente era muito melhor do que podia esperar. Não sabia explicar como ali fora parar, apenas que se perdera do seu grupo e que caminhara sozinha e desesperada durante horas, especialmente depois de anoitecer.

«Graças a Deus, descobrira aquele oásis no meio do deserto!»

Montague, aturdido, envergonhado, estremeceu ao som da palavra «Deus». Deitou uma concha de sopa no prato dela. Achou que talvez fosse avareza. Serviu-lhe outra concha. Não sabia se devia sentar-se a seu lado ou se devia comer num canto da cozinha. Ela falava, falava depressa, repleta de gratidão e de ruído. Como a rapariga não se decidia a começar a comer e o olhava fixamente, ele sentiu-se na obrigação de a acompanhar. Partilharam a refeição, depois de rezarem. Montague não percebia bem o que ela dizia, não tanto pela rapidez da sua fala, mas sobretudo porque o coração lhe batia descompassado e lhe tolhia a lucidez.

«Vivo muito perto de Cardiff, mas sou de Bristol. Na última década vivi em sete países diferentes. Adoro explorar a natureza, sabe? Passo a vida a viajar e a fotografar os sítios mais encantadores do nosso planeta…»

O lume, avivado pela mão diligente do eremita, parecia mais rubro que um rubi. Na face angulosa do granito, a silhueta da rapariga aparecia distorcida, como se da cabeça aos pés inúmeras hastes se descobrissem e a tornassem monstruosa. Por outro lado, a sua voz, vencida agora pelo cansaço e pelo sono, era menos vigorosa, mas muito mais dócil, quase sedutora.

«Quase não abriu a boca… E eu tão tagarela… Fale-me de si. Afinal, é o meu querido salvador… O que seria de mim, se o não tivesse descoberto esta noite?»

Os pelos dos braços e das pernas de Montague voltaram a erriçar. Depois de ter desaprendido determinadas facetas do mundo, aquela linguagem perturbava-o, tornava-o de novo refém de um mecanismo de que se libertara, a seguir à morte da sua mulher, muitos anos antes. O silêncio e o isolamento trouxeram-lhe o caminho do êxtase e encerraram atrás de si portas e corredores de cuja memória não estava já muito certo.

«Não sei o que lhe diga… Vivo só… Aqui… Há muitos anos…»

«Meu Deus, estou tão fascinada! O senhor é um daqueles santos, que se afastaram do mundo para conquistar o direito ao Paraíso!… Tão bonito!»

«Sim.»

«Não consigo imaginar o que tem sido viver longe de tudo! Sem conforto. Sem tecnologia. Sem o toque de uma outra pessoa!»

«Vivo com Deus.»

«Mas Deus é amor. Deus quer que nós amemos, que nos amemos uns aos outros!»

E ao proferir as palavras «Deus» e «amor», a rapariga soergueu o tom, como para espicaçar o entendimento de Montague. Sorria. Para sublinhar o poder do seu raciocínio, colocou-lhe a mão por cima da sua própria mão. O contacto da pele delicada com a pele áspera surpreendeu mais o eremita do que a afoiteza das palavras. O sorriso da rapariga fê-lo recuar. Precisava de retirar-se para orar. Tinha já passado o tempo devido.

Então, a rapariga aproveitou para lavar os dois pratos, estender o saco-cama, cuidar como podia da higiene pessoal. Depois despediu-se do anfitrião, sorriu com um «Boa noite, meu salvador!» e deitou-se.

Montague, mais uma vez, não conseguiu decidir entre usar a sua cela ou acompanhar a rapariga. Não raras vezes precisou de lidar com vermes e répteis, atraídos pela humidade ou pelo calor daquele antro. Receou que soasse a má criação não velar pelo sono da sua visita. Tanto mais que as horas noturnas durante as tempestades lhe pareciam um ensejo para descortinar a vontade de Nosso Senhor.

Ficou, por isso, diante da lareira, não muito longe do perfume que a rapariga exalava e que o entontecia. Era como uma tentação.

Rezou. Pediu perdão a Deus por todas as impurezas que nesse final de dia o pudessem ter cometido. Especialmente, quando se lembrou de Rose, a sua falecida mulher. Porque se lembrou dela nesse final de dia, sim, não da Rose murchando numa cama de hospital, mas da Rose do namoro e do casamento, bonita e insensata, que o desafiava a toda a hora, sem temer ou admitir sequer a têmpera do pecado.

«Não consegue dormir? Ou simplesmente nunca dorme?»

Montague estremeceu. A rapariga dirigiu-lhe nova pergunta.

«Assustei-o?»

«Não.»

Apesar da fadiga, do calor da fogueira, do som aconchegante da água precipitando-se das alturas, a rapariga explicou que não conseguia adormecer. Intrigava-a aquele modo de vida de Montague, aquela decisão de voltar as costas ao mundo, aquele silêncio e solidão no alto e no meio da floresta.

«Não voltei as costas ao mundo…Voltei-me para Deus…»

A rapariga abriu o fecho do saco-cama, soergueu-se (dorso encostado à mochila) e, iluminada pelas achas, disse que também Zaratustra viveu nas montanhas, mas que ao cabo de dez anos, segundo as sentenças de Nietzsche, precisou de voltar para junto dos seus semelhantes.

Um pouco depois, o eremita e ela, na mesma posição em que haviam jantado, estavam um dia diante o outro, sentados à mesa. No mesmo tom sereno, no mesmo ritmo apaziguado, disse muitas palavras doces. De quando em vez, a rapariga mexia no cabelo e sorria. A camisola que envergava tornava-lhe o desenho dos seios mais óbvio, como se ao mesmo tempo os guardasse e os expusesse. Montague não ouviu quase nenhuma das palavras que lhe foram destinadas.

Então, animada pelo assentimento do eremita, reparando mais na beleza dos seus olhos azuis (que as barbas desleixadas não podiam senão evidenciar), afogueada pela gratidão que sentia em relação a esse homem invulgarmente casto e sóbrio (mais atraente lhe parecia o seu carácter assim), a rapariga tomou-lhe as mãos e beijou-as, acariciou-lhe o rosto, percorreu com os dedos a comissura dos lábios e, por fim, beijou-os também. Montague nada fez para interromper estes desvelos.

III

O eremita acorda sempre antes alba. Hoje não. Os olhos, terrivelmente cansados, avistam uma leve coluna tisnada a subir e a tocar o cume da cozinha. É uma língua de fumo que sai do raizeiro sobre a laje da lareira. Sobressalta-se, de chofre, ao dar-se conta das orações negligenciadas. Sente frio. A fome revolve-lhe o estômago. Recorda-se da tempestade, que durante a noite recrudesceu. Agora que os sentidos recobram o seu préstimo, percebe também um perfume diferente no ar, pairando como uma memória difusa. Lava o rosto, medita as primeiras orações, come um pouco de pão e, então, sim, compreende a indolência do seu corpo: acode-lhe à cabeça a rapariga.

Não pode descortinar um único sinal dela. Não percebe quando, como e porque partiu. No chão, onde o saco-cama foi estendido, não se perscruta o mínimo vestígio. Somente o areão e alguma folha ressequida, algum inseto sossegado e em trânsito entre esconsos.

Montague, aturdido, lembra-se do corpo nu da rapariga, do corpo quente e meigo que roçou no seu próprio corpo e o submeteu. Mas o chão, o puro chão do seu tugúrio, nada informa sobre o amor que ali existiu.

A rapariga, cujas palavras irresistíveis, cujo sorriso invencível, cuja doçura o fizeram mergulhar num sono profundo, desapareceu. Procura um só indício de que a sua cabeça o não engana. Na pedra onde costuma lavar o seu prato, não pode avistar senão um prato. Não possui dois pratos, aliás. Em cima da mesa, na exata posição em que o deixou ontem, o De Civitate Dei de Santo Agostinho.

A demanda prossegue. Fora, a manhã mostra-se esplêndida, como todas as manhãs de sol que sucedem às noites de procela. Montague verifica o granito sem lama da escadaria, a pequena vereda de acesso sem sulcos ou estrias de calçado, o portão que permanece tão fechado como um segredo por confessar. Treme.

O que foi tudo? Um sonho? Uma visita do demónio?

O frio fá-lo tiritar. Sente-se horrivelmente só. Pela primeira vez, nesse lustro, as forças faltam-lhe. O que foi tudo aquilo? Uma epifania? Uma prova de fé a que Deus o sujeitou?

Treme. Sente-se doente. Na pedra da lareira acumula-se a cinza da noite. Nenhum calor, nenhuma chama, nenhuma centelha aviva os seus olhos. Somente um fiozinho de fumo resta no corpo ardido do raizeiro. Montague pensa que chegou o seu momento: divino ou demoníaco, o sopro da vida está prestes a expirar. Não sabe, não o censuremos, que interpretação dar a tudo isto…

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