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João Ricardo Lopes

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Etiqueta: diálogo

Posted on 25.04.201717.11.2025

Todas as melhores conversas começam por acaso

Foto: Omar Biagi
Fotografia de Omar Biagi

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Todas as melhores conversas começam por acaso. Foi desse modo que começou a nossa. Tu, bigodes de chocolate ao largo da boca, como os garotos (logo vi que eras um patusco!), eu com a neura (não me venhas falar das minhas neuras, sou a única autorizada a falar das minhas neuras!), por causa da entrevista de emprego.

As entrevistas de emprego anunciadas são uma vigarice. Os empregadores que precisam de publicitar entrevistas de emprego pertencem a um clube restrito (cada vez mais bojudo, embora) de facínoras, patrões da têxtil, engajadores da construção civil, uns mafiosos, uns trapaceiros, espoliadores de empregadas domésticas, recrutadores de vendedores de banha da cobra (ou, no meu caso, de produtos ortopédicos), uma cambada de intrujões sem alma (se eu fosse do governo pendurava-os a todos pelo pescoço!), uma gentinha desalmada pronta a endrominar a própria mãe (ah se fosse do governo, ou juiz, era um bulir permanente de cordas), uma turbamalta do pior feitio, sempre a enganar o pobre, a fazer perguntas difíceis, a dar-lhe esperanças… Enfim, calo-me por aqui.

E tu não me venhas falar das minhas irritações, sabes lá como estava eu nesse dia, ou melhor, nessa tarde. Nervos à flor da pele, acabada de sair daquela salinha manhosa, no piso de cima do centro comercial, naquele corredor abafado, quase deserto, às escuras, daquela sala cheio da tabaco, daquela mesa onde um tipo me mediu da cabeça aos sapatos, e tu, muito alapado na esplanada, pele irradiante, com o gelado a rodar na boca suja, de olhos fixos em mim, como se te regalassem duplamente o chocolate e o meu minivestido preto (o que julgas tu?, pensas que ia à entrevista sem dar o meu melhor?), sem uma palavra, só a olhar, como se tanto se te desse que a vida corresse de uma maneira ou de maneira contrária…

Mas vá lá, foste um querido. Reconheço que nesse dia, quer dizer, nessa tarde estava uma pilha (Para onde pensa que está a olhar? Julga que sou um bocado ou quê? E limpe essa boca, seu porco!). Tu não respondeste, fizeste tu muito bem, limitaste-te a desviar os olhos, a limpar os beiços sujos, a pedir a conta do gelado e do café (não sei como podes misturar sempre as duas coisas), a levantar-te, a ir e (por essa não esperava eu) a voltar, a postar-te à minha frente, determinado, esclarecedor.

As melhores conversas podem começar assim. Com um olhar sem rancor, um nadinha atrevido, olhos nos olhos, como quem quer explicar uma coisa e sabe o que vai dizer. Sabes como em certos dias a nossa paciência de mulheres é pequena, curtíssima, mais débil do que um fino de cabelo. Não sei como gostei logo do teu sorriso, do teu blazer (reparando bem, até nem eras mau de todo, logo ali percebi como te fica bem o azul!), dos teus dentes certinhos, da tua voz sem azedume e arroucada, sussurrante.

Olhe que é feio atingir uma pessoa assim em público, no meio da praça. De mais a mais, não estava a olhar para si, mas para o senhor que está atrás de si.

Qual senhor, qual carapuça. Essa é revelha. Mentiroso. Voltei-me para ver. Com um grande livro estendido sobre o tampo metálico da mesa, um velhinho invisual dava uma aula de anagliptografia a uma rapariga loira, que percorria cada sulco com um sorriso envergonhado. Qual senhor, qual carapuça. Mentirosão. A loira sim, a loira vistosa, que aprendia com o velhote, para lá olharias tu, meu bandido. E ainda sem uma leve viração de ressentimento, concluíste.

Como terá podido constatar, cada um faz o que quer e pode numa esplanada. Até dizer disparates. E lamento , já agora, que me tenha visto a boca suja. É só.

Não me venhas falar tu de mau humor. Nem de vexames, muito menos do que senti nesse instante (onde estão os buracos no chão quando precisamos deles?). Nem de como e quando sucedeu ao certo a peripécia de estarmos os dois, lado a lado, de um momento para o outro, a gesticular, falar, rir, dizer muitas vezes «claro», «exatamente», «tem razão». Nem como terminámos a rir outra vez, a trocar números de telemóvel, a começar com «tu» onde até há pouco era «você», a embaraçar um aperto de mão logo corrigido por um beijo (um beijinho), o teu perfume com o meu perfume, a tua pele com a minha pele, encarnados os dois, esquecidos do olhar fixo e dos bigodes de chocolate, da neura e da aluna loira de braille.

Nem sempre a vida nos corre bem. Vê só o que uma desgraça pode trazer à vida de uma pessoa. Se é uma boa história? É uma excelente história. De fadas não será, mas das que contamos com gosto, sim. Esse dia, perdão, essa tarde nem prometia grande coisa, mas a vida é assim, carambolamos, às tantas uma inexplicável leva de sucessos faz-nos girar noutro sentido. Não gozes comigo, vá lá, eu gosto que gostes de mim, não me fales em mau aspeto, olha lá os teus bigodes de chocolate, meu porquinho, foi assim que nos conhecemos, qual humor de cão (ou de cadela) qual quê, todas as melhores conversas começam por acaso, foi assim que nos conhecemos, é uma excelente história, de fadas não será, mas das que contamos com gosto, sem dúvida!

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Posted on 01.09.201517.11.2025

Quando foi a última vez que assististe a um nascer do sol?

Fotografia de Hide Obara

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«Quando foi a última vez que assististe a um nascer do sol?» perguntaste. Sabias que responderia com uma negativa. «Não me lembro», «Não faço a mínima ideia», «Meu caro, não sei dizer». Adquiriste, sem que isso me penalizasse por aí além, a expressão triunfante de um retor. «Mas, como podes tu escrever sobre coisas que não vives?», «Que eventualmente não conheces?», «Que desperdiças?».

E dando um jeito ao corpo, corrigindo os joelhos contra o balcão, escorropichando a aguardente, começaste a explicar.

«O nascer do sol. Não é o que pensas. Não é só a luz que vem. Não, meu amigo, o nascer do sol é muito mais do que um show-off da poesia e dos romances cor-de-rosa. Não é só a luz que acende o firmamento. Nem a hora em que os amantes se despedem. Nem a promessa do amor eterno. Nem o instante de quase silêncio em que as palavras se limpam com o ácido do remorso.»

Nada tinhas contra os poetas, fizeste saber. Eles falam da alba, do dilúculo, da aurora dos dedos rosados. «Isso é muito bonito, lá isso é».

«O nascer do sol é um milagre a que me habituei. Levantar cedo para cuidar de uma pequena quinta, como a minha, é mais do que suficiente para aprender os segredos desse armistício entre o dia e a noite. Tudo paira numa espécie de transe. Como quando nos é dada a inesperada chance de começarmos tudo de novo.»

Repliquei que isso era poesia. Talvez a excelente última frase de um romance cor-de-rosa. Juntaste os lábios. Como se me quisesses mandar às favas. O que quer que pensasses vinha cada vez de mais longe.

«O cheiro da terra, por exemplo, é maravilhoso… Um sem-número de ervas e de árvores espreguiçando-se até no lusco-fusco até ao cosmos. Nunca as plantas cheiram tão bem como à noitinha ou de manhãzinha… De um momento para o outro, é a passarada numa algazarra louca sobre os telhados e os jardins… Diz-me tu se conheces alegria mais genuína do que a dos pássaros… O nascer do sol é muito mais do que se pensa… Muito mais do que o lento despertar de cada coisa… De cada roda que volta a chiar na rua, de cada janela que se abre, de cada cabeça entorpecida que espreita por ela… É como se em cada em cada objeto, em cada animal, em cada pessoa, houvesse subitamente um riscar de fósforo… Como se todos e tudo tomássemos parte na convulsão do tempo e do espaço… Não sei explicar bem, pá!…»

Bebias o terceiro ou o quarto copo. Bebias demais. E, no entanto, ao contrário de mim, as palavras pareciam soltar-se-te e com elas os pensamentos. Devia estar tão sério que me deste uma cotovelada.

«O teu mal é andares distraído». Devo ter feito uma careta. Julgo tê-la desenhado.  Fi-la de certeza. Prosseguiste.

«Estou convencido que, tal como os lugares se transfiguram e deixam de pertencer-nos, também os nossos gestos precisam de ser reaprendidos… No que me diz respeito, sou agora incapaz de escrever uma frase. Perco-me no meio das palavras. Isto apesar de admirar o efeito que têm sobre nós. A minha vénia, a quem o tem, o talento de as vergar…»

E sorriste.

«Volto ao princípio… Tu escreves… Mas, e desculpe lá a observação, viverás o suficiente para escrever?»

Não era má a aguardente de medronho. Dei um gole mais. Acabei o segundo copo. Reparei que a taberna estava a encher-se de clientes. Pescadores. Lavradores. Operários das fábricas ao redor. Senti fome. Cansaço. Irritação. Não respondi.

«A vida, essa coisa que nos passa por dentro das veias e ao mesmo tempo sobre a pele, num leve torpor de energia, dor, prazer, sei lá…, a vida exige-nos esse ritual…»

O bom cheiro do mar, como a vaga memória de um tempo a que não fui capaz de aceder, tornou-se veemente. Vinha pela porta um aroma de salsugem, limos, sargaço, de iodo, de rocha e areia húmida, de pó, de combustível varreram-me. Estava frio.

«Faz-me o favor de prometer que vais passar a assistir ao nascer do sol… Ao menos uma vez por mês… Ao menos uma vez em cada estação… Verás como todas as coisas passarão a fazer sentido…»

Saí. Estuguei o passo. O cais ficava ali perto. Nuvens de um cinzento azul, ou púrpura, talvez alaranjadas, de um leve rosado, cintavam o horizonte. O sol, como o combinado, não tardaria.

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