Os poetas pobres

Gerard Sexton
Fotografia de Gerard Sexton

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Os poetas pobres veem as coisas de um modo que significa alquimia. Tocam-nas e transformam-nas em ouro, ou devolvem-lhes o ouro que têm, mas que (coisas singelas que são, coisas do seu estatuto social, coisas que os olhos dos poetas ricos desprezam) passam por insignificância, tolice, apontamentos de pé rapado.

César Vallejo foi um poeta paupérrimo. Peruano de nascença, andou por este mundo fora colhendo as maçãs da sua miséria. Em Paris, os poetas ricos miravam-no com o mesmo espanto apavorado com que em Braga, nas esplanadas, os poetas ricos atingiam Sebastião Alba, outro mendigo. Há, também, poetas mendigos. Poetas que, literalmente, mendigam pão e, volta e meia, uma cachaça.

Yannis Gitsos, Yourgos Seferis, Paul Celan, Tonino Guerra sentiram a fome. Todos por causa da guerra (dos combates, das perseguições, da prisão). Allen Ginsberg e Charles Bukowski conheceram-na, igualmente, em virtude do alcoolismo, das drogas, do oposicionismo político exacerbado. O caso mais dramático, seguramente, o de Anna Akhmátova, a resistente russa que padeceu toda a série de agruras que o estalinismo pôde infligir. Antes dela, Czesław Miłosz conheceu as agruras do gueto de Varsóvia, que recorda no poema magnífico “Campo di Fiori”. Foram poetas pobres, um ou outro remediou-se, mas humildes sempre, irónicos quando possível, geniais cada um à sua maneira

Em Portugal, a história da poesia é a história da pobreza pura e dura. Cultivaram-na reis, nobres e aristocratas, mas sobretudo gente sem eira nem beira. Camões, Bocage, Gomes Leal, Pessoa foram poetas sem dinheiro. Sá-Carneiro foi um poeta rico, cujo suicídio teve provavelmente algo que ver com o spleen da capital francesa e com a condição anómala de ser filho de burguês abastado para quem os seus avanços literários nada significavam. Sophia foi aristocrata, mas conheceu os apertos financeiros que os opositores de Salazar sofriam quando ousavam perturbar as malhas do regime. Nem todos puderam ser Antónios Ferreiras, Diogos Bernardes, Sá-Mirandas. Nem todos puderam viver dos subsídios generosos de suas majestades ou podem viver dos prémios literários que as fundações, câmaras municipais e juntas de freguesia entregam amiúde. Ou do beneplácito das grandes editoras.

Por lá, como por cá, há uma imensidão de poetas a contar os cêntimos e a contemplar as coisas irremediavelmente belas que a natureza tem para oferecer, do mais lírico e humílimo que possa encontrar-se pelo caminho, enquanto se faz pela vida e se arranja um ganha-pão decente, sem privilégios ou cunhas partidárias, ganha-pão despido de toda a espécie de adorno e enliças políticas, sociais ou familiares. Ainda que estendendo a mão a quem passa, como esse célebre Ulisses Santiago que conheci no Porto (nos idos da Faculdade) a quem dei cem escudos a troco de um amontoado de versos escritos a tinta verde.

Os poetas pobres veem as coisas de um modo particular. Talvez não vejam o orvalho entre as rosas rubras e aveludadas do seu jardim, mas o orvalho poisado em grandes gotas (que lembram prata líquida) sobre a folha carnosa das couves e das alfaces. Ou talvez vejam de manhã cedo (caminhou o dia os primeiros metros no horizonte) o rasto iluminado dos aviões e se recordem do fio de baba dos caracóis e associem ambos num verso pobríssimo como “aviões segregando a sua baba translúcida”. Ou talvez assistam ao acender das fogueiras nos campos de uma qualquer terreola e se lembrem de outonos passados, evocando avós maravilhosos (com o podão à cinta e botas de vitela calçadas) que os levavam pela mão até ao lugar onde o trabalho os fixou para sempre, muito perto de uma azenha revolta, presa nas névoas e no som do açude, muito perto de uma coluna de fumo no interior da qual a lenha seca produz chamas vermelhoalaranjadas e uma memória pura de afeto. Talvez escutem, caminhando a pé, o som das escrevedeiras, o pio triste das gralhas, a algazarra das levandiscas e saibam com elas iniciar ou concluir uma homenagem à infância.

Ou talvez vivam na cidade e testemunhem o lento dobrar de esquina dos idosos desvalidos, solitários, deixados ao deus-dará, para quem um gesto de amor pode ainda valer tudo e significar que a vida longa não foi (não é) em vão. Talvez não lhes passe despercebida a indigência encapotada das famílias modernas, das que não alardeiam a sua situação e não buscam subsídios (das que trabalham todos os dias do mês e levam para casa salários de merda) e têm todas as contas para pagar. Os poetas pobres conhecem muitas histórias destas. Costumam sentar-se nos bancos de jardim, conviver com outros pobres, ler e ouvir-lhes as assombrosas existências de carne e osso. Talvez se deem conta (como deu Pablo Neruda nas minas de Antofagasta) do terrível mundo que fica para lá ou para cá do palco iluminado de todas as falsidades e estatísticas. Os poetas pobres veem a olho nu e talvez seja por isso que veem melhor, mais a direito, mais dentro, mais fundo.

Pessoalmente, sinceramente, verdadeiramente, não suporto a escrita dos poetas que não vejam as coisas que têm de ser vistas. Dos poetas que comunicam sem ideias, que se glosam a si mesmos, que multiplicam palavras. Dos poetas que cavam dentro da sua própria vaidade e expelem coisa nenhuma. Desses é o reino da Terra, quem sabe do outro reino também. Mas a mim não me apanham a louvaminhá-los. Não apanham!

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Na mesa de trabalho

The Travel Writer, (Deviant Mind)
Fotografia de Deviant Mind

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Na mesa de trabalho cabem agora somente objetos imprescindíveis. Um dicionário atualizado, a Bíblia, cadernos de sebenta, uma lapiseira e algumas canetas de pincel (de tinta preta), um cinzeiro (com a função exclusiva de pisar papéis) e um volume de poemas de Tomas Tranströmer, no lugar que foi já de Elaine Feinstein, Salah Stétié, Ian Hamilton, Wisława Szymborska, Ruth Fainlight, Anise Koltz ou Czesław Miłosz. Tenho também as gavetas apetrechadas com a subsistência: uma resma de papel, uma caixa com duas canetas de aparo e respetivas cargas de tinta, uma coleção de livros de bolso da Assírio & Alvim, uma agenda, montes de cadernos antigos (de que não fui ainda capaz de me separar) e um isqueiro elegante (capeado em pele e metal, muito elogiado por amigos e parceiros de tertúlias, quando principiava a publicar há pouco mais de uma década e o ostentava em cigarros de ocasião).

Sobre o tampo da mesa, impecavelmente arrumado e limpo (sobretudo, do pó) há também um candeeiro vermelho que me ficou dos tempos universitários, e cujo design me fascinou na época. Há ainda, por último, uma ampulheta, objeto este sem qualquer serventia, e por isso o mais casto e importante de todos. Como é pesado, imagino que um dia, se me entrar pela janela do escritório um larápio, me possa finalmente ser propício usá-lo…

Ultimamente, quatrocentas páginas de produção poética minha dividem com estes escassos objetos o retângulo de madeira. São o fruto de quase seis anos de criação e divulgação em blogue. Foram mais, mas a salamandra incinerou num primeiro instante os “devaneios”, resultado, evidentemente, de noites mal dormidas ou do álcool!

Tanta filharada junta espatifa-me a paciência. Um a um, vou-lhes passando a boca por cima e sublinhando a mercê de cada qual. Ou então riscando-lhe uma cruz, com a preciosa anotação de «Lixo», com que o cesto tem engordado, a ponto de ter também uma caixa de cartão ao lado, para acolher a rejeição. Não sou, reconheço, um crítico imparcial, ou ser benquisto da minha própria literatura. Sempre suportei mal em mim mesmo o rigor, quase despotismo, da abordagem. E tudo porque, com horror de fiscal, considero os meus poemas francamente defeituosos, em particular por causa dos erros de musicalidade, por causa de lapsos na disposição formal, ou, no pior dos casos, por causa da falta de ideia, pura e simples!

É-me penoso ler e reler-me!

Aliás, essa a minha grande inveja em relação a outros, que me confessam o prazer (e até o júbilo) de juntarem as suas coisas num livro. Porque no lado de cá da rua, também há quem saiba combinar maravilhosamente a roupa com os assessórios.

Não é o meu caso, lamentavelmente. Aliás, vem muito a propósito narrar a peripécia que em 2005 deu origem ao volume dias desiguais. Desesperado e com o ultimato do editor a fazer-se ouvir cada vez mais alto (tinha os poemas, mas não a sua ordem de sucessão), precisei de espalhar pelo soalho de um apartamento desabitado toda a minha obra, mais ou menos como fazem os polícias nos filmes de polícias com as provas de crime dos serial-killers. E foi do chão (e não do céu aureolado de alguma musa) que me caiu a lógica do livro, se alguma lógica é possível…

Sou, com efeito, péssimo a arrumar-me. Neste momento, com cerca de quatrocentas páginas, a coisa parece-se com um bazar marroquino. Há de tudo, dos poemas curtos (à laia de epigramas) a poemas de fôlego com que me atafulhei de reflexão metapoética. Enfronhado nesta feira de palavreado, procuro o melhor do melhor, alguma manifestação de génio com que sacie a fome dos meus vinte e cinco leitores e justifique horas e horas e mais horas inumeráveis de ofício.

A eliminação, porém, é dolorosa. Quer dizer, a princípio é. Porque imponho a máxima do “tudo ou nada”. Uma vez reprovada a folha, não há reciclagem que lhe valha. Nenhum poeta gosta de esbanjar vestígios de incompetência artística ou de fragilidade intelectual. Todo o poeta, pelo menos por princípio e pretensão, é divino. E também as divindades punem mortalmente. Porque também as divindades cometem fífias e delas se desgostam. E se desgostam mais das testemunhas da sua fraqueza. Pela parte que me toca, a minha divindade roça às vezes o olimpo de uma taberna.

Ato contínuo, e para não me perder mais em labirintos retóricos, direi que a eliminação age como a tempestade sobre o alcatrão: apaga-lhe os indícios da imundície. Nada, exceto a perfeição, deverá sobreviver em poesia. A lei de Darwin, no fim de contas, é também a lei da literatura! A memória do sistema, já Bloom o afirmou com todas as letras, é um processo de branqueamento contínuo, metáfora simpática para dizer apagamento. E eu antecipo-me ao tempo. Eu voluntariamente apago!

Para me compensar de tamanha empresa, faço-me acompanhar por chocolate amargo (setenta por cento de cacau). Podia ser uísque, mas julgo-me incapaz de tanta virilidade: diria como Graham Greene “I’m not Hemingway, for God’s sake!”. E o chocolate sempre é mais barato. Diga-se que mais limpo também. Diga-se, ainda, que não tão mau para a vesícula…

Não, reler-me é penoso!

E fazê-lo com um tão grande caudal de escrita será o décimo terceiro trabalho de Hércules. Cá estarei nos próximos tempos para o conseguir. Pouco a pouco, peneirando e peneirando, à cata de pepitas que, oxalá, façam do meu próximo livro um bom motivo para continuar vivo e apaixonado pela vida! Há que reconhecer: um bom poema, nascido das nossas mãos, é motivo suficiente para tanto…

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