Da crónica dos lusitanos

Estrada romana. Roman road. Carretera romana.
Fotografia de Marco A. Faccini

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Muito tempo se acreditou na existência de um livro chamado De Bellīs Lusitaniae, composto por um tal de Cesarino de Arábriga nos meados do primeiro século da nossa era. Dele pôde, por fim, encontrar-se fragmentos inequívocos, um dos quais registando no latim triunfante o desabafo emocionado de um autor autóctone anónimo, se de um e não de muitos é a voz que ali discorre.

«Quando a estrada avançou floresta adentro, colinas acima, e criou um comprido e largo sulco de pedras ao redor dos vilarejos serranos, só duas coisas respeitaram os legionários: as grandes lajes encavalitadas umas nas outras, que diziam ser o lugar dos antigos mortos, e as casas onde um forno pudesse servir-lhes o pão, o escuro centeio de que já antes deles Viriato e os grandes outros chefes lusitanos se tinham servido.

Um povo conquistador impõe-se e apaga. Este fala uma língua estranha feita de palavras curtas, frias e direitas, uma língua que é forjada no que são forjadas as lâminas curtas, frias e direitas dos seus gládios. A soldadesca deita abaixo carvalhos e freixos, arrasa em linha reta o centro das nossas citânias amadas, tropeça nas figuras de Endovélico, Reue ou Atégina e delas troça como se troça de um velho rei destituído. Este povo abre veredas largas e infinitas, camadas sobre camadas de terra e de cascalho, veredas capazes de unir todos a tudo e tudo a todos. Nelas transita-se agora como se pelos caminhos misteriosos dos sonhos. Por elas procura-se a rapidez e o lucro, desprezando-se o âmago acidentado das nossas florestas. Os jovens apreciam de tal forma a notícia dos sucessos estrangeiros, e a fama das suas mulheres ataviadas, e o ouro contado pelas bocas exagerados dos angariadores, que lhes enfada o cerimonial das suas próprias tradições.

Por isso, riem-se do poder das feiticeiras, voltam as costas ao saber dos velhos, fogem da pacatez e do conforto que nesta sua terra ancestral e nestas paredes circulares se estimava e se cultuava como a mais alta e a maior das dádivas divinas.

Pior do que o dito, os nossos jovens falam a língua dos inimigos, calando e esquecendo a sua própria língua, como se por ela crescessem raízes impropícias e como se por ela se lhes entorpecesse o pensamento e o coração. Mais do que os outros, pontapeiam os muros musgosos do seu passado e acolhem com orgulho e vaidade o bulício dos usurpadores. Eles mesmos engrossam as fileiras dos que descem aos imos da terra, esventrando-a pela cobiça do estanho e do cobre e do ouro. Eles mesmos aparam os longos cabelos entrançados que usavam os seus pais e os seus avós e rapam o rosto e trajam alegremente como os cidadãos romanos, envergonhando-se das boas peles de lã e de couro, que sempre tivemos como pecúlio, e preferem tudo desbaratar por um ou dois panos tingidos dos que chegam às nossas praias pela mãos dos estrangeiros.

Digo-vos que as estradas se tornaram a maldição por que tanto temíamos. Tornámo-nos ínsulas na sua própria terra, prisão entre a nossa própria gente, solidão na nossa própria alma.»

Agradecemos a Maria Filomena Real, professora universitária na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o ter gentilmente trazido ao português tão insigne pedaço da nossa História.

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Milagres de Natal

Homem Velho
Fotografia de Pete Linforth

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para a Elsa, para a Marta, para a Catarina

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Meter lenha na fornalha era, em todo o caso, o melhor que tinha a fazer. Enquanto os filhos discutiam, o ancião enfiava gravetos e cavacos pela portinhola do fogão e dava um jeito às costas para que quando o calorzinho as encontrasse as pudesse aquecer com outro cuidado.

Mas o que discutiam os filhos?

Justamente o que fazer consigo. E não era fácil. Viviam todos em lugares muito separados entre si, cada qual com a sua ranchada de miúdos, cada um a contas com a vidinha respetiva. E deve fazer-se bem as contas, oh se se deve! Falecida e enterrada a mãe, estando todos ali reunidos, a oportunidade era de ouro.

Quem tomaria conta do velho?

Nenhum dos oito rapazes, nem sequer a rapariga mostrou interesse, paciência ou disponibilidade para ficar com ele ou levá-lo para longe.

O velhote escutava absorto. Era mister que se começasse com os preparativos da Quadra: a casa precisava de ser limpa; ele mesmo iria com a tesoura da poda cortar os ramos de gilbardeira e fazer com eles a vassoura e varrer com ela a fuligem incrustada nas telhas. Era tempo de lavar com sabão as panelas de ferro, tirar do sal as peças de carne, tirar do serrim as uvas guardadas em setembro, tirar das arcas o linho e as pratas. Era mister que se preparasse o presépio e os quartos e essa comprida mesa onde se haveria de sentar a multidão de filhos, noras e netos que haveriam de partilhar a noite de Consoada.

O frio punha-lhe os ouvidos em riste: a gritaria batia-lhe nos tímpanos como lâminas de gelo. Porque discutiam aqueles rapazes? Aquela moça tão boa, tão igual à mãe, tão parecida com essa mulher que em quase três das quatro partes do século foi a sua?

Em todo o caso, o melhor era manter vivo o lume, esquecer as misérias do mundo, trazer de volta os gestos de antigamente – aqueles de que se alimenta genuinamente um homem. As costas e os pés esquentados são um consolo para o qual não existem palavras…

Sim, quem tomaria conta do velho?

Verdade seja dita: já poucos hoje acreditam em milagres de Natal.

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