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Muito tempo se acreditou na existência de um livro chamado De Bellīs Lusitaniae, composto por um tal de Cesarino de Arábriga nos meados do primeiro século da nossa era. Dele pôde, por fim, encontrar-se fragmentos inequívocos, um dos quais registando no latim triunfante o desabafo emocionado de um autor autóctone anónimo, se de um e não de muitos é a voz que ali discorre.
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«Quando a estrada avançou floresta adentro, colinas acima, e criou um comprido e largo sulco de pedras ao redor dos vilarejos serranos, só duas coisas respeitaram os legionários: as grandes lajes encavalitadas umas nas outras, que diziam ser o lugar dos antigos mortos, e as casas onde um forno pudesse servir-lhes o pão, o escuro centeio de que já antes deles Viriato e os grandes outros chefes lusitanos se tinham servido.
Um povo conquistador impõe-se e apaga. Este fala uma língua estranha feita de palavras curtas, frias e direitas, uma língua que é forjada no que são forjadas as lâminas curtas, frias e direitas dos seus gládios. A soldadesca deita abaixo carvalhos e freixos, arrasa em linha reta o centro das nossas citânias amadas, tropeça nas figuras de Endovélico, Reue ou Atégina e delas troça como se troça de um velho rei destituído. Este povo abre veredas largas e infinitas, camadas sobre camadas de terra e de cascalho, veredas capazes de unir todos a tudo e tudo a todos. Nelas transita-se agora como se pelos caminhos misteriosos dos sonhos. Por elas procura-se a rapidez e o lucro, desprezando-se o âmago acidentado das nossas florestas. Os jovens apreciam de tal forma a notícia dos sucessos estrangeiros, e a fama das suas mulheres ataviadas, e o ouro contado pelas bocas exagerados dos angariadores, que lhes enfada o cerimonial das suas próprias tradições.
Por isso, riem-se do poder das feiticeiras, voltam as costas ao saber dos velhos, fogem da pacatez e do conforto que nesta sua terra ancestral e nestas paredes circulares se estimava e se cultuava como a mais alta e a maior das dádivas divinas.
Pior do que o dito, os nossos jovens falam a língua dos inimigos, calando e esquecendo a sua própria língua, como se por ela crescessem raízes impropícias e como se por ela se lhes entorpecesse o pensamento e o coração. Mais do que os outros, pontapeiam os muros musgosos do seu passado e acolhem com orgulho e vaidade o bulício dos usurpadores. Eles mesmos engrossam as fileiras dos que descem aos imos da terra, esventrando-a pela cobiça do estanho e do cobre e do ouro. Eles mesmos aparam os longos cabelos entrançados que usavam os seus pais e os seus avós e rapam o rosto e trajam alegremente como os cidadãos romanos, envergonhando-se das boas peles de lã e de couro, que sempre tivemos como pecúlio, e preferem tudo desbaratar por um ou dois panos tingidos dos que chegam às nossas praias pela mãos dos estrangeiros.
Digo-vos que as estradas se tornaram a maldição por que tanto temíamos. Tornámo-nos ínsulas na sua própria terra, prisão entre a nossa própria gente, solidão na nossa própria alma.»
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Agradecemos a Maria Filomena Real, professora universitária na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o ter gentilmente trazido ao português tão insigne pedaço da nossa História.
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