Nozes sagradas

Isaac Sloman
Fotografia de Isaac Sloman

.

Destroçado por uma violenta onda de desânimo, Aquilino encafuou-se numa cova junto a um grande carvalho secular, na qual se espojava com lentidão e de onde raramente saía.

Tomara-o a acídia.

Por muito que ocultasse os olhos e silenciasse os ouvidos, continuava a ver e a sentir os golpes dos mercenários truculentos de Recaredo, as casas toscas transformadas em tochas, os gritos do povo massacrado, os monges caídos num lamaçal de terra, charcos e sangue.

Tudo por culpa da fé.

Os homens que muito amam odeiam muito e os que muito odeiam amam demais. Deles, como do vento volúvel, pode esperar-se tudo. O muito amor e o muito ódio são dois rios num rio só:

Naquele antro, onde as raízes das árvores se distendiam e encordoavam, onde passavam a correr ratazanas e centopeias, onde o sol jamais ousava adentrar-se e cindir-se como a luz de um círio, Aquilino desejava antes de todas as coisas e sobre todas elas tão-somente a morte.

De que se alimentava Aquilino? A que prodígio devia a sua resistência? Em que resto de forças descobrira ele forma de atenuar a dor?

Ninguém o soube dizer.

Conta-se que no começo do inverno, um esquilozinho penetrou o covil com uma noz e – fitos os olhos de um nos olhos do outro – abandonou-lha nas mãos.

O animal fê-lo no dia após, e no outro, e nas semanas prosseguintes.

Aquilino recordou-se, então, das palavras santas de Ambrósio: «Cristo, Nosso Senhor, é a noz de que havemos de nutrir a boca e alimentar o espírito: a sua madeira arde como ardente é a cruz onde O imolaram; dura é a Sua casca, como duro é o corpo macerado pelo flagelo e consumido pelas chagas; prazenteiro é o pomo escondido pelo zesto, como saboroso e encoberto é o mistério da Sua Morte e Ressurreição».

Aquilino acordou da tristeza.

No dia do Natal, entrou com as vestes esquálidas e a face macilenta nas ruas abarrotadas de Toledo. Era igual a um leproso no aspeto. Conta-se, e foi o grande o milagre, que Aquilino se dirigiu ao rei dos visigodos. Era igual a um profeta, a quem a verdade funda do seu sentir reiluminara as palavras, através das quais resgatou Recaredo da heresia ariana e o converteu à religião do povo.

Desde então, e durante muito tempo na Idade Média, se associou Santo Aquilino à pujança dos nogais e ao nascimento do Messias. Com a lenha dos nogueiras esculpiram-se as primeiras figuras do presépio, com as cascas das nozes acendia-se o lume dos turíbulos, com o seu recheio condimentavam-se as viandas e as iguarias natalícias.

24.12.2024

.

Logótipo Oficial 2024

Milagres de Natal

Homem Velho
Fotografia de Pete Linforth

.

para a Elsa, para a Marta, para a Catarina

.

Meter lenha na fornalha era, em todo o caso, o melhor que tinha a fazer. Enquanto os filhos discutiam, o ancião enfiava gravetos e cavacos pela portinhola do fogão e dava um jeito às costas para que quando o calorzinho as encontrasse as pudesse aquecer com outro cuidado.

Mas o que discutiam os filhos?

Justamente o que fazer consigo. E não era fácil. Viviam todos em lugares muito separados entre si, cada qual com a sua ranchada de miúdos, cada um a contas com a vidinha respetiva. E deve fazer-se bem as contas, oh se se deve! Falecida e enterrada a mãe, estando todos ali reunidos, a oportunidade era de ouro.

Quem tomaria conta do velho?

Nenhum dos oito rapazes, nem sequer a rapariga mostrou interesse, paciência ou disponibilidade para ficar com ele ou levá-lo para longe.

O velhote escutava absorto. Era mister que se começasse com os preparativos da Quadra: a casa precisava de ser limpa; ele mesmo iria com a tesoura da poda cortar os ramos de gilbardeira e fazer com eles a vassoura e varrer com ela a fuligem incrustada nas telhas. Era tempo de lavar com sabão as panelas de ferro, tirar do sal as peças de carne, tirar do serrim as uvas guardadas em setembro, tirar das arcas o linho e as pratas. Era mister que se preparasse o presépio e os quartos e essa comprida mesa onde se haveria de sentar a multidão de filhos, noras e netos que haveriam de partilhar a noite de Consoada.

O frio punha-lhe os ouvidos em riste: a gritaria batia-lhe nos tímpanos como lâminas de gelo. Porque discutiam aqueles rapazes? Aquela moça tão boa, tão igual à mãe, tão parecida com essa mulher que em quase três das quatro partes do século foi a sua?

Em todo o caso, o melhor era manter vivo o lume, esquecer as misérias do mundo, trazer de volta os gestos de antigamente – aqueles de que se alimenta genuinamente um homem. As costas e os pés esquentados são um consolo para o qual não existem palavras…

Sim, quem tomaria conta do velho?

Verdade seja dita: já poucos hoje acreditam em milagres de Natal.

.

Logótipo Oficial 2024

Prodígio de Natal

Fotografia de Leonel de Castro

.

No alto de uma colina, fora do perímetro da vila, escorraçadas pelas muralhas pedregosas do grande castelo mandado erguer por Fernando, rei de Leão, restam de pé – ainda que votadas ao abandjono dos homens (sem teto, portas, vidros ou vitrais, sem espécie alguma de madeiras, soalho, mobílias, figuras de santos, anjos ou pombas sacramentadas, sem dignidade eclesiástica ou profana) – as paredes vazias, românicas, da igreja de São João Extramuros.

São um escombro.

No outono, as neblinas passam o umbral e o pórtico escancarado, sem mirar a arquivolta, perpassam nos interstícios de granito, revoluteiam no interior frio e silencioso, saem por onde outrora existiram um caixotim, um travejamento sólido de pinheiro ou de carvalho, onde telhas poisavam, apertando-se umas sobre as outras; defenestram-se depois as neblinas pelo olho aberto das frestas nuas e se alguém ali contempla o espetáculo daquela solidão, vê-las-á errar novamente pelos ermos da colina, perguntando «Onde está a gente deste lugar?», «Como permitiram tão descuidada ruína?», «Porque matam outra vez João Batista, envenenando-o de desgosto?»

Marzagão é longe.

Na primavera os pomares acendem-se de uma alvura comovente, capaz de arrancar aos poetas mais empedernidos e citadinos exclamativos versos de admiração. O castelo e a desmoronada igrejinha adquirem uma feição simpática. De quando em vez vêm aqui um fotógrafo, um historiador, uma jornalista. Lá se mostra de novo ao país o perdimento, o estado escandaloso do que bem podia ser uma atração turística, a vileza do assim se achar tão desconservado o património comum.

Mas as primaveras voam com as retornadas andorinhas.

Depressa as estações circulam, vai-se o verão, voltam as neblinas de outubro, as bátegas de novembro, o silêncio. Pouca é a necessidade de aqui virem os de cá, menor a dos forasteiros, nenhuma a dos homens do poder. Dir-se-ia, de resto, que não podem o vento, a chuva, a neve, o sincelo, o gelo, estragar mais do que já fizeram no curso do tempo. O que aqui ficou é o dente obstinado na boca de um velho, é só um restar de memória, um travo da piedade de antanho, uma minudência mais no quotidiano de uma província toda ela ameaçada de morrer.

Não há mal que não encontre uma surpreendente continuação.

Sucede que um automóvel furtivo veio pela mesma estrada por onde outros não vieram. Enganou-se numa saída da autoestrada e depois deixou-se ir. Conduzia-o um estrangeiro, um curioso, um homem de longe. Ia, vinha, voltava à direita, parava, engrenava a marcha à ré, volvia à esquerda, prosseguia. Aqui, ali, além, disparava a máquina fotográfica, tirava apontamentos, fazia rasuras num caderno confuso, desenhava a trouxe-mouxe às vezes uma torre, esquemas, ideias e tudo muito circundado de círculos e setas.

Era um argumentista.

Sucede que parou o carro nesta mesma linha de paralelepípedos onde ficou a nossa anterior indignação. Imobilizado o veículo, subiu o homem ao castelo, flanou pelas ruelas tortuosas que sobem para os torreões, deslumbrou-se com a paisagem aberta e ampla, alongando-se infinitamente até ao azul cada vez mais ténue das montanhas de Alijó, do Pinhão, de São João da Pesqueira, de Vila Nova de Foz Coa, de Torre de Moncorvo, de Vila Flor ou Alfândega da Fé, sabe-se lá até onde mais. Opostamente à cidade, onde se vê gente e não se enxerga pessoas, ali observava toda uma humanidade sem lobrigar vivalma.

Quem procura uma coisa e outra coisa encontra não é propriamente um descobridor.

Chama-lhe serendipidade ou serendipismo o dicionário e podia chamar-lhe o que quisesse, contando a salvaguarda da felicidade de se achar uma coisa a bem e com tempo. O homem municiou-se das anotações que quis, foi e voltou. Consigo trouxe gente. Primeiro a que devia desbravar caminho: o realizador, o diretor e assistentes de fotografia, a malta do dinheiro. Depois condutores de camiões, técnicos disto e daquilo, engenheiros de som, cenógrafos e costureiras, aderecistas, maquilhadores, o elenco.

Durante semanas a magia do cinema embusteou, capeou, disfarçou.

Completaram-se as paredes, vieram carpinteiros para as vigas, assentou-se o telhado, colocaram-se quícios e madeira em todos os portais, puseram vidros nas aberturas, fez-se o assoalhamento e a mobilação, impôs-se um altar no transepto, vieram figuras (duas, em particular, mostrando o grande pregador anacoreta batizando Jesus no rio Jordão), vieram castiçais, panos, paramentos, a Bíblia. Mas tudo de madeira prensada, de gesso, barro e alumínio, tudo plástico e de cartão, tudo de empréstimo, frágil e de fazer de conta.

As filmagens fizeram-se.

Simulou-se uma grande batalha medieval, com reis e exércitos inimigos, amores, ódios e insídias, gente leal e pérfida, aristocratas opressores e oprimidos camponeses. Iam captando as câmaras o incompatível mundo da ficção. Durante semanas foi um ramerrame de «atenção», «ação», «corta», um dinumerar de «takes», um sem-fim de transeuntes desejando autógrafos, um desfilar de forças de autoridade, um entra-e-sai de secretários de estado, vereadores, cónegos, presidentes deste e daquele instituto obscuro, de notáveis do ramo hoteleiro, de representantes da confederação á e da escola superior bê, da cooperativa agá, do grémio capa, das empresas xis, ípsilon e zê.

Depois foram-se todos embora.

Levantaram ferros e contraplacados, confiscaram o recheio de aluguer, esvaziaram o espaço até voltarem (ao seu estado de esqueleto) as paredes descarnadas. Regressou o silêncio ao cimo da colina, voltou o inverno a invadir sem oposição os frios destroços de granito da igreja abandonada. Bom seria que o aspeto íntegro dos grandes planos feitos pelos operadores de câmara correspondesse à verdade. Quem olhava o pobre templo devolvido à sua decadência não podia impedir-se de muito lamentar. «Porque não vêm cá os tipos de Lisboa?», «Como não ver isto?», «A que se deve tamanho desprezo?», «Antes nos governassem os estrangeiros?»

Um facto insólito deve ser acrescentado.

A partir dos idos de dezembro, dia de Santa Luzia, sucederam-se em Marzagão relatos de vozes e misteriosos sons noturnos: choros, imprecações, relinchos e galopes. «Os mortos acordaram» espalhava-se, «Despertou-os o bulício das gravações cinematográficas», «As almas estão ressentidas, por causa das estelas funerárias partidas, por causa das tumbas esventradas», «Deus castiga quem assim deixou a sua casa ao prejuízo dos séculos».

As aldeias são férteis em cenas imaginativas.

Dizem na noite de Natal, crescendo para lá e para cá das muralhas do grande castelo ermo, se escutaram cânticos, que coros altíssimos, a coberto da escuridão, faziam ressoar nas pedras frias. Dizem que uma grande claridade riscou o céu e que, súbita, dentro da igreja arruinada de São João Batista, deflagrou uma luz maravilhosa, como um incêndio, e que por entre as sombras das grandes árvores em volta passos e silhuetas de pessoas e animais subiam na sua direção.

.

O presépio

497px-Correggio_-_La_Vergine_che_adora_il_Bambino_-_Google_Art_Project
Pintura de Antonio Allegri (Correggio)

.

Esperava-se nesse Natal de 1521 um milagre. Todo o Danúbio fora infestado de turcos, depois que Solimão tomou a cidade de Belgrado e se dispunha agora a despedaçar o reino da Hungria. Os otomanos espezinhavam e matavam, mas pior do que isso exigiam o horroroso devsirme, o tributo sobre o sangue. As crianças eram carregadas sem pingo de piedade pelos oficiais estrangeiros e levadas em cestos, à garupa dos cavalos ou das mulas; convertiam-nas depois à religião inimiga, transformando-as em máquinas de guerra leais ao sultão, esquecidas de tudo quanto tinham sido e de tudo que poderiam ter sido. Assim Solimão, o Magnífico, punia os cristãos, roubando-lhe a terra dos antepassados e deixando que os antigos filhos se transformassem nos castigadores vindouros.

Na ilha de Čakljanac, na pequena igreja bem a meio das duas margens do rio, alguém se lembrara de repetir a tradição do santo italiano de Greccio. Construíram, portanto, junto ao altar uma cabana com toros e colmo e dispuseram as figuras de barro. Eram figuras tão reais que a comoção se apoderou dos crentes e do padre. Rezava-se com lágrimas suplicantes para que os soldados do sultão não cumprissem o odioso imposto, e por isso as mães apertavam os filhos e ecoavam mais alto as palavras do pregador.                                                    

Da cidade de Nándorfehérvár tinha partido uma guarnição. E foi em muito má hora que ali chegou, nessa noite pura em que toda a aldeia se reunia para celebrar o nascimento do salvador da humanidade. Os brutais janízaros irromperam pelo templo e fizeram cumprir a determinação do califa e imperador, retirando-os pela força (erguendo os sabres, arreganhando os dentes, cuspindo impropérios) os rapazes que deveriam tornar-se, eles próprios, a futura guarda do sultão.

Conta-se que nessa noite, desse teatro de barro, madeira e palha, desapareceu misteriosamente para nunca ser encontrada a figura do Menino Jesus. Que todos as figuras adquiriram a feição pungente de um velório e que os próprios anjos tapavam o rosto com as mãos castíssimas que deveriam erguer-se em solene devoção.

Este presépio é, ainda, o mais bizarro do mundo.

.

Fósforos

Fotografia de Svetlin Yosifov

.

O velho recolhia todos os paus de fósforo que podia encontrar. Primeiro julgaram-no um desses artesãos que constroem castelos e navios. Mas ninguém lhe viu vez alguma arte ou obra, e por isso com o tempo passaram a ver nele um doido.

Os pequenos paus ardidos dão uma impressão bela do que é a nossa vida e do que a nossa morte é. Alguns são facilmente decapitados, outros mantêm inteira a cabeça cínzea e o tronco chamuscado. Unidos uns aos outros com paciência e vagar, eles erguem paliçadas, pontes, jangadas entre o reino dos vivos e o reino dos mortos. São como poemas escritos para durar um instante de milagre e para sempre de tristeza. É preciso compreendê-los.

Em dezembro, quando os dias se apagam mais cedo, muito próximo do Natal, encontraram o velho morto em casa. Jazia estendido no chão, no interior de uma gaiola gigantesca, composta por milhares e milhares desses encantadores pedaços de madeira queimada. Era um pobre mausoléu.

Nele se guardava ou prendia o velho, ninguém até hoje foi capaz de decifrar de quê ou porquê.

.

O diospireiro

Fotografia de Ernesto Scarponi

.

Nessa Consoada não houve neve, apenas chuva e vento. À volta da lareira não foram postos os potes de ferro, nem se escutaram vozes concordantes, extasiadas e nostálgicas. A velha cozinha recebeu somente um hóspede. Viera para cumprir o voto: enquanto fosse vivo, ainda que por uma noite no ano, aquelas paredes sairiam da ténebra e do silêncio e seriam adoçadas pelo brasume e pela sombra cada vez mais tremelicante das suas mãos. Tinha esse dever.

Sobre a longa mesa de pinho abriu a garrafa, desembrulhou o jantar, sentiu o abandono garroteá-lo, mastigou sem gosto. Os talheres enferrujados da casa, a lareira mascarrada e mal desentupida, a ausência de cânticos, a falta do aroma da canela pareceram-lhe a parte significativa e incompreensível do seu destino. Era o último, tinha essa obrigação!

Estendeu ao comprido do soalho, paralelo ao lume, um saco-cama, deitou-se nele e ao cabo de muito tempo adormeceu. Quando horas mais tarde abriu as janelas, foi surpreendido pela luz lavada, veemente, puríssima da nova manhã. Havia rútilos e revérberos macios e dolorosos, que os olhos aceitavam e rechaçavam ao mesmo tempo.

Saiu então para o pátio, caminhou pelo horto, andou no meio das ervas e das árvores, seguindo os regatos e os trilhos da murta. O cheiro do verde era tão intenso que em mais do que uma ocasião se sentiu compelido a descer as pálpebras e a aspirar em longos haustos o que da terra invisivelmente se erguia. A dada altura parou a contemplar um diospireiro. Estava ainda carregado de frutos: velhos e encarquilhados dióspiros, repletos de bolor, iluminavam os ramos quase secos, dando-lhe uma cor de cobre e de fogo e uma feição amicíssima.

O homem espantou-se. Não podia entender como, ao invés de todos os outros em volta, aquele diospireiro não tivesse sido despojado pela intempérie ou pelos pássaros famintos. Comovia aquela visão do tempo miraculosamente adormecido. Com algum esforço de imaginação, o homem conseguiu ver o desenho e o amor das árvores incontáveis que nessa altura do ano as crianças decoram com enfeites, luzes e flocos de algodão. Sentiu então que não estava só, que nalguma parte deste ou do outro mundo o aconchegavam.

.