O Orador dispôs um olhar exortativo sobre a assistência. A preleção corria-lhe bem, aqui e ali (notava-o agora) talvez alegórica demais. Para o dissimular, o Orador servia-se de um tom mais crispado, acusando os adversários de todo o género de manigâncias. Vieram as palmas. Alguns que tinham os maxilares rigidamente presos à boca para não serem vistos a bocejar, puderam soltar «Bravo» e «Apoiado».
Falou durante uma hora e cinco minutos. No final, elevando o tom, como quem dá o remate final numa pintura muito rebuscada, olhou a plateia e quase gritou:
– Assim, ilustres companheiros, amigos, correligionários, o Partido deverá constituir-se como um exemplo inatacável, lembrando a sua matriz fundadora e os seus líderes do passado. Somos o partido das grandes reformas e nunca nos coibiremos de ostentar na lapela a vitalidade do que criámos, nem o desejo de refundar a nação e de lhe impor as mudanças inadiáveis! Não permitiremos que a causa pública se veja coartada por irrisórios expedientes, negligenciada ou impedida por esta oposição incompetente, acéfala, por esta oposição acrítica, populista e demagógica! Somos nós, nós, este partido, quem tem o ónus da responsabilidade! Não nos demitiremos do nosso lugar de charneira! Em cada aldeia, vila ou cidade faremos chegar o progresso das nossas ideias e faremos que o bom povo compreenda a nossa visão! Tenho dito!
Seguiu-se o ribombo das palmas. Alguns, que dormitavam, começaram por instinto a aplaudir. Aplaudiam com força, com frenesi, com devoção.
O Orador recebeu abraços apertados de consideração, elogios cochichados dos membros da mesa, apertos solenes de mão. Liam-se nos lábios expressões encomiásticas, «Muito bem!», «Honra-nos!», «Parabéns»! Era um homem conspícuo, falara brilhantemente. A grande sala, unânime e rouca, era o sopro guardado de uma bolha de sabão. Unânime e rouca, elástica, crescia na ovação.
O Orador sentou-se no lugar que ocupara antes. Vários colegas levantaram-se em volta para o virem saudar, para lhe exprimirem a admiração e ele, notavelmente contido, sorrindo apenas, recebia e agradecia comovido.
Outro orador subiu ao palanque. Outros se lhe seguiram. Mas nenhum orador era o Orador. O soberbo homem esgotara o filão da melhor retórica. Quando, horas mais tarde, o presidente da mesa declarou encerrados os trabalhos por esse dia, era ainda a intervenção do Orador a que prendia as atenções.
Ninguém duvida da importância deste tipo de acontecimento, nem da profundidade intelectual dos palestrantes. Costuma discutir-se sobre a distribuição de cargos, sobre o modo mais eficiente de criar falanges de apoio, sobre vendetas e punição de dissidentes. Também se fala do futuro do país. Sobretudo do passado do país. A res publica atrai centenas de congressistas que não arriscam nunca mostrar-se descontentes ou cansados. Convém ser cortês com quem tem poder, pese o poder pertencer ao povo. Simplesmente o povo é vasto e abstrato. O melhor é ser cortês com pessoas como o Orador.
Logo que as luzes se sumiram na grande sala, os grupos desfizeram-se e o Orador, retardando-se em colóquios fraternais com um companheiro veterano e outros nem tanto, pôde sentir no jardim anexo o aroma das laranjeiras em flor. Ia comentando ainda coisas sérias, sublinhando ainda a linha de orientação do Partido. Um coro de cabeças anuía. Era exatamente assim. O Orador adivinhara-lhes na cabeça o pensamento. Como podiam eles não concordar?
Era uma noite belíssima. Quando, por fim, se introduziu no carro e se dispôs a regressar ao hotel sentiu-se um tanto só. Verificou no relógio: eram quase três horas. No céu erguia-se o silêncio, um infinito recamado de estrelas e poeira de galáxias. O Orador recordou-se do avô, que costumava ensinar-lhe o nome das constelações e lhe narrava as façanhas dos argonautas.
O ar limpo passava-lhe por entre os dedos e pelas narinas. O volante era tão leve como uma pena. O Orador sentia-se mergulhar num alçapão misterioso. Uma vozinha vinda de nenhures reclamava a sua atenção. Quase sentiu saudades dos campos, das noites da infância, do velho que lhe fazia papas de abóbora. Essa flamazinha aguda doía.
‒ Que porra! – resmungou o Orador.
Ligou o rádio. As notícias acalmaram-no. Falavam do congresso, do Partido, de si. Todos aquiesciam. Repetia-se o aviso, «irrisórios expedientes», o «calcanhar de Aquiles», nada podia perturbar as grandes reformas em curso. Pedia-as o país. O Orador penetrou na noite. Mal-humorado. Terrivelmente…
Foste a única pessoa que conheci até hoje que não matou um único animal. Exceto talvez os piolhos, se os tiveste alguma vez. Exceto talvez as lombrigas… Foste a primeira pessoa a recusar, numa célebre vindimada, a cabidela da minha avó e a provocar o caos nos grandes potes de ferro, onde a galinha acabava de cozer sob a vigilância de minhas tias e progenitora.
‒ Ó minha mãe, o que é que o homem vai comer?
‒ Eu sei lá o que é que ele vai comer! Olha, come um caldo de coibes!
Cheiravas a sabão clarim (nunca me lembro da feição das pessoas, mas dos cheiros sim – fica-me deles a fotografia penetrante e inesquecível): a camisa de linho arregaçada nas mangas, as calças com suspensórios, as socas de grandes tachas douradas nos pés, a navalha nas mãos e o perfume do sabão (será sempre o melhor de todos), como se nenhuma mácula pudesse tocar-te.
Vejo-te ainda, velho amigo, sentado na mesma tampa de cimento do poço, os cães aninhados entre as tuas pernas, os pássaros a comer-te das mãos (bicando por entre os dedos grossos e cheios de cicatrizes), os pintos amimalhados seguindo-te no quintal, a abelha amestrada que exibias com gosto mas sem vaidade. Vejo-te ainda na mesma posição, quieto e profundo, como um apóstolo fora do tempo.
‒ Isto aqui é uma paz… Assim que debe ser…
Porque aquilo ali, a casa do avô, tinha o seu quê de pacífico, entre eucaliptos e carvalhos, caminhitos de terra batida, tanques e regos de água, ervas e nastúrcios, um cento de plantas de todas as formas e aromas… Aquilo ali era uma paz. Vinham os andorinhões e as magníficas pegas-rabudas… Vinham os ouriços-cacheiros e às vezes a raposa… Vinham os soberbos torvelinhos de ar puro dos campos, das magnólias e árvores de fruto de ao redor da casa.
Mas era com a bicharada que te entendias melhor.
Era com ela que partilhavas a alegria do verbo durar. E os bichos pareciam compreender-te, procurar-te, querer-te. Os gatos preferiam o teu colo. Os pardais respondiam aos teus assobios. As borboletas vinham poisar-te na nuca. As pombas gingando o pescoço pareciam dançar para ti. Vejo-te, ainda, sorrindo e fechando os olhos, como um franciscano fora do tempo, enternecido e um pouco doido.
Uma vez vi-te a ajudar um louva-a-deus a pular a parede até à esquadria da janela e a convidá-lo a ir.
‒ Bai lá à tua bida, meu grande tolo…
E o louva-a-deus, como iria um aranhiço, uma formiga ou uma mosca enjaulada, foi.
‒ Bai lá à tua bida, meu grande tolo…
Lá, em casa do avô (onde, tocados pelas recentes modas francesas, subíamos escaleiras no lugar das escadas e nos deliciávamos com a chofagem, que ventilador era coisa que não se dizia), todos te julgávamos c’est fou, um c’est fou adorável, adorável e raro, por causa daquela coisa nas minas.
– Trabalhei acajo quinze anos nas minas de Llombera, em Espanha. Aquilo era duro… quinhentos metros abaixo do chão, ou mais …
Andava já na escola. Quinhentos metros eram dez vezes seguidas o nosso recreio. E sempre para baixo, como num abismo.
‒ Nem as mulas queriam ir… Bem lhe punham bendas nos olhos, mas as coitadas já sabiam pró que iam… Punham-se a dar pinotes…
‒ Ó Sinhor Romão, e as mulas iam lá pra baixo porquê?
‒ Atão? Para ajudar nos bagões…
Não há quem resista a uma boa história contada na primeira, nem a uma boa crónica revista na terceira pessoa. Nós éramos olhos e ouvidos e um nariz. Um bando de miúdos esquecidos das mãos, das fisgas e das caixas de fósforos, caçando imaginariamente o breu e os sons que subiam da terra, aonde tu te entranhavas doze horas por dia, de picareta em punho.
– Depois sucedeu o que tinha de suceder.
– O que sucedeu?
– A explosão.
– Qual explosão?
– Foi um arrebentamento… Um morreu logo. Outro morreu depois. Eu fiquei todo desfeitinho, as tripas bieram cá para fora, mas escapei… Para dizer a berdade, não sei como escapei!… Tiberam de as pôr num lençol. E cum elas assim postas à minha beira fui parar ao hospital… Depois disso nunca mais trabalhei…
Imagino agora, à distância limpa em que os factos se veem melhor, o relâmpago ensurdecedor, o sismo nas galerias do inferno (tábuas esfarrapadas, o elevador avariado, o urro das alimárias), o cadáver e os corpos esfacelados, o sangue espirrado nos filões do minério, o pânico nos olhos imersos em escuridão, em suor e em cansaço, tu levado numa ambulância anacrónica, desde as montanhas até Madrid, moribundo, com as vísceras ensacadas num lençol arranjado à pressa.
Foste a única pessoa que sabia já em miúdo ser uma pessoa única. E eu respirava o cheiro do sabão, sem poder compreender que aquela tua serena brancura ao sol (a navalha nas mãos, as socas de grandes tachas douradas nos pés, as calças com suspensórios, a camisa de linho arregaçada nas mangas, em cima da tampa do poço) pudesse alguma vez ter sido conspurcada pelo horror de uma noite tamanha.
Escrevo para ti, Romão, com saudade. Cada vez mais preso a esse maravilhoso arquipélago formado pelas memórias, intocado e intocável, onde sobressaem rostos e nomes e façanhas. Talvez por compreender cada vez menos este oceano desprezível de dias informes e sem fundo. Tu eras soberbo (um c’est fou) e eu devia-te, devo-te há muito, este texto. Se em algum lado estiveres, um abraço, o meu abraço, velho amigo!
A meio e no alto do bosque fica o eremitério. Escassa gente atravessou estes portões nos últimos cem anos e nas centúrias anteriores quem o fez pôde descrevê-lo como nós o descreveremos agora: é um lugar ermo, tosco, bendito, impoluto.
Os adjetivos nada dizem, reconheçamos. Haverá quem deseje um relato pormenorizado sobre as suas escadarias, sobre as suas varandas e jardins incultos, sobre a cozinha com forno e celas desertas, sobre o oratório. Mas nem esses serão bem sucedidos. Não há que descrever mais do que paredes e arestas descarnadas, granitos com manchas de humidade e tenebrosos entrançados de silvas ameaçando o lintel das janelitas, junto à cumeeira do tugúrio.
Tudo se mantém inalterado desde a era dos primeiros santos que aqui resgataram a sua existência ao bulício e ao sorvedouro das grandes cidades. A natureza só não submergiu por completo esta edificação pelo caridoso ofício do irmão Anthony Montague, a quem cabe a guarda destas vetustas e gastíssimas lâminas, com que vai limpando como pode as balaustradas, os tetos e as esquinas de pedra musgosa.
Mas o visitante importar-se-ia sobretudo com o silêncio.
De manhã à noite, a maior gratidão do eremita é para o depurado silêncio que brota de todas as coisas em redor, por fora e por dentro de tudo. O bom silêncio envolve-o numa paz profunda e ao ter-se a ele acostumado de tal forma disciplinou o ouvido que alcança facilmente os mínimos estalidos, os mais distantes assobios, o sussurro da água nas fontes do bosque, a súbita mudança do soprar do vento na cabeleira dos pinheirais. Ao mastigar o bocado de pão à noite, os estertores da boca ou o crepitar da lenha tornaram-se palavras inteligíveis de que gosta mais do que das antigas, cujo significado lhe pareceu tantas vezes embaciado e inútil. Mesmo as orações, que medita e repete várias vezes ao dia e durante o serão, prefere pronunciá-las sem articular a língua, dizendo-as com o seu timbre de voz interior, tão belo e abafado tanto tempo. O silêncio tornou-se o seu modo de estar com Deus e o único motivo por que vale a pena continuar vivo.
Montague vive no eremitério há somente cinco anos. Veio de Dublin, onde foi casado e onde exerceu os cargos mais distintos na vida política e também na empresa multinacional EMPIRE.
Depois de nesse dia de outono ter contemplado na paisagem a formação de bulcões, sobre uma brisa quente e pressaga, lava-se agora à chuva abundante da noite com um quadrado de sabão. A tempestade faz as sombras mais suspeitas, com rebrilhos de relâmpago. Ao lume tem o eremita o seu caldo de feijão e sobre a mesa o De Civitate Dei, que vem há muito decompondo gulosamente em epifania e amor pelo próximo.
Depois de se secar num monte de trapos, sentindo a pele exalar o doce torpor da purificação, Montague dirige o olhar para o firmamento. Há no imo da sua alma qualquer reminiscência druídica, pois a natureza por si só o comove como um deus e lhe apetece alimentar-se de raízes e ervas para reencontrar um caminho perdido.
Escuta então um restolho. Um restolho e um gemido. Julga ouvir, também, o mover das bisagras e o raspar de metal sobre um lancil. Não tem dúvidas de que algo ou alguém vem aí. A pele empola-se, os pelos estão eriçados. Nunca lhe sucedeu igual. A sua santidade, tão duramente procurada nestas paragens, não o impede de apossar-se do tronco de carvalho que lhe serve de cajado e de o projetar defensivamente. É uma arma tão boa como qualquer outra e não tendo outra é esta melhor ainda. Um halo argênteo e azulado corre as paredes, invade-lhe o interior do casebre. Prepara-se para brandir o que segura nas mãos, quando uma voz o imobiliza.
– Olá, está aqui alguém?
II
A rapariga sorria e agradeceu muito o cuidado. Encontrar um chão seguro, poder abrigar-se da chuva e comer algo quente era muito melhor do que podia esperar. Não sabia explicar como ali fora parar, apenas que se perdera do seu grupo e que caminhara sozinha e desesperada durante horas, especialmente depois de anoitecer.
«Graças a Deus, descobrira aquele oásis no meio do deserto!»
Montague, aturdido, envergonhado, estremeceu ao som da palavra «Deus». Deitou uma concha de sopa no prato dela. Achou que talvez fosse avareza. Serviu-lhe outra concha. Não sabia se devia sentar-se a seu lado ou se devia comer num canto da cozinha. Ela falava, falava depressa, repleta de gratidão e de ruído. Como a rapariga não se decidia a começar a comer e o olhava fixamente, ele sentiu-se na obrigação de a acompanhar. Partilharam a refeição, depois de rezarem. Montague não percebia bem o que ela dizia, não tanto pela rapidez da sua fala, mas sobretudo porque o coração lhe batia descompassado e lhe tolhia a lucidez.
«Vivo muito perto de Cardiff, mas sou de Bristol. Na última década vivi em sete países diferentes. Adoro explorar a natureza, sabe? Passo a vida a viajar e a fotografar os sítios mais encantadores do nosso planeta…»
O lume, avivado pela mão diligente do eremita, parecia mais rubro que um rubi. Na face angulosa do granito, a silhueta da rapariga aparecia distorcida, como se da cabeça aos pés inúmeras hastes se descobrissem e a tornassem monstruosa. Por outro lado, a sua voz, vencida agora pelo cansaço e pelo sono, era menos vigorosa, mas muito mais dócil, quase sedutora.
«Quase não abriu a boca… E eu tão tagarela… Fale-me de si. Afinal, é o meu querido salvador… O que seria de mim, se o não tivesse descoberto esta noite?»
Os pelos dos braços e das pernas de Montague voltaram a erriçar. Depois de ter desaprendido determinadas facetas do mundo, aquela linguagem perturbava-o, tornava-o de novo refém de um mecanismo de que se libertara, a seguir à morte da sua mulher, muitos anos antes. O silêncio e o isolamento trouxeram-lhe o caminho do êxtase e encerraram atrás de si portas e corredores de cuja memória não estava já muito certo.
«Não sei o que lhe diga… Vivo só… Aqui… Há muitos anos…»
«Meu Deus, estou tão fascinada! O senhor é um daqueles santos, que se afastaram do mundo para conquistar o direito ao Paraíso!… Tão bonito!»
«Sim.»
«Não consigo imaginar o que tem sido viver longe de tudo! Sem conforto. Sem tecnologia. Sem o toque de uma outra pessoa!»
«Vivo com Deus.»
«Mas Deus é amor. Deus quer que nós amemos, que nos amemos uns aos outros!»
E ao proferir as palavras «Deus» e «amor», a rapariga soergueu o tom, como para espicaçar o entendimento de Montague. Sorria. Para sublinhar o poder do seu raciocínio, colocou-lhe a mão por cima da sua própria mão. O contacto da pele delicada com a pele áspera surpreendeu mais o eremita do que a afoiteza das palavras. O sorriso da rapariga fê-lo recuar. Precisava de retirar-se para orar. Tinha já passado o tempo devido.
Então, a rapariga aproveitou para lavar os dois pratos, estender o saco-cama, cuidar como podia da higiene pessoal. Depois despediu-se do anfitrião, sorriu com um «Boa noite, meu salvador!» e deitou-se.
Montague, mais uma vez, não conseguiu decidir entre usar a sua cela ou acompanhar a rapariga. Não raras vezes precisou de lidar com vermes e répteis, atraídos pela humidade ou pelo calor daquele antro. Receou que soasse a má criação não velar pelo sono da sua visita. Tanto mais que as horas noturnas durante as tempestades lhe pareciam um ensejo para descortinar a vontade de Nosso Senhor.
Ficou, por isso, diante da lareira, não muito longe do perfume que a rapariga exalava e que o entontecia. Era como uma tentação.
Rezou. Pediu perdão a Deus por todas as impurezas que nesse final de dia o pudessem ter cometido. Especialmente, quando se lembrou de Rose, a sua falecida mulher. Porque se lembrou dela nesse final de dia, sim, não da Rose murchando numa cama de hospital, mas da Rose do namoro e do casamento, bonita e insensata, que o desafiava a toda a hora, sem temer ou admitir sequer a têmpera do pecado.
«Não consegue dormir? Ou simplesmente nunca dorme?»
Montague estremeceu. A rapariga dirigiu-lhe nova pergunta.
«Assustei-o?»
«Não.»
Apesar da fadiga, do calor da fogueira, do som aconchegante da água precipitando-se das alturas, a rapariga explicou que não conseguia adormecer. Intrigava-a aquele modo de vida de Montague, aquela decisão de voltar as costas ao mundo, aquele silêncio e solidão no alto e no meio da floresta.
«Não voltei as costas ao mundo…Voltei-me para Deus…»
A rapariga abriu o fecho do saco-cama, soergueu-se (dorso encostado à mochila) e, iluminada pelas achas, disse que também Zaratustra viveu nas montanhas, mas que ao cabo de dez anos, segundo as sentenças de Nietzsche, precisou de voltar para junto dos seus semelhantes.
Um pouco depois, o eremita e ela, na mesma posição em que haviam jantado, estavam um dia diante o outro, sentados à mesa. No mesmo tom sereno, no mesmo ritmo apaziguado, disse muitas palavras doces. De quando em vez, a rapariga mexia no cabelo e sorria. A camisola que envergava tornava-lhe o desenho dos seios mais óbvio, como se ao mesmo tempo os guardasse e os expusesse. Montague não ouviu quase nenhuma das palavras que lhe foram destinadas.
Então, animada pelo assentimento do eremita, reparando mais na beleza dos seus olhos azuis (que as barbas desleixadas não podiam senão evidenciar), afogueada pela gratidão que sentia em relação a esse homem invulgarmente casto e sóbrio (mais atraente lhe parecia o seu carácter assim), a rapariga tomou-lhe as mãos e beijou-as, acariciou-lhe o rosto, percorreu com os dedos a comissura dos lábios e, por fim, beijou-os também. Montague nada fez para interromper estes desvelos.
III
O eremita acorda sempre antes alba. Hoje não. Os olhos, terrivelmente cansados, avistam uma leve coluna tisnada a subir e a tocar o cume da cozinha. É uma língua de fumo que sai do raizeiro sobre a laje da lareira. Sobressalta-se, de chofre, ao dar-se conta das orações negligenciadas. Sente frio. A fome revolve-lhe o estômago. Recorda-se da tempestade, que durante a noite recrudesceu. Agora que os sentidos recobram o seu préstimo, percebe também um perfume diferente no ar, pairando como uma memória difusa. Lava o rosto, medita as primeiras orações, come um pouco de pão e, então, sim, compreende a indolência do seu corpo: acode-lhe à cabeça a rapariga.
Não pode descortinar um único sinal dela. Não percebe quando, como e porque partiu. No chão, onde o saco-cama foi estendido, não se perscruta o mínimo vestígio. Somente o areão e alguma folha ressequida, algum inseto sossegado e em trânsito entre esconsos.
Montague, aturdido, lembra-se do corpo nu da rapariga, do corpo quente e meigo que roçou no seu próprio corpo e o submeteu. Mas o chão, o puro chão do seu tugúrio, nada informa sobre o amor que ali existiu.
A rapariga, cujas palavras irresistíveis, cujo sorriso invencível, cuja doçura o fizeram mergulhar num sono profundo, desapareceu. Procura um só indício de que a sua cabeça o não engana. Na pedra onde costuma lavar o seu prato, não pode avistar senão um prato. Não possui dois pratos, aliás. Em cima da mesa, na exata posição em que o deixou ontem, o De Civitate Dei de Santo Agostinho.
A demanda prossegue. Fora, a manhã mostra-se esplêndida, como todas as manhãs de sol que sucedem às noites de procela. Montague verifica o granito sem lama da escadaria, a pequena vereda de acesso sem sulcos ou estrias de calçado, o portão que permanece tão fechado como um segredo por confessar. Treme.
O que foi tudo? Um sonho? Uma visita do demónio?
O frio fá-lo tiritar. Sente-se horrivelmente só. Pela primeira vez, nesse lustro, as forças faltam-lhe. O que foi tudo aquilo? Uma epifania? Uma prova de fé a que Deus o sujeitou?
Treme. Sente-se doente. Na pedra da lareira acumula-se a cinza da noite. Nenhum calor, nenhuma chama, nenhuma centelha aviva os seus olhos. Somente um fiozinho de fumo resta no corpo ardido do raizeiro. Montague pensa que chegou o seu momento: divino ou demoníaco, o sopro da vida está prestes a expirar. Não sabe, não o censuremos, que interpretação dar a tudo isto…
A nossa filha multiplica os desenhos. Este agora vai para o frigorífico, trocando de lugar com um outro que ali expomos desde a semana passada. Reparaste no denodo com que fez crescer uma grande árvore quase azul? E as nuvens cor de laranja não são mesmo maravilhosas ao lado de um sol perfeitamente torto e espinhento como uma batata grelada?
É uma artista a nossa menina. Eu mesmo coloco o íman que há de segurar esta nostalgia do tempo vivido em tempo real para sempre. É um amor! Deitada na carpete, com os pezinhos a dar a dar, os lápis de cor atravancando a folha e esse amor pelas coisas que vão nascendo do nada: a casa de janelas acesas e fumo a erguer-se da tosca chaminé, as borboletas esvoaçando ao lado dum pai e duma mãe e dum anjo ao meio.
– Gostas, papá? Gostas, mamã?
E, depois, quando acabo de prender o desenho à parede metálica do frigorífico, sinto uma grande dor no peito e acordo.
– Este é o meu sonho, Sr. Doutor. Deus, que me quis para seu servo, envia-mo todas as noites há semanas… O que significará?