
Na cama ouve a chuva a cair, às vezes tocada pelo vento com uma tal intensidade que o seu corpo, por instinto, adota a posição fetal. Depois adormece, sonha com um caminho enlameado em direção à escola primária, põe-se a conversar com velhos simpáticos que trabalham nos campos e lhe dizem adeus. Algo em si (mecânico e enigmático) confessa-lhe que naqueles rostos há somente agora um lastro enganador de vida. Mas de repente um som truculento, insistente, metálico, produzindo um efeito de vergasta (a campainha da escola, o despertador no telemóvel) faz desaparecer toda aquela paisagem antiga e bucólica, todos aqueles homens e mulheres dobrados sobre a sachola, todos aqueles estreitos por entre o mato e os giestais. Laura é sacudida, atirada para a realidade, exposta a um tempo duro, a um lugar inexoravelmente seu no mundo.
Levanta-se, empurra para trás o edredão e o lençol, abre a janela, fica um instante imóvel, de olhos fechados, como procurando despedir-se de si noutra existência, como procurando encontrar o melhor percurso de si até si mesma.
O cheiro de chuva principia a invadir o quarto, a expulsar o ambiente saturado de odores corporais. Apesar de fria, a aragem é agradável. Nestas ocasiões ocorre-lhe sempre a expressão “cheiro verde da chuva”. Gosta da combinação das quatro palavras, do que nelas sobressai de sinestesia, de metáfora, de onomatopeia, de aliteração. Gosta de imaginar que é verde o cheiro da água precipitando-se sobre a terra, embebendo-a, fazendo-a germinar, cobrindo-a de musgos e de líquenes. Sobretudo em abril, especialmente quando os perfumes nascidos da noite são profusos, indescritíveis, capazes de entontecer.
Sempre essa mistura de ervas, flores, árvores, frutos, fungos, minerais lhe pareceu um cântico formidável de criaturas silenciosas, um hausto de primavera, um íman de poesia, chamemos-lhe petricor, aldeia, saudade, vida.
Mas é tudo muito rápido. Rapidamente os olhos reabrem, rapidamente a cor feia da manhã nascente e acelerada a obriga a menear-se. Tem de vestir-se, pentear-se, maquilhar-se, beber o café, sair. A magia não dura quase nada.
Nada é um bom termo. Sintetiza a ideia que sempre nos fica quando observamos as nossas memórias à luz imparcial da eternidade. Tudo é igual a nada, somos um punhado de coisa nenhuma. O nosso empenho, a nossa felicidade, o nosso sofrimento, a nossa morte não passam de um detalhe.
Nas curvas que a linha do metro descreve, pontualmente apertadas, obrigando a mão a segurar-se com firmeza no apoio, estas frases soam-lhe com particular dureza. Tudo é igual a nada. Somos um punhado de coisa nenhuma. A nossa grandeza é um pingo dessa chuva que resvala para as sarjetas imundas da cidade.
Laura sabe que as manhãs de abril, especialmente estas em que o sol não brilha, são enganadoras. Fazem subir uma espécie de nevoeiro que oculta os prédios mais altos. Deprimem. De resto, a sucessão de guarda-chuvas, gabardinas, botas, galochas coloridas enerva-a. Inversamente ao sonho, a viagem para o trabalho parece-lhe cruel, concreta, inescapável, como se fosse ela (e não os velhos da sua meninice) uma pessoa morta.
Quando as composições param e as portas se escancaram em simultâneo, Laura e dezenas de outros passageiros voltam a estugar o passo. Depois sobe no tapete rolante, esquecida já de todos os pensamentos anteriores, viva, sonâmbula, anestesiada, preparada para o novo dia, cheia de pressa, em rigor para lado nenhum.