No velho e saudoso dicionário de Grego-Português e Português-Grego de Isidoro Pereira, publicado pela Livraria Apostolado da Imprensa, releio na página 283 (terceira entrada da coluna à direita), um dos termos mais belos da língua ática: κάθαρσις, εως – purificação, purgação, catarse, consolação da alma pela satisfação de um dever moral, cerimónias de purificação para os candidatos à iniciação.
A necessidade das palavras antigas recorre nos dias em que nos faltam saídas de emergência. Nos dias em que sentimos falta de um bem maior e precisamos de nos lavar com um sabão profundamente eficaz, e não apenas a pele, mas o olhar, o sentir, a parte de nós onde corpo e espírito se miscigenam e soltam amarras em direção a lugar mais etéreo. Creio que me sentia assim quando escrevi o curto poema «Higiene Diária», incluído no livro Em Nome da Luz e que, à distância, me parece quase uma lista de bens imprescindíveis, um memorando, uma pobre oração: «coisas de que um homem precisa: / dos doze girassóis de van Gogh, / dos quatro Evangelhos, / de sabão rosa».
Ninguém fica igual depois de uma catarse. O preço dessa água, a bem dizer o padecimento e ardura do verbo καθαίρω, é parte do caminho para a salvação. Os gregos (todo o teatro de Ésquilo o ensina) acreditavam que nada na vida se aprende sem sofrimento. E quem aprendeu sente-se profundamente limpo, ainda que poucas vezes perceba ou tome partido do privilégio dessa salubridade.
Ponho o mar à minha frente e decido um grande silêncio. Não há maior bem do que calar todas as ressonâncias de que o vento é capaz na nossa boca e por dentro dos nossos olhos e nos confins da cabeça. Elidir um a um todos os sepultuosos ruídos em que morremos quando proferimos alguma palavra, esmaecer até ao nada uma atrás de outra todas as imagens que nos governam desde a infância, apagar o poder das teias cerebrais como quem se enlouquece com uma tesoura entre os dedos. O mar vem aos poucos, apodera-se dos rochedos em agulha e do cheiro seco do areal, transpõe a pérgula e a linha dos metrosíderos, coabita o espaço e o tempo que é, sem que o entendamos completamente como, um adormecimento, uma fragilidade, a própria ideia de deus soprando de novo nas impérvias narinas de Adão.
Só assim renasço. Só assim, atingindo a chã existência de mim mesmo, vergando-me até rastejar e ser argila e cair – repito – no grande silêncio de uma morte. É preciso morrer. Ponho o mar à minha frente e morro. Muitas vezes morri nesta vida. Foram deus e o mar, a mistura de ambos, o sopro que num é o outro, sei lá, foram deus e o mar quem me trouxe de volta muitas vezes – repito – nesta vida.
Acorda todos os dias muito cedo. Faz o menos barulho possível enquanto trata da higiene pessoal e de tomar o pequeno-almoço. Há pessoas a dormir e a necessitar do trabalho profundo dos sonhos.
Quando abre a janela do quarto, espreita sempre com muito interesse: a adivinhação da luz ou da falta dela (conforme a época do ano), o estado do tempo, o cenário com que a rua se apresenta, tudo o impressiona como se em cada manhã nascesse outra vez.
Porque se levanta cedo? Tem pressa de ir para o emprego?
Na verdade, não trabalha já. É um aposentado. Mas dá-se pressa de assistir ao nascer do dia.
Ao longo da sua já considerável vida, sempre o alvorecer (devota grande amor a essa palavra e a outras praticamente sinónimas, como alba, alvorada, aurora, arrebol, dilúculo), dizíamos, sempre o alvorecer lhe pareceu o truque de magia mais extraordinário do universo.
Sai para o terraço com uma chávena de café nas mãos, imaculadamente vestido, impecavelmente penteado e entrega-se à contemplação. A essa hora o cheiro das folhas molhadas pelo orvalho ou pela chuva, o sopro meigo e frio do vento nas árvores, o curto saltitar dos pássaros entre as telhas ou no quintal, o perfume misturado da murta, da terra e do café são como dádivas intraduzíveis.
Um pouco antes de o horizonte ser atingido de lés a lés pela labareda do sol, diverte-o a confusão de linhas esbranquiçadas que os aviões deixam à sua passagem. São traços gelatinosos, translúcidos, como aqueles que os pachorrentos caracóis desenham no cimento.
Vive com o filho, a nora e quatro netos. Ninguém em casa compreende este ritual. Ver a luz nascer, ainda que no inverno, sobretudo quando a cama tanto apetece, não é coisa de somenos importância.
Espera-se uma vida inteira pelo prazer de combinar estas coisas todas. Não há aqui qualquer toque de religião ou de poesia. Um homem em certo momento da sua vida prescinde de tudo. Menos de si.
«Os olhos percutentes encontram os meus. Quem diria que são olhos dormentes? O silêncio. O silêncio. Quando o azul desce, e se transforma no negro chumbado da noite, acende-se sobre ele uma densidade que o protege, e lhe permite continuar a vadiar. Convido-o para o meu quarto, que se desfaz na espuma do texto.»
Maria Gabriela Llansol, Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004 (Lisboa, Assírio & Alvim)
.
Gosto do silêncio. Gosto tanto do silêncio que aprendi a recusar quase todas as formas de convívio social, incluindo algumas do amor. A arte de me escapulir. A arte de me esgueirar. De contornar a obrigação do alarido. De ter de condescender com o telemóvel indiscreto. De ter de aceitar como um destino a arruaça com a sua música ordinária, a imitação do mau folclore brasileiro, o karaoke deprimente e o interminável festival de verão, os apitos na estrada, a mota que acelera todos os dias na nossa rua às duas e meia da manhã, a televisão aos gritos no apartamento ao lado, o fanfarrão da construção civil, a piada pornográfica, a fulana de voz nasalada, insuportável, o casal que discute a toda a hora, o puto lagrimento… De ter de tolerar todos quantos, a coberto de uma suposta celebração, sem pejo, multiplicam, amplificam, semeiam o ruído. De ter de mostrar boa cara para o altifalante e o megafone. De ter de curtir o palco e a coluna gigante. De me agradar com o fogo de artifício e a summer party, o chinfrim do tambor e, mais tarde, da bateria às mãos do filho do vizinho. De me deliciar com as noites de aniversário e a televisão nos dias de dérbi. De ter de ignorar os infindáveis duches e os tacões de salto alto sobre o teto, as descargas de água e a grita sexual durante a madrugada…
Gosto do silêncio. Do silêncio que me afasta dos lugares e das pessoas da confusão. Do silêncio que me faz caminhar por entre campos, ao longo de várzeas e veredas estreitas, onde o trissar da passarada e o assobio dos insetos, o rumorejo da água nascente e o ciciar do vento tornam cada instante mais íntimo e integrador de mim em mim próprio, purificador, apaziguador, poderoso! Gosto do silêncio. Do silêncio que é uma forma de linguagem, leve e subtil como as coisas que não víamos e vemos de um momento para o outro. O magnífico rendilhado da teia de aranha, na manhã de inverno, na esquina do celeiro, pejado de gotas de orvalho. O ondular enxuto da cizânia, quando as tardes de primavera derrotam definitivamente as chuvas de abril e abrem o coração mais empedernido para o cheiro absolutamente maravilhoso da terra. A ramagem consoladora das figueiras, nos dias inclementes de agosto, junto ao tanque de pedra, quando o calor parece paralisar toda a paisagem e envolvê-la (com os seus pardais de bico aberto) numa sonolência sem fim.
Gosto do silêncio. Do silêncio que lava os areais sofridos, minutos antes do pôr do sol, e nos penetra os poros e os ossos e nos torna da mesma matéria vaporosa do oceano e do horizonte frio. Do silêncio que sopra para lá das dunas e para cá dos lábios calados. Do silêncio que se encontra e nos faz encontrar a sós com os pensamentos mais inacessíveis, como se por ele brotasse a consciência e os pontos cruéis da agulha que nos cicatriza as feridas mais dolorosas.
Com o passar dos anos, venho-me tornando num viciado em utopias. O silêncio é, talvez, uma das últimas (malogradas) utopias do nosso tempo. Desaprende-se, desaprendeu-se rapidamente, a virtude de escutar, de perscrutar, de fechar os olhos e querer a paz. De exigir respeito pelo sossego e pela quietude. De protestar contra todas as formas que atentam contra o silêncio. Como tão bem escreveu Manuel Hermínio Monteiro (numa crónica publicada na revista K, em janeiro de 1992, e que viria a ser incluída em Urzes), «Andam a destruir o silêncio»! Andam a destruí-lo criminosamente, fazendo morta, cadavérica, putrefacta, a letra da lei que deveria proteger-nos de nós mesmos. Andam a destruí-lo, como o fazem com as nossas florestas, com os nossos mares, com a nossa sensibilidade, com os nossos sonhos e ilusões, com a nossa intimidade. Andam a destruí-lo, individual e industrialmente, desde os brinquedos irritantes que fabricam para as crianças aos dispositivos eletrónicos que apitam, avisam, repercutem, tremem, zumbem, estertoram, buzinam, chafurdam de som ao nosso redor a toda a hora…
Manuel Hermínio Monteiro, no texto atrás citado, pergunta: «Num lugarejo ouvem-se os seus respectivos altifalantes e os dos lugarejos vizinhos. Com tal arraial, quem ousa hoje em dia meditar?! elevar a alma a Deus…? e ter a triste sina de levar com uma pancada sonora nos tímpanos das emoções?» Será essa a questão? Reproduzir o ruído para esconder o homem de deus? Para calar angústias inconfessáveis? Para esquecer as origens telúricas, simples, quiçá primitivas?
Andam a destruir o silêncio. Última, desesperada ponte, creio, para o melhor de nós próprios. Como maravilhosamente ensinam Bashô e a meditação budista. Como maravilhosamente ensinam a música e a poesia. Como maravilhosamente ensinam o vento e as noites de solidão deliberada. Andam a destruí-lo. E ninguém parece importar-se muito com isso!