Bach

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Fotografia Jon Tyson

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Verdadeiramente devo tê-lo escrito em todos os meus livros ao menos uma vez, nos inéditos também: a música de Johann Sebastian Bach, em particular as suítes que compôs para violoncelo, é o mais próximo que conheço de Deus.

Durante as longas esperas hospitalares (em particular quando acompanhava a minha mãe aos tratamentos oncológicos), nas horas de estudo e de pressão no escritório, caminhando junto ao mar, durante as horas infindas de leitura e de escrita, sobretudo nas viagens de automóvel para casa, devo-lhe o único prazer de estar vivo e de poder espreitar os portões daquilo a que sentidamente chamo paz.

E não é pouco. Porque essa paz, esse prazer de sedosa carícia, essa reconciliação do corpo cansado (tantas vezes exausto, doente, prestes a ceder) com a alma (tantas vezes esfarrapada, confusa, desavinda consigo mesmo, como Sá de Miranda verbalizou no poema mais conhecido de toda a sua obra literária), essa paz, esse prazer, essa reconciliação não têm preço. Interpretadas por Yo-Yo Ma (o meu violoncelista predileto), ou por Rostropovitch, por Mischa Maisky, ou até por Pablo Casales, estas seis composições merecem-me o meu eterno obrigado.

Como em tantas coisas mais, como seria o mundo melhor se lhe procurássemos as criações mais geniais. E as agradecêssemos!

28.12.2024

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Logótipo Oficial 2024

Tocata e fuga

Foto de arquivo pessoal (2019)

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Daqui avista-se mar e rio.

O mar e as formações rochosas que descem do paredão até à linha dos seixos e à espuma. Se por elas saltitamos, vemos charcos salgados e pequenos tufos de funcho-do-mar (resistindo a tudo, semelhantes a borracha), e muitas vezes o pôr do sol. Em cima, no parquezinho onde o verde dos chorões se ilumina todo o ano, perfilam-se as autocaravanas dos turistas estrangeiros, automóveis com casais de meia idade em silêncio, às vezes um ou outro solitário cismando ou o cano de uma objetiva sobre um tripé. Em baixo, no abismo do grito das gaivotas, o eco da rebentação, o chiar da areia quando as ondas recuam, a linha da água encapelando-se, embatendo nos rochedos, esbranquiçada, mansa e violenta, até ao ponto de focagem em que o céu, as nuvens e o sol nela se fundem.

Mas também o rio e a cidade, também esta neblina que agora se ergue da praia e torna mais belos, quase feéricos, os pontos de luz ao longe, nos postes elétricos, nas janelas banhadas pela claridade azul dourada do fim de tarde, essa cortina de vapor que nos confunde as formas e as cores e se entranha na roupa. O rio que é decerto não mais do que um rodapé sobre o qual os nossos olhos distantes principiam a derivar da realidade, a fantasiar, a narrar o mesmo sonho de sempre («Um dia hei de aqui viver!»). A cidade que tão bem se conhece, mas que nos parece outra, tranquila assim, adormecida, silenciosa da Foz à Ribeira, da Ponte D. Luís ao farol e à pérgula, ao terminal de cruzeiros, à refinaria e às praias de Leça, ao fundo, além, na penumbra já.

Fujo.

Os meus sábados são (por esta altura da existência) lugares. Em cada um deles coso e descoso e volto a coser uma certa pele vadia que me acompanha desde criança. Gosto de me perder nas paisagens, de me esquecer nelas, de me redescobrir vivo no silêncio e nas coisas que toco com mãos livres e ávidas.

Como Bach, como Pessoa, como van Gogh ou Sorolla (que comparação esta!), componho, escrevo e retrato em simultâneo. E compondo, escrevendo, retratando (verdade ou fantasia, não importa), sinto-me aconchegado a outro eu que neste espaço e neste tempo deseja permanecer (um dia) para compor, escrever e retratar mais dentro, mais profundamente, mais em paz consigo mesmo, feliz de se juntar à maresia, ao areal, ao frio, às silhuetas que aqui (ao crepúsculo) se multiplicam e renascem e hão vir muitas vezes para matar a morte que lentamente os mata, como a mim a morte me mata sem pressa. É algo como uma concha mental e cardíaca. Um dia hei de aqui viver!

Fujo, portanto.

Os meus sábados servem para caminhar pela costa, para me deliciar com plantas e aves a que raros prestam atenção, para criar poemas que ninguém lê, para fotografar os avanços do oceano e da velhice na minha vida.

Por muito que me esforce, não consigo transferir para as palavras esse maravilhamento. Seria prudente, como Caeiro, ficar-me pelo sentir. O amor que me permite disparar o flash é à prova de grandes discursos. O mar e o rio, as ondas e a cidade, a neblina e o frio que se levantam deste sábado, neste miradouro, são talvez um prémio, a recompensa de dias difíceis que me pedem mais do que me posso dar.

Talvez seja algo que nos acontece a todos: perdemos aos poucos o controlo do quem somos e do que fazemos. Talvez nos sobre esta nesga de ilusão, este clarão que se acende quando o dia se apaga e o lusco-fusco transforma tudo numa enorme presença cósmica. Talvez este banco de pedra, onde me sento, seja aquele umbigo do mundo a que chamavam na Antiguidade «ônfalo» e punham dentro de uma gruta habitada por uma sibila.  Talvez, como eu, milhões de humanos precisem de fugir de si uma vez por semana para de novo se reconhecerem na mais ampla e formidável escuridão.

Daqui avista-se o mar e o rio. O que quer que eles signifiquem.

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Sempre gostei das suítes de Bach

Norbert Maier
Fotografia de Norbert Maier

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Venho passear neste parque quando os dias, como sacos de gelo, pesam estranhamente sobre o corpo e o paralisam. Venho para estar só. Para não ter de olhar para o visor do telemóvel. Para não precisar de ir ao Facebook. Venho para escutar os meus passos na terra molhada. Para ler devagar os meus pensamentos, com a precisão de uma quiromante a inspecionar-nos as linhas enviesadas da mão. Às vezes venho com o cão, mas muitas mais atrelado apenas à minha sombra. Ultimamente é de silêncio que preciso. E de verdade. Preciso de vir para poder continuar a acreditar nessa coisa ampla, desconcertante e bela que é a vida. 

O parque é enorme. O maior da cidade. As árvores são quase todas centenárias. O lago a meio, que no verão se enche de turistas e de gansos selvagens, é neste mês uma espécie de espelho petrificado. Nele, como na cabeça de um velho, há memórias prisioneiras. E eu sinto os vidros boiar, quebrados por funcionários diligentes, a quem cabe impedir que os peixes morram lá em baixo, asfixiados e sombrios. O parque é uma clareira brutal entre os arranha-céus. Uma das minhas personagens inquieta-se. 

‒ Devia haver gente a fazer o mesmo às pessoas. A impedir que tetos e paredes frias, transparentes e intransponíveis as afastem umas das outras. A impedir que uma solidão irremediável as faça morrer sozinhas. Não acha? 

Respondo que sim. Que devia haver funcionários capazes do milagre de impedir que tetos e paredes de gelo construam solidão. Capazes de tratar das pessoas como se trata dos peixes neste lago! Respondo que uma terrível maldição se abateu sobre a mais inteligente das formas animais, a ponto de a destruir por dentro. A ponto de lhe apodrecer o coração, que é o mais valioso que as pessoas têm dentro de si. Respondo que sim. Respondo que andamos todos a falar de afetos com ciência, mas sem afeto. Respondo que os parques são lugares onde talvez pudéssemos todos aprender um pouco com o silêncio. E com ele chegar à verdade. E com ela chegar à razão por que festejamos as datas e nos entregamos a uma espécie de euforia coletiva quando as datas chegam e nos comportamos como se soubéssemos o que as datas celebram, sem sermos capazes daquilo que celebramos! 

Sempre gostei das suítes de Bach. Sempre gostei de me entregar ao devaneio matemático dessa obra-prima do século XVIII. Sempre gostei da paz e do amor que nelas transborda do homem e o religa às estrelas e às coisas mínimas. E é por isso que hoje caminho pelo parque com os headphones postos; com o cachecol embrulhado no pescoço; com as personagens partilhando as minhas luvas de pele, olhando o mesmo que eu, questionando o que há muito se tornou em mim uma insaciável interrogativa. 

‒ O que significa acreditar? 

Por estes dias a cidade converteu-se, como seria de prever, numa insaciável feira de cifrões, luzes e reclames natalícios, vagas insinuações de hinos de amor e promessas de paz, alusões à fé e à esperança na humanidade, tudo muito entremeado por produtos de alta tecnologia, roupa interior e marcas de vinho. 

‒ O que significa acreditar? 

A cidade converteu-se em filas irascíveis nos mercados, insultos nos parques de estacionamento, azedas obrigações familiares que o cartão de crédito atenua. 

‒ O que significa acreditar? 

Como os antigos santos afasto-me, refugio-me nos possíveis lugares de eremitério. Por exemplo neste parque enevoado e vazio. Por exemplo na escrita. Por exemplo em cada um dos seis movimentos (prelúdio, allemande, courante, sarabanda, galanteria, giga) das seis maravilhosas suítes que Johann Sebastian Bach compôs para violoncelo. Com elas me aproximo dessas vozes que dentro de mim rodopiam e me interrogam, me fazem abrir portas e janelas sobre os domínios obscuros da razão. 

‒ O que significa acreditar? 

‒ Não sei, porra! 

Como posso saber o que significa acreditar quando me ensinaram o verbo, tanto a propósito do puto nascido numa qualquer gruta ancestral da Palestina, como dos cimos do poder, dinheiro, conforto, supremacia, a que a humanidade se propôs desde sempre? 

‒ Não sei, porra! 

Venho passear neste parque quando os dias, como insuportáveis alucinações, me desgostam e me tornam vítima da pele que herdei. Quando, como hoje, desacredito profundamente na humanidade, na hipócrita humanidade que me ensinou a hipocrisia! Venho para estar só. Para não ter de olhar para o visor do telemóvel. Para não precisar de ir ao Facebook. Venho para dizer Não sei, porra!, para escutar com emoção, com uma profunda paz interior as suítes de Bach, para escutar os meus passos na terra molhada, para compreender o peso deixado pelas minhas botas no tempo e no espaço!

‒ Não sei, porra!

Não sei o que significa acreditar. Se ao menos pudesse a humanidade valer-se a si mesma, cuidar dos seus próprios males, cumprir metade dos seus sonhos… Se ao menos meia humanidade gostasse das coisas que não têm preço, que não se compram, que não se oferecem embrulhadas… 

Venho para estar só. Venho passear neste parque quando os dias, como sacos de gelo, pesam estranhamente sobre o corpo e o paralisam. Ultimamente é de silêncio que preciso. E de verdade. Não sei o que significa acreditar. Sei tão-só que nalguma parte do universo, nalguma galáxia ou hipergaláxia, nalguma nesga física ou metafísica do espaço-tempo, algo ou alguém terá resposta para essa pincelada de ilusão que nos submerge, algo ou alguém capaz de abrir brechas na redoma de gelo que, como aos peixes de Hyde Park, nos ameaça asfixiar nesta manhã fria de dezembro.

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