A minha avó era enfermeira, chamava-se Mabília Roriz, disse o fulano lingrinhas. Cuidava de hortênsias e fazia abortos nas traseiras de sua casa, onde entravam as moças, mas nunca a polícia. Foi a primeira mulher a fumar nos cafés da vila, onde a vinham escutar os bufos e os bons.
Percebia-se nestas palavras e noutras um enorme orgulho filial.
A minha avó chamava-se Amélia. Teve dez filhos, de que vingaram sete. Criou-os como pôde, sem mais dados relevantes que isto: manejava teares mecânicos com a mesma destreza com que punha uma enxada na terra. Era desbocada, honesta e amiga dos pobres.
Duas coisas distinguem a vida de um homem da vida de outro homem: a capacidade de suportar a dor e a capacidade de produzir prazer. Uma terceira coisa o distingue depois da morte: a exemplaridade da sua memória. Tenho, a esse respeito, tido grandes mestres. Mas tu foste o maior!
Porque nesta época em que tudo se confunde, ruído e realidade, poder e importância, espetáculo e reconhecimento, ouro e pechisbeque, nesta época em que se não distingue autenticidade e clichés, nobreza e velhacaria, nesta época vil e mecânica, nesta época automática e plástica, insossa e cega, nesta época de famigerados da fama, ó Régio!, de louvadores do fácil, nesta época de nadadores em mares de contentamento, ó grande Camões!, nesta época provavelmente não menos nem mais facínora e execrável do que todas as outras, tu passeias-te no meu pensamento muitas vezes, nítido ainda, inteiro como dantes, muitas vezes, subindo com as neblinas a várzea silenciosa, lento, firme, feliz, com ou sem a espingarda ao ombro, com ou sem coelhos à ilharga, feliz, firme, lento, para me ensinar.
Um homem não vale pelo que tem, nem sequer pelo que é. Mas pelo que fará ter aos outros, pelo que for capaz de deixar de seu, não a uma, mas a dez gerações!
E como eu te escutava, meu velho amado! Os nossos colóquios eram na cozinha, junto à lareira grande de pedra, onde o fumeiro e os grandes potes de ferro enegreciam. Onde a ciência intemporal dos teus provérbios ardia. Onde me contavas as tuas histórias de licantropos, homens voadores, sereias e mouras encantadas. E como eu te escutava, meu velho amado! Como ardem ainda as manhãs nevoentas, em que desjejuávamos os dois, rapando com um pedaço de pão o prato dos ovos estrelados! Como recordo esses ovos de gema sumarenta, esse pão de sêmola, junto dessa lareira grande nessa cozinha escura e fumada! Como estremeço ainda à tua voz, às tuas palavras despidas de vaidade.
Quando chegares à minha idade, meu filho, vais perceber que o céu é para quem o ganha e este mundo para quem mais apanha… Bem prega Frei Tomás, faz como ele diz e não como ele faz! É tão certo isto, como dois e dois serem quatro, meu filho!…
E tu limpavas os beiços a um pedaço de pão. Limpavas o catarro com um gole de vinho. Como eu amava aquela história do homem que queria voar, das imprudentes asas de cera, do sol impiedoso, da queda no oceano. Tudo narrado ao pormenor, sem pressa, com a paixão de quem semeia um tempo por vir… Deves ter-me contado essa história umas vinte mil vezes. Na cama, onde te admirava as ceroulas de flanela e a cicatriz no abdómen, no quintal, enquanto semeavas favas e ervilhas; no lagar, onde depois das vindimas depositavas caruma e palha seca, onde nasciam às dezenas, pintos magnificamente enxutos e amarelos. Porque me contavas as histórias sem querer ensinar.
Porque os vícios se aprendem depressa e os sublimes prazeres devagar. É preciso amar a vida para se compreender a vida, meu filho!
Julgo que uma ou outra vez, empolgado pelas lições, quis fumar também. O teu maço de doze Kentucky era uma tentação. Mas tu somavas em voz alta os cigarros que ficavam a guardar-te a casa enquanto ias dormir a sesta. Limitava-me a colocá-los na boca, a imitar-te de longe, a fingir-me caçador, lento, firme, feliz.
Porque o exemplo e a memória que nos fica de um homem é a terceira e mais importante coisa que distingue um homem de outro homem, logo depois da sua capacidade de suportar a dor e da qualidade dos seus prazeres.
Julgo que arrostaste com estoicismo o cancro. Eras um velho já tão velho que o meu amor por ti não cessava de crescer. E, no entanto, não compreendi jamais a tua derradeira cama, os cigarros abandonados, a espingarda com teias de aranha, os ervilhais deixados ao deus-dará, os ovos por recolher e pintos nascituros nos remansos da cave, a lareira sem lume, as histórias por contar, as manhãs sem ti…
Penso em ti muitas vezes, avô. Porque nesta época em que tudo se parece estranho e estéril, feio e enfermo, esquálido e esquecido, doloroso e dorido, demasiado e diminuído, sinto a falta do maravilhamento calado dos teus olhos, do catarro sombrio que enchia a alvenaria da casa, do desembaraço e desembaciamento e sonoridade limpa de cada um dos teus gestos, da luz das tuas palavras, da certeza que tinhas então sobre mim.
Um homem vale pelo que tem cá dentro, meu filho! Lembra-te disso! Um homem vale pelo tamanho do seu coração! Homens graúdos têm o coração do tamanho de uma melancia, ouviste?
E eu a querer um coração grande, com medo de que pesasse tanto que me afundasse. E eu a imitar-te em tudo, meu velho. E eu a não perceber aquela gente que me dizia que tinhas uma doença, que tinhas morrido, que tinhas partido, que não virias contar-me mais histórias de lobisomens e ícaros, sereias e mouras, anões, sapateiros e hortelões, raposas matreiras e criados do diabo…
Não te perdoei a primeira, nem todas as outras manhãs em que não regressaste das neblinas sobre a várzea silenciosa. Julgo que uma ou outra vez, esquecido das lições, quis fumar também. O maço em cima da escrivaninha. O isqueiro em cima do maço. Os dedos em cima do isqueiro. Penso em ti muitas vezes, avô. Em ti, corpo encarquilhado, cansado de lutar, escavado pelo mal. Porque uma terceira coisa distingue um homem depois da morte: a exemplaridade da sua memória. Em ti, que um dia não regressaste. Porque duas coisas distinguem a vida de um homem da vida de outro homem, não é assim? Em ti. Julgo que uma ou outra vez quis fumar também. A capacidade de suportar a dor e a capacidade de produzir prazer, não é verdade? Como te escutava, meu velho amado!
Não deixei que o vício me levasse a palma, avô. Porque os vícios se aprendem depressa e os sublimes prazeres devagar. Não é assim?
Princípios de setembro ao cair da tarde: o outono enviou já os seus emissários. Para lá das portas das casas de pedra, desde o fundo dos lagares, emerge e vibra como uma corda de guitarra o aroma intenso do mosto. Embrulhamo-nos nele como num antigo provérbio: por onde os nossos passos vão, ele acompanha-nos num crescer de sombra. A inquietação voa ao redor da nossa boca. Depois, ultrapassadas as últimas casas, embrenhamo-nos num pequeno bosque. Como numa catedral, as copas das árvores erguem arcos quebrados e perfeitos. Conheço o nome de cada uma delas, o seu silêncio, o seu perfume, a voz que nelas respira profundamente desde as raízes. É-nos dado caminhar por uma vereda estreita, ao longo de um carreiro húmido repleto de folhas, onde vigorosas lesmas e insetos esquivos nos vigiam de passagem: sulcos e vergônteas subterrâneas exigem a nossa atenção; os próprios duendes nelas tropeçariam, se acaso aqui vivessem ainda. No alto dalguma faia, dalgum ulmeiro, protegidas pelo abraço das asas e pela folhagem espessa, acordam criaturas notívagas cujos pios em breve cairão sobre o firmamento iguais a bátegas de chuva. As névoas e a penumbra tornam os espaços mais breves e simultaneamente mais longos, dividem-nos em parcelas isoladas umas das outras e todas numa bolha de paz. O homem que se arrisque à solidão chega aqui tão perto de si próprio como dois seres que por fim se reencontram numa encruzilhada. Sempre imaginei que assim vagueasse, descalça e andrajosa, através do limbo, através da memória, através da terra, a minha bisavó tresloucada. No coração do labirinto é a própria alma a girar sem parar, frenética e viva como um buraco negro no meio de espiral de estrelas. «Quem sou?» pergunta a consciência rodopiante. Estamos agora noutra dimensão, noutro lugar, noutra era da nossa vida. Movemo-nos em silêncio pela casa às escuras. Os nossos passos são cautelosos e atentos, como se caminhássemos ao longo de uma floresta, seguindo o flanco musgoso de um antigo muro de pedras soltas. A algum lado nos levará esta viagem sem termo nem princípio ‒ cada pensamento segue um outro e todos se encaminham para uma clareira onde a luz os reconhece. A cada instante precisamos de vencer a resistência da nossa condição terrena: os pés enterram-se em pantanosas raízes familiares, tropeçam na memória, atormentam-se com o peso que neles se calça dos antepassados queridos e admoestadores: «A velhice bater-vos-á um dia à porta!». A voz que nos fala, não sabemos se vinda de fora, se uma erva nascendo-nos nas entranhas, abre passagem pela fissura das paredes, perfura, assemelha-se a um vapor tépido, mistura poderosa de remorso e de saudade. O tempo! Tão próximos deste abismo, somos criaturas excecionais, volumosas, puras como uma lágrima. Em breve estaremos na infância. A floresta encaminhou-nos para algo tão longínquo. Já os olhos se desacostumaram de olhar e veem apenas. A velhice bater-nos-á um dia à porta. Estamos nas calendas de setembro. A noite assenta mais cedo. O outono enviou os seus emissários.