SONHOS

Foto: Jess Foami

Durante a noite sonhou outra vez com pessoas do seu passado. Primeiro com ex-colegas do trabalho, de quem se despedira havia anos. Depois com rostos antigos (que via agora, uma ou duas vezes por anos, em círculos ovais nas lápides musgosas do cemitério da aldeia), rostos que readquiriam a sua graciosidade e lhe faziam perguntas, rostos que tinham sido importantes e que ela quase por completo esquecera.

Acordou imersa numa impressão de tristeza infinita. Esforçou-se por recordar pormenores dos sonhos sucessivos que tivera, escavando dentro de si como se escava um sítio arqueológico. Vinham-lhe um ou outro detalhes, mas escapava-lhe a narrativa onírica, fugia-lhe a lógica das imagens e dos sons (até dos cheiros) que sabia terem-lhe passado pela cabeça. Sentia-se mole, prostrada, com uma nota de amargor na boca. Acontecia-lhe cada vez mais amiúde. Rosana reagia de modo imprevisível. Tomava um duche de água fria, ligava o aparelho de música, entregava-se ao sol com uma chávena de café nas mãos, saía para a rua com vontade de implicar com quantos transeuntes se cruzasse, lia a Bíblia, colocava os óculos escuros e tampões nos ouvidos e seguia para o trabalho no maior mutismo. 

Viver sobre sonhos, tê-los guardados dentro de si, no âmago imperscrutável da sua própria alma, sonhos destes, sem compreender bem porquê devastadores, sabendo que regressariam, que a dominariam, que a humilhariam, era igual a transportar barris de petróleo, era uma bomba-relógio. Rosana odiava sonhar, odiava nada poder fazer contra estes fantasmas que se acovilhavam na sua própria casa, que a assaltavam sem autorização e, pior ainda, com o seu próprio e vil consentimento.

Ocorreu-lhe, então, quase por acaso, de modo ténue, vaporoso, que num dos sonhos da última noite vira a avó a chorar. Era muito pequena, segurava ainda uma fralda de flanela, percebia nos lábios o sabor de uma chupeta rançosa. Estava na varanda da casa velha de granito, protegida por um gradeamento simples (duas barras de ferro carcomido). Sozinha, de pé, espreitava o quintal e o quinteiro em baixo. A avó no campo, de enxada em punho, erguia torvelinhos de pó. 

Rosana consegui paulatinamente desvendar o nevoeiro ao redor deste estranho cenário. A avó, dobrada sobre a terra, extraía batatas. A lâmina da enxada cortava um pouco adiante de cada tufo de folhas. Depois alavancava o torrão cortado, puxava-o para si e do emaranhado de raízes e terra sacudia os preciosos tubérculos pálidos e avermelhados que nessa manhã quente (provavelmente de julho) a prendia àquela parcela. A avó tinha uma cinta apertada, um pano escarlate segurando-lhe o ventre. Bem via a sua gravidez. 

Rosana surpreendeu-se com esta descoberta. Começava a duvidar que tivesse realmente sonhado com a velha avó grávida. No trajeto diário para o local do seu emprego, ou no regresso a casa, costumava rememorar partes da sua infância. Não era raro fixar-se em lugares perdidos, como um sótão onde brincara, uma cave, um quarto onde partículas de pó bailavam sob o efeito oblíquo da luz, uma mina, um caminho entre giestais e matos floridos, a sala de aulas da escola primária, o confessionário e o púlpito da igreja românica, a corte dos animais. Também lhe acorriam feições apagadas, risos, presilhas em volta de certos olhos, mulheres de lenço preto na cabeça, timbres de voz. Era como um imenso bastidor de teatro, um armazém de máscaras e de tipos humanos. Mas perturbava-a muitíssimo que esse legado misturasse factos, que a confundisse, que lhe trouxesse memórias de uma maneira avulsa e revolta. Como podia ele ter sonhado com a avó grávida? E porque chorava a avó?

Lentamente desceu a si mesma. Deixou que o esquecimento retornasse com o seu véu apaziguador. Era preciso estar viva e pronta para o seu dia de trabalho.

Haveria de sonhar dias depois com a mesma mulher, erguendo e baixado a enxada, guardando no seu ventre o fruto bendito de que Rosana não podia lembrar-se. Enquanto isso retirava da terra seca batatas grandes como punhos. Não saberia dizer se o rosto era o da avó, se o da sua mãe, se era o seu próprio rosto. Sentia nas mãos, ao mesmo tempo, o peso do cabo de madeira e o peso da fralda puída, pressentia no fundo do útero o aperto e a dor de um ser que era ela mesma e era outra pessoa. Nesse sonho alguém lhe dizia nas costas (de modo sonoro, mas ininteligível) «És bem como a tua avó, que Deus a tenha!».  Não sabia porque chorava, mas sentia sempre vontade de chorar, porque era uma menina só, numa varanda mal protegida, porque era velha sozinha, dobrada no campo a trabalhar.

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DO VELHO HÁBITO DE CUIDAR DOS VELHOS

Anna Kudriavtseva
Foto: Anna Kudriavtseva

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Vejo a minha mãe a cuidar da minha avó, a colher rapando o fundo do prato, enquanto quieta, como uma garota velha, a minha avó se entregava a esse cuidado, frágil, absorta em nebulosos pensamentos indecifráveis, consoladoramente. O último dos seus vícios: um copo de vinho às refeições. Com a bênção de São Gonçalo de Amarante, cujo báculo estampado no copo alto de asa, parecia tocá-la amigavelmente. Era, na verdade, uma minicaneca. De estimação. Como todos os hábitos e objetos do final da sua vida.

Penso muitas vezes na minha avó. Na sua mudez. Na cegueira. Na paralisia. Penso em como movimentos tão simples, como o de trocar de posição na cama, ou de levantar-se a meio da noite para ir à casa de banho, ou de acender o candeeiro, ou de beber um gole de água lhe eram inacessíveis. Penso no abismo do silêncio, multiplicado pela falta de voz, de imagens, de movimentos. Penso nos seus próprios pensamentos. Em como terá pedido ao seu Deus (em noites furiosamente insones) que a levasse, que a libertasse dessa prisão do corpo e da mente, que a deixasse fora do alcance das palavras que, dentro da sua cabeça, chocalhariam sem piedade, vergastando-a.

Quando algum de nós se aproximava da sua cama (que, com o tempo, se tornou numa espécie de lugar assustador, onde um corpo morria devagar e, vivo ainda, nos ensinava os tortuosos caminhos para a morte) sentia o arrepio que se tem diante de um santo. Puxávamos-lhe o cobertor. Dizíamos qualquer coisa. Despedíamo-nos. E a minha avó emitia meia dúzia de sons guturais, decerto em agradecimento.

O quarto adquirira, igualmente, um cheiro característico. O da caixa dos remédios. O da lixívia. O do sabonete Patti. O do detergente da roupa. O da velha manta de alpaca. O do cartucho dos doces ‒ traziam-lhe sempre um cartucho de doces aos domingos ‒ e o do pão de ló. O das bananas maduras. O da madeira da mobília. O da velhice. Tudo junto. Como uma orquestra de odores desafinada.

As visitas rarearam. Deixámos de escutar-lhe os passos no corredor. Repetir as mesmas histórias, vezes sem conta, com a mão da minha avó poisada na sua mão deixou se ser possível, porque os poucos amigos da minha avó foram desaparecendo. A solidão nos derradeiros meses foi apenas contrariada pelos magníficos esforços da minha mãe e dos outros filhos, que a lavavam, vestiam e alimentavam, entre discursos e censuras começados sempre por um «Ó minha mãe…». Penso muitas vezes nessa solidão. Porque a receio mais do que tudo na vida. Porque essa solidão se transformou na minha definição de inferno. Imerecido, profunda e totalmente, no caso da minha avó…

Quando morreu, ninguém se espantou. A tristeza foi-se entranhando em nós… Não fui capaz de chorar, exceto muitos dias depois, quando na imensidão do quarto vazio compreendi que o lugar de cada pessoa é insubstituível e que a morte (pese os labirintos para onde nos foge a memória às vezes) tem em si, no seu escuro alçapão, um ser definitivo e terrível. «Não, nada será como dantes!»

Revejo os desvelos, as arrelias, os ditos por dizer, a segurança e o conforto desse último reduto, que (como num casulo) embrulharam a minha avó Amélia no fim. Aprendi tanto com a sua decrepitude! Jamais se pôs sequer a hipótese de um lar de terceira idade. Jamais se equacionou outra proteção que não a da casa. Os tempos eram, ainda, os do alto dever de «proteger os nossos velhos». Os ralhos eram manifestações de amor zangado e não de profissionalismo mascarado de amor. As chagas curavam-se com mercurocromo e tintura de iodo. Acordava-se a meio da noite para, como aos recém-nascidos, ser trocada a fralda. Se havia lágrimas no canto do olho da avó, a voz da minha mãe crescia no torpor da casa, «Ó minha mãe, você que tem?», e uma sucessão de chamadas telefónicas (para os outros filhos, para a médica, para o hospital) punha-nos a todos em sentido. Ganhar tempo contra o fim inevitável parecia, mais do que uma obrigação, uma obstinação.

Leio, agora, que o Governo quer punir os maus-tratos contra os idosos. Como se a lei pudesse pela força suprir o que o amor perdeu em força… Como se uma sociedade ‒ como esta, como a nossa! ‒ pudesse, à conta de normativos legais, reaprender a cuidar dos mais velhos. Como se uma cegueira (uma amnésia quanto ao futuro) a tivesse desabituado à ideia de que envelhecer envelheceremos todos e que, assim como fizermos, assim nos farão.

E, por isso, penso. Penso muitas vezes, aproveitando o vago marulhar das árvores nestes dias outoniços de agosto. Como se ainda fosse a tempo de alguma coisa. Penso na minha avó. Penso na minha mãe, metendo-lhe a comida na boca. «Ó minha mãe, você é pior do que uma criança…». Penso nos resmungos da minha avó. Nos sons guturais. No báculo de São Gonçalo que usaria, se pudesse, para dar à minha progenitora um enxerto. E o tempo passou. E é como se não tivesse passado…