Vim até cá acima e fiquei

montanha, solidão
Fotografia de Jeremy Sanders

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Vim até cá acima e fiquei.

De quando em vez venho até cá acima e fico. Fico em silêncio, a escutar muito tempo as coisas que só se escutam em silêncio, sentado num lugar pertíssimo de mim, num sítio onde as palavras me parecem aos poucos pequenas assombrações, quero dizer pequenas cabeças enevoadas, minúsculos vultos sem sentido, fósforos frios que deixei de saber deflagrar.

Fico e às tantas fecho os olhos. Às tantas as coisas fluem, as coisas vêm-me involuntariamente à boca, as coisas passam-me diante as retinas, atiram-se-me à nuca, coisas como os murmúrios da avó Amélia, coisas como o cheiro triste da murta nos dias que se seguem ao Natal, coisas como a castidade absoluta das suítes de Bach, coisas como a maciez dos seixos, como a cor fulminante do papel debaixo dos versos de Camões.

Vir e ficar é doloroso.

As memórias conhecem caminhos, encontram-me, convulsionam num modo de regurgitação. Estou em silêncio e sinto gente desesperada a querer falar-me, sinto pedaços avulsos de mim a precisar de paz, a pedir que os apague ou lhes dê uma morada acalentadora, que os compreenda ou que os exorcize em definitivo.

Vem-se cá acima e fica-se.

Fica-se a meditar na quantidade de fracassos. No primeiro romance por escrever. Na profissão mal encontrada. No amor que se abandonou em parte incerta. Fica-se a matutar na mole de sonhos interrompidos. No doutoramento por fazer. Nos filhos que não vieram. Nas viagens ao Japão e à Antártida. Fica-se a cismar na multidão de rostos que foi preciso conhecer e esquecer ao longo dos anos. No peso morto que se deixou atrelar aos tendões e não é a nossa pessoa e não é a pessoa dos outros e não, na verdade, a pessoa de ninguém. Fica-se a cair para dentro, como uma pedra num poço.

A avó Amélia era um colosso sem que o tenha sabido. Foi-o até ao fim, quando muda, paralítica, cega, se queixava em gorgolejos, em sibilâncias, em gestos que nos diziam que queria comunicar e não podia. Só os pensamentos a mantinham viva, suponho. Só teimando com a comida ralada, suponho. Só apertando-lhe as mãos e afagando-lhas e beijando-as. Só assim a mantínhamos no lado de cá da solidão. Só pronunciando devagar pequenas frases que o seu ouvido, suponho, aceitava ainda.

Venho cá acima e fico defronte a isto.

Diante desta paisagem de granitos e ervas ressequidas pela geada. Fico sem um pio, a escutar o vento, a deixar que o caracol dos anos que me leve e me traga de volta, sem saber ou poder replicar ao parto doloroso das imagens que se soltam deste movimento em espiral de ir e vir.

Venho e fico.

Fico, suponho, à espera que alguém se dê conta de como estou a ficar cego, paralisado, emudecido. À espera que me segurem ambas as mãos e me não deixem partir para o lado de lá. O lado de lá dá-me arrepios. Tenho pavor ao outro lado da solidão. Não sei se a avó Amélia pensava muito nisso. Nos fracassos e sonhos por acabar, não creio. A avó era um colosso. Suponho que os colossos nunca morrem inteiramente sozinhos e a avó era, sem o saber, um colosso. Suponho que só os fracos vivem atormentados por esse medo. O medo de levarem uma vida inteiramente desperdiçada. O pavor de saberem que nunca serão grandes, ou lembrados, ou apertados na mão.

Vir e ficar é doloroso.

As memórias conhecem atalhos, encontram-me, despoletam pesadelos. Ninguém imagina com que remorso. Com que furor. Com que que ódio.

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Logótipo Oficial 2024

Do velho hábito de cuidar dos velhos

Anna Kudriavtseva
Fotografia de Anna Kudriavtseva

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Vejo a minha mãe a cuidar da minha avó, a colher rapando o fundo do prato, enquanto quieta, como uma garota velha, a minha avó se entregava a esse cuidado, frágil, absorta em nebulosos pensamentos indecifráveis, consoladoramente. O último dos seus vícios: um copo de vinho às refeições. Com a bênção de São Gonçalo de Amarante, cujo báculo estampado no copo alto de asa, parecia tocá-la amigavelmente. Era, na verdade, uma minicaneca. De estimação. Como todos os hábitos e objetos do final da sua vida.

Penso muitas vezes na minha avó. Na sua mudez. Na cegueira. Na paralisia. Penso em como movimentos tão simples, como o de trocar de posição na cama, ou de levantar-se a meio da noite para ir à casa de banho, ou de acender o candeeiro, ou de beber um gole de água lhe eram inacessíveis. Penso no abismo do silêncio, multiplicado pela falta de voz, de imagens, de movimentos. Penso nos seus próprios pensamentos. Em como terá pedido ao seu Deus (em noites furiosamente insones) que a levasse, que a libertasse dessa prisão do corpo e da mente, que a deixasse fora do alcance das palavras que, dentro da sua cabeça, chocalhariam sem piedade, vergastando-a.

Quando algum de nós se aproximava da sua cama (que, com o tempo, se tornou numa espécie de lugar assustador, onde um corpo morria devagar e, vivo ainda, nos ensinava os tortuosos caminhos para a morte) sentia o arrepio que se tem diante de um santo. Puxávamos-lhe o cobertor. Dizíamos qualquer coisa. Despedíamo-nos. E a minha avó emitia meia dúzia de sons guturais, decerto em agradecimento.

O quarto adquirira, igualmente, um cheiro característico. O da caixa dos remédios. O da lixívia. O do sabonete Patti. O do detergente da roupa. O da velha manta de alpaca. O do cartucho dos doces ‒ traziam-lhe sempre um cartucho de doces aos domingos ‒ e o do pão de ló. O das bananas maduras. O da madeira da mobília. O da velhice. Tudo junto. Como uma orquestra de odores desafinada.

As visitas rarearam. Deixámos de escutar-lhe os passos no corredor. Repetir as mesmas histórias, vezes sem conta, com a mão da minha avó poisada na sua mão deixou se ser possível, porque os poucos amigos da minha avó foram desaparecendo. A solidão nos derradeiros meses foi apenas contrariada pelos magníficos esforços da minha mãe e dos outros filhos, que a lavavam, vestiam e alimentavam, entre discursos e censuras começados sempre por um «Ó minha mãe…». Penso muitas vezes nessa solidão. Porque a receio mais do que tudo na vida. Porque essa solidão se transformou na minha definição de inferno. Imerecido, profunda e totalmente, no caso da minha avó…

Quando morreu, ninguém se espantou. A tristeza foi-se entranhando em nós… Não fui capaz de chorar, exceto muitos dias depois, quando na imensidão do quarto vazio compreendi que o lugar de cada pessoa é insubstituível e que a morte (pese os labirintos para onde nos foge a memória às vezes) tem em si, no seu escuro alçapão, um ser definitivo e terrível. «Não, nada será como dantes!»

Revejo os desvelos, as arrelias, os ditos por dizer, a segurança e o conforto desse último reduto, que (como num casulo) embrulharam a minha avó Amélia no fim. Aprendi tanto com a sua decrepitude! Jamais se pôs sequer a hipótese de um lar de terceira idade. Jamais se equacionou outra proteção que não a da casa. Os tempos eram, ainda, os do alto dever de «proteger os nossos velhos». Os ralhos eram manifestações de amor zangado e não de profissionalismo mascarado de amor. As chagas curavam-se com mercurocromo e tintura de iodo. Acordava-se a meio da noite para, como aos recém-nascidos, ser trocada a fralda. Se havia lágrimas no canto do olho da avó, a voz da minha mãe crescia no torpor da casa, «Ó minha mãe, você que tem?», e uma sucessão de chamadas telefónicas (para os outros filhos, para a médica, para o hospital) punha-nos a todos em sentido. Ganhar tempo contra o fim inevitável parecia, mais do que uma obrigação, uma obstinação.

Leio, agora, que o Governo quer punir os maus-tratos contra os idosos. Como se a lei pudesse pela força suprir o que o amor perdeu em força… Como se uma sociedade ‒ como esta, como a nossa! ‒ pudesse, à conta de normativos legais, reaprender a cuidar dos mais velhos. Como se uma cegueira (uma amnésia quanto ao futuro) a tivesse desabituado à ideia de que envelhecer envelheceremos todos e que, assim como fizermos, assim nos farão.

E, por isso, penso. Penso muitas vezes, aproveitando o vago marulhar das árvores nestes dias outoniços de agosto. Como se ainda fosse a tempo de alguma coisa. Penso na minha avó. Penso na minha mãe, metendo-lhe a comida na boca. «Ó minha mãe, você é pior do que uma criança…». Penso nos resmungos da minha avó. Nos sons guturais. No báculo de São Gonçalo que usaria, se pudesse, para dar à minha progenitora um enxerto. E o tempo passou. E é como se não tivesse passado…

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