Mais perto

Omar Alnahi
Fotografia de Omar Alnahi

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Procura-se, procura-se melhor, procura-se com afinco e é então que surge o orifício, melhor o alçapão, melhor ainda o portal para esse tempo julgado desprendido de nós, a vaguear no vazio – como uma jangada sem gente, quer dizer com gente, gente morta, gente que nos visita em sonhos e que nós visitamos no pensamento. Procura-se e às vezes descobre-se um modo de descermos ao mais fundo da existência. Principia nesse instante a poderosa viagem a que um caderno aberto e uma lapiseira afiada aspiram.

Por exemplo, estes dias em que andamos de pijama pela casa, pelo pátio, pelo meio dos livros e ocorre-nos de repente que os nossos gestos são os gestos dos nossos velhos – escrevo velhos com amor, com devoção. Por exemplo, esta forma de acariciar as folhas carnudas da alfádega, de roubar à pele da mão o hausto por sua vez por ela furtada aos folículos dos manjericos, à citronela, ao verde luminoso dos fiolhais. Damos por nós a tombar num mergulho de décadas até a um quintal antigo, até a um avô que procedia exatamente do mesmo modo nas manhãs solares de junho.

Estamos a vê-lo, as repas do cabelo e a barba rala – do mesmo tom tisnado – por fazer, o rosto macilento, o colete de lã azul, as calças enfunadas por dentro das galochas, a enxada ao ombro. Vemo-lo a fazer a vistoria diária aos regos de milho, ao talhão das batatas, à inflorescência das vides. Amiúde o olhar perde-se-lhe mais rúbido, mais aquoso, mais longe. Vemo-lo a palpar o tronco das árvores, a medir o tamanho dos caules das cebolas, a fazer cócegas aos tufos de salsa, a dizer de si para si coisas que apenas se percebem ditas pelo movimento aguçado do queixo e da boca infeliz.

Estamos a vê-lo. Funga como nós fungamos. Leva a palma ao cabelo como nós levamos. A feição de tirar da ameixoeira o fruto amadurecido e rescendente e de o passar pela roupa sem outro modo de o lavar é a nossa feição de o tirar da fruteira e de o levar à boca. Estamos a vê-lo. O seu sorriso breve e tímido é o nosso sorriso. Sorri para os pequenos bichos que cacarejam e chafurdam na lama. Cada qual com o seu nome próprio, porque esse avô gostava como Adão de nomear os animais. Estamos a vê-lo. Com um lápis rombudo anota na face da madeira números e garatujas. Faz a lâmina da serra deslizar sobre a carne das tábuas e constrói coisas, guarda as aparas, aproveita-se do serrim. Tudo é bom e útil e dádiva que se não deve menosprezar. Estamos a vê-lo e, vendo-o, vemo-nos na grande proximidade que apenas a distância soube mostrar.

Tropeçar na memória é um risco que corremos. É uma espécie de vágado. Pomo-nos a deambular em silêncio pelos corredores e precisamos de uma voz apontada às folhas lisas do caderno. Sentimos a orfandade dilatar-se dentro de nós como um tumor. O tempo, que desnovelamos pouco a pouco com palavras humildes e tersas, magoa.

Esses velhos pareciam criaturas eternas velando por nós, aconchegando-nos no fogo particular das suas palavras, e eis que de repente passaram trinta, quarenta anos, e nós somos o lugar difuso que eles ocuparam. Repetimos-lhes os provérbios, o gosto pela broa, a sisudez endurecida pelo orgulho, a repugnância pelos fracos, traidores e hipócritas deste mundo. Somos hoje os velhos do amanhã e damo-nos conta de que pequenos seres ao nosso redor nos espiam e nos imitam, atentos aos mínimos movimentos da nossa solidão.

Procura-se, procura-se bem, procura-se no fundo das gavetas, procura-se por detrás das sombras, por dentro da ofuscação do aqui e do agora e é então que surge essa frincha, essa abertura, essa ruína antecipada de nós mesmos zarpando em direção ao ponto mais vago do horizonte. Adestramo-nos na morte. Estamos mais perto, cada vez mais perto, pertíssimo talvez. Desconfiamos que alguém possa à retaguarda acompanhar-nos nessa viagem – açodada agora – de palavra para palavra, a mais veemente a que um caderno aberto e uma lapiseira afiada podem aspirar.

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Logótipo Oficial 2024

O Costa

Fotografia de Ludwig Riml
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«Comer onde comem poucos, trabalhar onde trabalham muitos» repetia o Costa, enquanto irritado com a garlopa ia desbastando e alisando o pau do eucalipto que trouxera do monte. Tinha quarenta e três anos. O cabelo e a barba haviam tomado a feição rala e grisalha de um velho, os dentes escasseavam, o lombo curvava, os olhos e as mãos mostravam-se nervosos e sem encanto. Aos pés da burra as aparas enroladas de madeira empilhavam-se.

Setembro principiava, precisava-se de uma escada nova. Mas ele, circunstância imperdoável, não podia contar senão consigo mesmo. Enfurecia-o o facto de os filhos irem procurar as moças em vez de lhe deitarem uma mão. Noutros tempos teria funcionado o cinto, mas agora não lhe restava outro remédio senão murmurar. A mulher de quando em vez mirava-o, amaldiçoando aquele azedume, aquela expressão vingativa, aquele zelo hipócrita que a meio da tarde haveria de curar na taberna, com dois ou três quartilhos de vinho entre meia dúzia de partidas de sueca.

O Costa escolhera e serrara o tronco, agora alisava-o com a garlopa e com o rebote, para em seguida o medir cuidadosamente e marcar com giz. Depois, sempre com o cigarro no canto da boca e praguejando alto, chamou pela mulher e por uma das raparigas, para que lhe segurassem as pontas, enquanto ele fizesse rodar o trado perfurando a madeira vinte e cinco vezes, no lugar onde deveriam posteriormente ser apertados os vinte e cinco degraus.

«Bem diz Caifás: manda e faz e servido serás!» repetia, sempre a meia voz, sempre de olhos postos no tronco, para que ali se soubesse que a culpa daquela desfeita dos filhos varões se devia unicamente a ela e não podia ele calar-se ou perdoar, visto que se era certo não dever trabalhar-se no dia de Nosso Senhor (essa era outra das máximas do Costa), ele o fazia-o apenas nesse domingo por incúria dos filhos, que daquele modo e tão perto já das vindimas o despreveniram.

– Moça, segura bem. Não o deixes mexer!

A cada fala mais alta e mais severa dele, mais fundo se desenhava nos olhos da mulher a sanha. Bem sabia ela como gostaria aquele velho de ter aproveitado melhor o dia de descanso para dividir na taberna infusas e bazófias, provavelmente uma meretriz de ocasião com os parceiros de jogatina. Mas estava ali, preso, debaixo da ramada, a construir um escadote de vinte e cinco passadas, como competia ao homem da casa e a um pai de família honrada.

Feitos os furos, o Costa teria de passar o fio do serrote de alto a baixo, dividindo o tronco nas duas pernas que em breve seriam içadas e usadas. Tinha o talento de todos os camponeses, de trabalhar simultânea e indistintamente nos muitos ofícios que a terra impunha, metendo com o mesmo desenrasque e o mesmo denodo as mãos à farinha e ao estrume, tanto fazendo de alvenel se fosse preciso reconstruir um muro, como de tanoeiro quando se precisava de construir um pipo. Tudo o Costa sabia fazer. Até bastardos. Inimigos até.

A mulher passava agora com o balde da lavadura. Ia cevar os bácoros. Ninguém lhe tirava da ideia que aquele homem azedo podia ter sido melhor pai e melhor marido, e de que em algum momento passara a odiá-lo, como ele a odiava a ela. Porém, estava-lhe grata, pois no mundo dos deveres, o primeiro de todos era sustentar a família, e esse dever cumpria-o o Costa.

De cócoras, cuspindo nas mãos, o velho terminava a tarefa aramando os degraus da escada. Se alguma vez um eles (corroído pelo tempo ou pelo bichedo) desabasse, sempre podia o corpo lá no alto segurar-se ao fio de metal que o capeava, livrando-se assim de uma queda certamente fatal.

A tarde ia já a meio. O Costa libertara finalmente a miudita que lhe servia de cavalete. Talvez nesse domingo não fosse beber. Pelo menos seria como nos primeiros tempos de casados, pensava a mulher, enquanto na esquina da eira espreitava. Ninguém lhe tirava da ideia de que lá no fundo ele ainda gostava de si. Em coisas de amor e de ódio ninguém sabe bem o que dizer. Isso ela o dizia, ele não. O Costa não conhecia esse adágio.

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O amor como ele é

Nico Ouburg
Fotografia de Nico Ouburg

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Gostava de ter sido uma pessoa diferente, mas se pudesse voltar atrás não saberia por onde começar, disseste uma vez. Lembro-me bem. Havia bocados de telha no chão, por causa de um temporal de véspera. Lembro-me que falavas com o avô e eu escrevia no asfalto. Escrevia tão distraído como o Cristo que escrevia distraído no chão.

Nessa altura, a voz era já um motor lento e rouco, afligido pelo catarro e pelo começo de um cancro. Não sabia que sim. As mãos tremiam-te. Tão brancas que mal podiam ser da mesma carne que nós. E talvez não fossem carne, mas já um vapor frio. Todo o teu corpo era uma despedida: pálido e inquieto, distante e enregelado. Como quando esperamos uma partida. Como nos domingos, antes de cairmos no nosso poço de melancolia, sabendo que cairemos nesse poço. Como nos dias a seguir às Festas, quando janeiro se torna uma estrada interminável e intransitável. Como quando sentimos o nosso ser amarfanhado, doloroso, tomado pelo medo e pela angústia. Nessa altura, todo tu eras um tronco apodrecido, caminhando sem firmeza, sem certeza, como se os ossos tivessem principiado a ruir por dentro.

Gostava de ter tido mais tempo para mim, Manel. (Manuel era o meu avô!) Gostava de ter estudado. Gostava de ter sido inginheiro.

O catarro devia ser uma espécie de código, de linguagem, de entendimento entre velhos. Porque catarravas primeiro e o meu avô ria e catarrava também. E o riso de um provocava o riso do outro e o catarro do primeiro puxava o catarro do segundo. O catarral não impedia que o meu avô puxasse do maço de Kentucky e to estendesse como quem oferece, misericordioso, um peitoral Santo Onofre ou um Dr. Bayard. Eu ouvia e escrevia. Com um pedaço de telha. Com o coração aceso de curiosidade e vaga ignorância.

Nem ao menos me ficou um neto e companhia, Manel. Tu tens sorte. Tens muita sorte, Manel.

E a sorte do meu avô era ter-me por perto. Aviar-lhe os recados. Dar-lhe cabo das leiras de cebolo e pisar-lhe os ervilhais. A sorte do meu avô era limpar-me o ranho e ensinar-me a plantar batatas, dar-me café de borra com leite e broa e explicar-me, um a um, o nome dos pássaros. Era uma sorte, sem dúvida. Aquela que têm aqueles que ficam na nossa cabeça quando viajamos e pensamos neles. Aquela sorte imensa que possuem os que nem sonham que nós sonhamos com eles e que por sua causa damos imensas voltas na cama. Aquela sorte dos que nos fazem sorrir e às vezes chorar em segredo. Porque, porra, aqueles que amamos têm esse poder, mesmo se nem
imaginam ao de leve que têm esse poder. 

Quem me dera ter por cá um dos meus. Estão todos lá na França. Todos, Manel. Não me ficou ninhum.

Quando, velho Gusmão, passaste o baraço pelo pescoço e pela trave a corda espessa de sisal, sabias que o amor é branco como a flor da cicuta e negro (nigérrimo) como as bagas da beladona. Porque o amor é formoso e saturado de uma subtil peçonha que nos aviva e nos mata aos poucos. Angústia súbita que nos incha com as vísceras, nos queima por dentro, nos sufoca, nos corrói, nos abandona às vezes.

Esse teu neto, Manel, que moço curioso! Parece que está lá longe, mas está a apanhar tudo o que dizemos…

Quando, velho Gusmão, te penduraste numa trave, sabias que o amor é formoso e sinistro, belo por fora, mas terrível e devastador também. Sabias que quando por ele respiramos e não pelos pulmões, quando nos alimentamos por ele e não por nossas mãos e boca, quando por ele sonhamos e não pelos nossos olhos abertos e distantes, estamos à beira da morte. Quando pontapeaste o escabelo, onde te havias empoleirado, e sentiste o golpe da corda serrar-te a garganta, sabias que valeria a pena ter durado mais, ter durado até se atrofiar de todo o esqueleto, se a vida te não tivesse negado o único bem por que valia tudo. Esse teu neto ainda te vai dar muitas alegrias, homem. Olha para o que eu digo.

Com a sincera mágoa de quem nunca leu um único poema, romance, enfatuamento romântico, sabias que o amor é culpa de muita coisa. Pedra como todas as pedras, hirto e morto, inflexível e cheio de esperança, ou de arrependimento, ou de arestas ou de comiseração. Quando aos oitenta e seis anos te deixaste ir, baloiçando pesadamente como um pêndulo, ninguém pôde compreender-te. Nem aqueles que tinhas na cabeça e nos sonhos e nas saudades. Nem esses. 

Demoraram três dias a dar-te com o corpo. Com o corpo. O resto talvez não venham nunca a encontrá-lo.

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Tu

Fotografia de Mario Raia

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Duas coisas distinguem a vida de um homem da vida de outro homem: a capacidade de suportar a dor e a capacidade de produzir prazer. Uma terceira coisa o distingue depois da morte: a exemplaridade da sua memória. Tenho, a esse respeito, tido grandes mestres. Mas tu foste o maior!

Porque nesta época em que tudo se confunde, ruído e realidade, poder e importância, espetáculo e reconhecimento, ouro e pechisbeque, nesta época em que se não distingue autenticidade e clichés, nobreza e velhacaria, nesta época vil e mecânica, nesta época automática e plástica, insossa e cega, nesta época de famigerados da fama, ó Régio!, de louvadores do fácil, nesta época de nadadores em mares de contentamento, ó grande Camões!, nesta época provavelmente não menos nem mais facínora e execrável do que todas as outras, tu passeias-te no meu pensamento muitas vezes, nítido ainda, inteiro como dantes, muitas vezes, subindo com as neblinas a várzea silenciosa, lento, firme, feliz, com ou sem a espingarda ao ombro, com ou sem coelhos à ilharga, feliz, firme, lento, para me ensinar.

Um homem não vale pelo que tem, nem sequer pelo que é. Mas pelo que fará ter aos outros, pelo que for capaz de deixar de seu, não a uma, mas a dez gerações!

E como eu te escutava, meu velho amado! Os nossos colóquios eram na cozinha, junto à lareira grande de pedra, onde o fumeiro e os grandes potes de ferro enegreciam. Onde a ciência intemporal dos teus provérbios ardia. Onde me contavas as tuas histórias de licantropos, homens voadores, sereias e mouras encantadas. E como eu te escutava, meu velho amado! Como ardem ainda as manhãs nevoentas, em que desjejuávamos os dois, rapando com um pedaço de pão o prato dos ovos estrelados! Como recordo esses ovos de gema sumarenta, esse pão de sêmola, junto dessa lareira grande nessa cozinha escura e fumada! Como estremeço ainda à tua voz, às tuas palavras despidas de vaidade.

Quando chegares à minha idade, meu filho, vais perceber que o céu é para quem o ganha e este mundo para quem mais apanha… Bem prega Frei Tomás, faz como ele diz e não como ele faz! É tão certo isto, como dois e dois serem quatro, meu filho!…

E tu limpavas os beiços a um pedaço de pão. Limpavas o catarro com um gole de vinho. Como eu amava aquela história do homem que queria voar, das imprudentes asas de cera, do sol impiedoso, da queda no oceano. Tudo narrado ao pormenor, sem pressa, com a paixão de quem semeia um tempo por vir… Deves ter-me contado essa história umas vinte mil vezes. Na cama, onde te admirava as ceroulas de flanela e a cicatriz no abdómen, no quintal, enquanto semeavas favas e ervilhas; no lagar, onde depois das vindimas depositavas caruma e palha seca, onde nasciam às dezenas, pintos magnificamente enxutos e amarelos. Porque me contavas as histórias sem querer ensinar.

Porque os vícios se aprendem depressa e os sublimes prazeres devagar. É preciso amar a vida para se compreender a vida, meu filho!

Julgo que uma ou outra vez, empolgado pelas lições, quis fumar também. O teu maço de doze Kentucky era uma tentação. Mas tu somavas em voz alta os cigarros que ficavam a guardar-te a casa enquanto ias dormir a sesta. Limitava-me a colocá-los na boca, a imitar-te de longe, a fingir-me caçador, lento, firme, feliz.

Porque o exemplo e a memória que nos fica de um homem é a terceira e mais importante coisa que distingue um homem de outro homem, logo depois da sua capacidade de suportar a dor e da qualidade dos seus prazeres.

Julgo que arrostaste com estoicismo o cancro. Eras um velho já tão velho que o meu amor por ti não cessava de crescer. E, no entanto, não compreendi jamais a tua derradeira cama, os cigarros abandonados, a espingarda com teias de aranha, os ervilhais deixados ao deus-dará, os ovos por recolher e pintos nascituros nos remansos da cave, a lareira sem lume, as histórias por contar, as manhãs sem ti…

Penso em ti muitas vezes, avô. Porque nesta época em que tudo se parece estranho e estéril, feio e enfermo, esquálido e esquecido, doloroso e dorido, demasiado e diminuído, sinto a falta do maravilhamento calado dos teus olhos, do catarro sombrio que enchia a alvenaria da casa, do desembaraço e desembaciamento e sonoridade limpa de cada um dos teus gestos, da luz das tuas palavras, da certeza que tinhas então sobre mim.

Um homem vale pelo que tem cá dentro, meu filho! Lembra-te disso! Um homem vale pelo tamanho do seu coração! Homens graúdos têm o coração do tamanho de uma melancia, ouviste?

E eu a querer um coração grande, com medo de que pesasse tanto que me afundasse. E eu a imitar-te em tudo, meu velho. E eu a não perceber aquela gente que me dizia que tinhas uma doença, que tinhas morrido, que tinhas partido, que não virias contar-me mais histórias de lobisomens e ícaros, sereias e mouras, anões, sapateiros e hortelões, raposas matreiras e criados do diabo…

Não te perdoei a primeira, nem todas as outras manhãs em que não regressaste das neblinas sobre a várzea silenciosa. Julgo que uma ou outra vez, esquecido das lições, quis fumar também. O maço em cima da escrivaninha. O isqueiro em cima do maço. Os dedos em cima do isqueiro. Penso em ti muitas vezes, avô. Em ti, corpo encarquilhado, cansado de lutar, escavado pelo mal. Porque uma terceira coisa distingue um homem depois da morte: a exemplaridade da sua memória. Em ti, que um dia não regressaste. Porque duas coisas distinguem a vida de um homem da vida de outro homem, não é assim? Em ti. Julgo que uma ou outra vez quis fumar também. A capacidade de suportar a dor e a capacidade de produzir prazer, não é verdade? Como te escutava, meu velho amado!

Não deixei que o vício me levasse a palma, avô. Porque os vícios se aprendem depressa e os sublimes prazeres devagar. Não é assim?

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Uma promessa que te faço

Fotografia de George Vintila

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Todas as pessoas prestam. Mais que não seja para nos ensinarem a preciosa lição de que não podemos confiar nelas.

Que saudades, avô!

Massajo a cabeça com o champô, sinto o frio rodear-me o corpo por todos os lados, a chuva a cair do outro lado da parede, o sono a puxar-me de longe (da infância), os minutos a passar lentos, velocíssimos, o jato de água quente deslizar de novo, por mim abaixo.

As pessoas são como as árvores!

Como as árvores, avô?

Como as árvores. Uma vezes são da terra, outras vezes são do céu, outras vezes são de debaixo, de muito debaixo, do último pedaço de raiz, tão escondidas como o Diabo.

Enxaguo-me. Já tão exausto, como se estivesse a preparar-me para a cama. Já tão distante, como se pertencesse a outro tempo. O felpo a lembrar-me a ferida na orelha, o desalento da manhã ocupadíssima, a viagem, o mau tempo, o pequeno-almoço devorado a correr, os sons da campainha, os cheiros desagradáveis, o tom de voz crispado, os pixéis fundidos dos computadores, as faltas, as falhas, as frustrações.

Um dia hás de perceber tudo isto, meu filho!

O quê, avô? O que hei de eu perceber? Que as pessoas gravitam em torno de nós como corpos aleatórios, desejados, indesejados, esperançosos, malditos? Que as melhores pessoas nos morrem e são como os primeiros cadernos de escola, onde escrevemos as mais puras manhãs? Que o destino é um matadouro de sonhos? Que nos magoa horrivelmente amar e ser amado? Que amar é só o primeiro sinal de decadência? Que um animal nos mora na alma e nos morará sempre, igual aos primeiros vírus?

Porque tu és reguila! Tu vais desenrascar-te bem, não vais?

E de um momento para o outro, apoiando-te na bengala, sem olhar para trás, sem te despedir, caminhando curvado (sempre que penso em ti, sempre que me recordo, mais curvado me pareces), caminhando paulatino, caminhando na mesma direção, caminhando para longe, foste sem voltar.

Tu és reguila, hem? Olho aberto, ouviste?

E só me ocorre nevoeiro. O nevoeiro que agora me tapa a visão, debaixo de bátegas inclementes. O para-brisas dançando como um louco, o ar condicionado no máximo, os intermitentes ligados. O nevoeiro que me não deixa olhar mais na tua direção, tu mancando, apoiado na bengala, deixando-me para trás, sem me ouvir, rouco, cansado de gritar por ti, com as lágrimas e o ranho a impedir-me de respirar, incapaz de compreender.

Porque não se compreende que um avô deixe uma criança assim…

Todas as pessoas valem a pena. Mesmo aquelas que não valem nada. Aprenderás como…

E a viagem alonga-se, eterniza-se, deixa-me ainda mais longe de quem sou, como se de repente tivesse principiado a rodar noutra estrada, a galgar anos em lugar de asfalto, a procurar um ser de outrora como se procura um objeto perdido, a descobrir com olhos novos verdades antigas, a alcançar finalmente o significado das palavras que ficaram gatafunhadas em papel pardo, junto à lareira, com um velho lápis de carpinteiro aguçado pela tua navalha.

Que saudades, avô!

E é quando dou por mim junto do portão. A confusão ímpia das segundas-feiras. O motorzinho escancarando-lhe a boca, introduzindo-me na vida, engolindo. Que saudades, avó! Dessas manhãs junto à lareira, das tuas mãos calosas, quentes, magoadas.

Aprende a conhecer as pessoas, meu filho! Tu és reguila! Tu vais safar-te, não vais?

Primo um botão. O carro fica para trás. O ar violento da cidade. Sim, avô! Prometo que sim! Verás que sim! Juro que sim! Porque nunca se deixa uma criança para trás, dobrada num pranto, ferindo-se sem cura! Nunca se deve ser surdo e insensível. E um velho morrendo-nos, curvado numa bengala, enfiando-se no nevoeiro, é uma questão de honra, de orgulho, de sangue!

Prometo que sim! Verás que sim! Juro que sim, avô!

Saberei desenrascar-me, conhecer as pessoas, escrever melhores palavras, ser alguém. Todas as pessoas prestam. Mais que não seja para nos ensinarem a preciosa lição de que não podemos confiar nelas. E há, algumas, pouca, escassíssimas, que nos fazem bem, que nos saram das hemorragias.

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O dia em que me ensinaste a voar

Jay Satriani
Fotografia de Jay Satriani

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Foi há tanto tempo que começo a duvidar se esse dia realmente existiu, avô. A memória das coisas e a memória dos sonhos às vezes flutuam tão perto que deixamos de as distinguir. Queria ser igualzinho a ti. Usar uma bengala, como a tua bengala. Segurar na cabeça uma boina de feltro escuro, como a tua boina de feltro. Sentir cruzados nas costas uns suspensórios como os teus. Ser igualzinho a ti. Rir como tu rias, caminhar devagar como tu caminhavas, puxar de uma escada e subir a uma macieira, como tu fazias. Ir à algibeira e puxar de uma navalha de osso, como a tua navalha; cortar a maçã em pedaços e comê-la com os olhos postos no infinito, como tu fazias com os olhos, quando comias uma maçã e te sentavas na soleira da porta, esperando que o sol acabasse a sua volta e te viesse sorrateiramente a noite. Foi há tanto tempo, avô, que principio a desconfiar da minha cabeça e, sobretudo, do meu coração traiçoeiro… 

Lá chegou o dia em que te confessei esse devaneio. Tinha tantos… Tu sorrias. Tão devagar que o sorriso, como a luz da tarde, parecia de gesso e sem fim. Tu sorrias, como se de lá de muito longe (da tua própria infância), te acenasse um miúdo igual a mim… Como se lá do arrebol doutro século, amparado por um velho igual a ti, te acenasse a vaga recordação de um sonho igual ao meu sonho. Tinha tantos, avô… Escutavas sempre com ternura infinita, mesmo quando te contei esse meu sonho de querer ter umas asas e voar. Mesmo se me ralhasses por trepar aos bardos e às arvores e aos telhados. Porque eu queria voar. Porque eu queria parecer-me com os pássaros e estudar o azul. Porque eu queria conhecer as coisas como as conhece o vento quando ergue em torvelinho o pó e nos tomba o cavalo de pau… E tu sorrias, sorrias com esse sorriso belo de quem compreende os sonhos sem os manchar com a ironia ou o sarcasmo. Tu sorrias como se sorri ao sol, quando as tardes demoram e nos espera uma noite em solidão. E isso é o ofício sagrado dos avós. E essas são as tardes mais infinitas que nos ficam, mesmo quando a memória começa a duvidar de si mesma e as horas se parecem mais curtas do que as horas de antigamente e o sorriso mais doente e a soleira mais estreita e os sonhos mais impossíveis… 

‒ Pois tu queres voar, meu filho? 

‒ Pois quero! 

Queria ser igualzinho a ti. Vestir como tu camisas de flanela. Fumar como tu maços de Definitivos. Usar como tu, à cintura, uma tesoura da poda e ir indo pelo meio dos campos aparando e limpando os ramos, contemplando o milagre das estações sucessivas, esperando que o tempo cumprisse a sua palavra e te levasse em paz… Igualzinho a ti. 

‒ E se te fizesse um papagaio de papel para aprenderes a subir ao céu? 

‒ Eia, isso queria eu! 

E seguir, confiar, agasalhar-me na sabedoria dos teus gestos. Ver-te juntar numa mesa cartão e cola, sisal e paus descamados de giesta. Ver-te com decisão erguer um trapézio, enquanto me bebias o espanto e semeavas em mim esse amor que abre brechas nas paredes densas da morte. 

‒ Pois tu queres voar, meu filho? 

‒ Pois quero! 

Foi há tanto tempo, avô! Custa acreditar há quanto já. Ainda os outeiros tinham a magia dos outeiros. Ainda os dentes de leão vogavam sem medo, roçagando-se suavemente na nossa boca. Ainda o azul que os pássaros bebem se podia olhar no espelho límpido dos charcos escavados pelas chuvas de março. Ainda a terra era livre e perfumada. Ainda os dias eram perfeitos na sua dádiva de poesia. 

‒ E se segurasses neste novelo para eu te explicar como se faz? 

‒ Eia, isso queria eu! 

E és tu, velho trôpego, és tu quem me vem à cabeça, tu, devorado pela artrose, consumido pelas dores (quantas vezes me comovo ao lembrá-lo), és tu quem eu vejo ainda correndo, mancando, gemendo sobre as ervas, falseando ridiculamente os passos, para que esse mágico losango de cartão pudesse ascender ao lugar dos sonhos, para que eu pudesse aprender sozinho a arte dolorosa de acreditar… 

Não sei por que me recordo agora de tudo isto. 

‒ Pois tu queres voar, meu filho? 

‒ Pois quero! 

Nem porque se tornou cega a luz azul de março. Nem porque se tornou seca a cratera dos charcos. Nem porque se tornaram tão pesadas as asas do amor que me ensinaste. Nem porque deixei de saber erguer ao alto, como um pedaço de mim, como uma extensão de mim, esse trapézio de cartão, preso a um novelo de sisal. Foi há tanto tempo que começo a duvidar se esse dia realmente existiu. Perdoa, avô! 

‒ E se hoje fizéssemos um corrupio? 

‒ Eia, isso queria eu! 

Nem porque não sei sair correndo como tu, a mancar, suportando as dores, para que as pás coloridas de uma pequena ventoinha pudessem, como os pequenos pardais distraídos da primavera, que depois de curados tu soltavas, acreditar e voar. Porque isso era o meu sonho. E não sei (o tempo tem destas coisas) como fui capaz de o esquecer…

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