Os fascistas

Fotografia de Michelle Raponi

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Os velhos fascistas, amargados como tubérculos na terra, reuniam-se à noite na taberna de Albertino. Não havia grandes palavras entre eles. Os fascistas, velhos ou novos, são incapazes de grandes palavras, só das necessárias.

Com o vinho as palavras, mesmo poucas e depauperadas, passam a pesar significativamente, mais ainda na boca de velhos agarrados ao palato sabujo de antigas palavras de ordem.

– Tudo a bem da nação! – atirava de chofre um dos irmãos Oliveira, o de cara amareliça, cor de ovo recozido.

– Tudo a bem da nação! – replicavam os outros fascistas, erguidos num ímpeto do seu sono aranhento e tubercular.

As cartas corriam das mãos ao pinho, do pinho às mãos. Albertino, com a sua gravata verde e o seu alfinete de ouro em forma de esfera armilar, servia a mesa do Henriquinho e a do Laurindo, servia a malga do António e a caneca do Severo, servia os Oliveira, os Guimarães, os Alves, os Costa, o Fiolhais da Farmácia, às vezes o Padre Aníbal. A taberna era espaçosa, a noite uma grande saudade, as paredes uma coleção de retratos: a do Professor Salazar, a do Presidente Tomaz, a do Cardeal Cerejeira, a de garotos lendo o Thesouro da Mocidade Portugueza, a da malta da Legião esticando o braço e, agora, mais recente, a do comentador de futebol.

Todos os fascistas veneravam o tinto nacional, o bacalhau frito, o respeitinho pela pátria. Não havia um único pássaro na taberna do Albertino.

– Os pássaros são para estar nas gaiolas! – dizia o Albertino.

– Os pássaros são para estar presos nas gaiolas! – respondiam os demais fascistas.

Tanta liberdade e tanta alegria para uma só e mesma criatura parece-nos, de facto, um afoitamento desmedido, um manifesto, um perigo.

– A bem da nação…

– A bem da nação! – redarguia, com os bigodes a pingar de carrascão e olho vermelho, o Eduardinho, o menino da Dona Quitéria, o mais novo deles todos, apenas vinte e cinco anos, velho que metia dó.

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Crónica dos dias que vão

Peter H - lost-places
Fotografia de Peter H

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Um dos meus maiores medos começou há uns tempos, subtilmente, numa das conversas em família à hora do jantar: disseram-me que nesse dia fora a sepultar a última das saboeiras da freguesia.

Não era do meu conhecimento que tivesse havido fábricas de sabão e saboeiras na terra, por isso senti uma puada cá dentro, como as que sentimos quando nos escapa algo de valioso e se mistura culpa e nostalgia em nós.

Poucas semanas depois os sinos dobraram e o meu pai, contadas as repetições do dobre supôs de imediato:

– Foi o guarda-rios, foi o Salvador! Olha, coitado, era o derradeiro do seu ofício…

Mais uma vez atingiu-me a perplexidade: desconhecia que houvesse uma profissão tão específica, tão bastantemente útil e tão autossuficiente como a desse pobre homem que levava a alma ao outro mundo.

Comecei aos poucos a tomar consciência da excecionalidade desta época em que um mundo inteiro de mesteres e modos de vida e ganha-pães personalizados morre e outro mundo inteiro de cargos e encarregados, diretores, funcionários e colaboradores varre a paisagem sem lugar a rosto, individualidade ou história para lembrar mais tarde. Ao dar-me conta deste exato momento epigonal em que o último vedor e a última jornaleira, em que o último alfaiate e a última camponesa com coragem para matar galinhas e esfolar coelhos, em que o último alambiqueiro e a última boticária se preparam para entregar ao vazio a sua arte e o seu orgulho, a sua perícia e os seus rituais, dou-me conta (por arrasto) de que uma porção imensa do espaço e do tempo em que fui preparado para viver está a ir-se, subtilmente, num voltar de capítulo silencioso, num cortejo fúnebre discretíssimo, num fechar e abrir de olhos ao serviço de uma hierarquia nova, computacional, globalizada, irrespirável, inumana, de identidades-números, onde tudo o que se faz é produto, onde tudo o que é concreto é virtual, onde todo o contentamento mói num longo bocejo eterno de-antevéspera-a depois-de-amanhã.

Um dos meus grandes medos é o sentir-me fiel da balança, sentir-me depositário de um mundo antigo que se despede sem adeus e até sempre, e sentir-me recebedor de um mundo outro, atroz, que me exige (para merecer estar vivo) que esqueça justamente e depressa, que oblitere, que apague pura e simplesmente essa memória decadente de trabalhos ultrapassados, de muitos nomes, de velhas histórias e sentimentos incompreensíveis, como a saudade, como o sentir falta de meter mãos às coisas e sobre as coisas, como o frémito de cheirar a terra, ou o tecido acabado de riscar pela sábia costureira, ou sentir prazer e repugnância junto das vísceras quentes e do sangue pingado desses animais que alguém, repleto de competência, acabou de degolar.

Um dos meus grandes medos é o de me sentir expulso deste outro mundo nascente, falso, hipócrita, reescrito com a lei suprema do politicamente correto e do balofo e do estéril e do artificial.

Tremo de pensar que estou na cauda de um cometa vertiginoso, assistindo à desaparição de algo a que chamam velho e inútil, mas que é, tenho de teimar, luminoso e cheio, vivo e refrescante. Tremo de sentir-me como aquele punhado de gente que assiste com lágrimas à implosão do Cinema Paraíso. Tremo de pensar que os sinos um dia talvez nem dobrem. Que um pequeno estalido ecoe eletronicamente, interligadamente, absortamente, cansadamente, nos dispositivos dos meus sucedâneos e que algum deles, um apenas, desvie um pouco os olhos do ecrã e considere pelo pequeno ângulo de firmamento acessível o sentido da existência.

– O velhote do quinto direito… morreu!

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Lembrança da Mena e do Miro

Bêbedos, Drunk
José Malhoa, Os Bêbedos, 1907

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Não há gosto que mais me anime do que rir com vontade. Nestes débeis intervalos de entre-inverno-e-primavera deu-me para remexer na papelada do avô. Já antes o havia dito, é um dossiê muito baralhado de ideias, mas cheio de realismo e de graça.

Dou por mim a partilhar outra das suas histórias.

Leitor, e se nos aprouvesse contar num livro a História Universal das Bebedeiras? Nele teria de constar, evidentemente, a carraspana célebre de Noé, o condutor da Arca. E também as borracheiras em que se deixaram apanhar, tanto como Hércules como Sansão, dois desgraçados cheios de força e pouco juízo. E também as cardinas de Li Bai e de Rumi (não sei se mais fabricantes de poesia, se bebedores de néctar de Baco). Convinha que, igualmente, as do meu cunhado Francisco (precocemente reduzido à condição de ex-motorista, após terem confiscado a licença que lhe permitia conduzir o camião e a semi-trailer – «semitrel» como ele dizia – e tudo por se obstinar a fazê-los embater contra tudo o que fosse matéria dura e merecedora de estar em pé).

Grande ultraje seria – se não peco por imodéstia – não incluir nesse tratado as minhas próprias bezanas ao longo da formatura, uma em particular, quando etilizado em extremo me levaram aos cuidados de uma enfermeira amiga, que me disse «Ai, meu menino, tu és tão bonito, mas estás tão bêbedo».

Mas isso, leitor amigo, isso são bagatelas se cotejadas com as digníssimas pielas da Mena e do Miro. Quem eram a Mena e o Miro perguntarás e com razão. Eram o mais bem-aventurado casal de alcoólicos que conheci nestes rugosos anos de vida e de que vale – de que vale muito – ocuparmos esta pena por alguns instantes.

Ela, Maria Filomena Rodrigues Feital, nascida em 16 de março de 1938, na freguesia de Antime, concelho de Fafe. Ele, Casimiro Manuel da Costa Fontão, nascido em 16 de março de 1938, na freguesia de Darque, nos arredores de Viana do Castelo. Terras excelentes as duas, paróquias de muitos devotos cristãos e boa maternidade de ilustres e incontáveis ébrios e ébrias.

Não será de pouca monta a coincidência ou a simbologia da data em que os viu o mundo pela primeira vez. Investiga, leitor ocioso, e sabê-lo-ás.

Nem o terem-se conhecido na Feira de Barcelos, numa tenda de cacaria. Havemos de convir: que melhor prenúncio de vida a dois do que comprarem para enxoval um cantarozinho pintado?

Gostaram um do outro, casaram, nunca tiveram filhos. Entendiam-se como o vento e o fogo, especialmente à quarta-feira quando mergulhavam na Tasca da Porcina e logo o aroma do fígado frito em cebolada os agarrava a ambos pelo colarinho e os obrigava a sentarem-se a uma mesa lá no canto, à beira dos presuntos pendurados.

Era uma romaria de beberrões. Entrava-se, encomendava-se a broa, as azeitonas, o fígado frito (o dita da cebolada ou, em lugar dele, o bacalhau – desfiado cru, assado às postas, frito com ovo) e pedia-se, sobretudo, a vinhaça.

Berrava o Miro pelo par de quartilhos:

– Venham dois: um pra agora, outro pra depois!

Era a sua maneira de começar, a sua frase de guerra. E chegava a vinhaça, a vinhaça magnífica que fazia espumar canecas e tingir as malgas.

A Mena, cheia de sede, gostava que ele enchesse até cima. Só dizia “bonda!” quando o líquido atingia os beiços esbotenados do barro. Dava um beijinho à tigela, acariciava-a um pouco sobre a mesa de pinho antes de a erguer com jeito. A seguir punha-se a incliná-la sobre os seus próprios beiços arreganhados e, zás, descia tudo goela abaixo num abrir e fechar de olhos. A Mena regougava, dava com a língua estalos de aprovação, atirava para o lado a contrassenha blasfema:

– Se este é o sangue de Cristo, bendito seja quem no matou!

Nunca a Mena teve forças para trabalhar. Jamais o Miro atinou com emprego que pudesse manter por muito tempo.

Andou pelas fábricas têxteis, mas enganava-se muito nos fios. Carregou a massa das betoneiras, mas estorvava nas obras. Nos talhos ninguém lhe dava emprego, que afiados são os cutelos e magros os dedos são. Somente na terra, na poética lavoura, arranjava ele serviço às vezes como jornaleiro, recebendo vinte e cinco, trinta, cinquenta escudos por semana, conforme o préstimo e a bondade do agricultor contratante.

O problema era sempre o mesmo. O Miro arava, abria valeiras, semeava e plantava, estrumava e sachava, mondava e colhia, mas a cabeça portava-se mal, a cabeça ardia-lhe como ferro ao sol. Exigia-lhe sumo de uva a toda a hora, tanto dele no bucho como de ar nos pulmões.

Foi assim que uma vez se voltou sem mais nem menos para a Dona Antoninha, a fidalga da Luz, e com ar sofrido lhe rogou:

– Ó minha senhora, pelas almas! Dê-me um copo de vinho, que eu já não me tenho em mim…

Era um escândalo.

O Miro sorvia ruidosamente o copo alto, a malga funda, a caneca bem medida. Era como se morresse à míngua, como se comesse vinho, os queixos muito sujos, a barba ensopada, a camisa sarapintada de nódoas. Bebia rubro do esforço, vermelho da secura.

Daí para a frente era o desastre. A fidalga vociferava:

– Aquele homem põe-me a alma no inferno. Aquele homem só faz bordel…

«Fazer bordel» era o mesmo que trocar sementes, esquecer a ferramenta no meio dos campos, deixar a água fluir pelos canais errados, não trancar a porta da pocilga. Pior, muito pior do que isto, era pregar sustos à fidalga.

Leitor atento, queres exemplos, não é assim?

Hesito qual deles dar-te, visto que não foram poucos os que testaram a paciência da pobre senhora. Talvez este caso, que é de boa índole. E se dentro dele escutas já o assobio do Miro, não julgues que a Mena ficou de fora.

Em agradecimento de certo obséquio que realizou o fidalgo a gente de fora da freguesia, ofereceram em vésperas de S. João um anho a Dona Antoninha, para o assado.

Foi o bicho posto nas catacumbas do solar, preso numa corte feita de improviso, à espera que lhe dessem um destino. Precisavam de alguém para o matar e de alguém para o esfolar, dado que nem as criadas da casa conseguiam isto, nem os criados estavam para aquilo. Chamaram, portanto, o Miro e a Mena.

O animal era muito bonito, coberto – como não podia deixar de ser – pelo lanoso macio de todos os espécimes da sua espécie, balindo a todos os que lhe afagavam o pelo como a pedir misericórdia, igual a uma figura de presépio.

A Menina Constança, a fidalga mais nova, afligia-se. A Menina Rita, a fidalga mais velha, afastou-se para não ter de olhar e ouvir. As criadas amparavam mal as lágrimas, de tal modo a cena metia dó. Apenas o Miro, que havia emborcado um par de cálices de vinho do porto e outros tantos de aguardente, parecia saber o que fazer – ele e a Mena, que afiava as facas e tinha já duas panelas com água a ferver e um alguidar grande de barro com rodelas de limão.

– Segura-lhes nos cornos, Miro!

– O rais ta parta, Mena. Este peludo tem cornos, por um acaso?

O Miro desferiu-lhe uma marretada na cabeça, que assim se matavam os anhos. O animal tombou. Estava feito! Dona Antoninha, vencendo a relutância, espreitava do eirado. A Mena arrastou-o, deixou-o junto do alguidar, porque queria acabar de amolar as facas. Mas eis que num ápice o anho se levantou e se pôs a barregar outra vez.

– Ai, meu Deus! – berrou a fidalga.

– Ai, meu Deus! – afligiram-se as criadas.

– Ai, meu Deus! – disse o Custodinho, neto da fidalga, que nessa altura estudava no Seminário de Braga e tinha vindo para a missa da solenidade de S. João Batista.

A Mena, já muito emperrada na voz e com os olhos a luzir, disparou imprecações contra o matador incompetente. O Miro, sem se importar com a consternação geral, emendou a mão e acabou à segunda o serviço.

– Ó minha senhora, não se aflija! Não se aflija, digo-lhe eu! Estes bichos são mesmo assim, tanto estão mortos, como estão vivos.

Sei de fonte lídima que não se anho assado nessa ocasião no solar da Luz, tamanha foi a repulsa e tão grande a lembrança do bicho morto-vivo.

Foram os serviços do Miro e da Mena dispensados, com natural azedume e muitos ralhos à mistura.

Se a consciência e o sentido da justiça tivessem imperado, havia a fidalga de arrepender-se e pedir desculpa ainda por cima. Cá reza o povo, e com bastante arrimo da verdade, que «Tanta culpa tem o bêbedo como o taberneiro: se um é o lume, o outro é o fogareiro».

Está a história pouquíssimo rabiscada no caderno do avô, redigida num estilo, no itálico da sua caligrafia habitual. Data não tem, fundo de verdade talvez tenha. Pergunto-me amiúde porque nunca os terá publicado, se tão melhores são que os meus!

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Espécie de elegia

W. Eugene Smith - Charlie Chaplin, 1952 I
Fotografia de W. Eugene Smith (1952)

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«A coisa mais triste do mundo é assistir ao espetáculo de um humorista que perdeu a piada» disseste certa vez enquanto empurravas o charuto com a língua e humedecias as palavras com bourbon do forte. «Assistir a uma trampa destas pá, que tristeza!» Não me lembro do nome do artista nem das anedotas que contava. Lembro-me das lantejoulas, do chapéu, das mesas redondas e de ter pensado como é terrível alguém tornar-se caricatura de si mesmo. «Este tipo chegou a levar quinhentos contos por meia hora…». Fixei o número. Nem por um segundo desconfiei que fosse exagero. «Olha-me para ele agora… um palerma a imitar o pior do Herman… Que trampa!»

Sempre tive medo dessa fase. Sempre. Do Elvis gordo e sem timbre. Da Marilyn embriagada e sob o efeito dos barbitúricos. Do último Hemingway. Do último Picasso. Do último Pollock. Do último Coltrane. Do último Sinatra. Da Amália titubeante. Do Herberto Helder de Servidões e A Morte Sem Mestre, malcriado e escassamente luminoso. Sempre tive medo de me confrontar com o espelho, (como Chaplin em Limelight) e de tropeçar com olhos míopes e cansados num ser que se tornou paródia da sua própria pessoa.

«Agora dão-lhe cinquenta euros! Às vezes dão-lhe só de comer. Por piedade! Ao que este tipo chegou, pá!» As palavras cheiram a álcool. Ácidas e incisivas como enzimas devoradoras. Alguém na penumbra forçou uma gargalhada. É pavoroso que se simule um relâmpago tão inocente. A rapariguinha loira veio perguntar se tomávamos mais alguma coisa. Daí a nada o cabaré ia fechar. Com um sorriso apagado, frio como a sopa fria, restavam dois casais, uns quantos solitários e nós. «Cheguei a pedir-lhe um autógrafo… No princípio até lhe propus gravarmos uma cassete!»

Com angústia o palco e o microfone tornam-se claustrofóbicos. Um tipo suado e sem modos passava um pano no balcão e fez tilintar os copos com desdém. As bailarinas, já sem maquilhagem e com as golas dos sobretudos subidas, despediam-se desrespeitosamente deste barman saído dalgum filme lúgubre. O ruído dos tacões fez dispersar o que restava da nossa atenção. «Olha-me só para aquela mulata… Muito bem, hem?» O público bateu as palmas finais, aliviado, infeliz, como todo o dever cumprido sem amor. «Este tipo não presta. Foi tempo perdido… O que vale é ali a mulata. Boa, hem?» E levantámo-nos. Fizeste menção de pedir mais dois copos. Recusei. Insististe. Insististe mesmo em pagar um copo ao tipo do stand-up. À rapariga crioula também. Fui obrigado a beber.

Sempre tive medo destes copos que se bebem com fome, desta espécie de buraco negro absorvendo-nos as ganas de viver com um ou dois cubos de gelo, ou mesmo sem gelo nenhum. «O que é preciso é alegria, meu amor!» O humorista engolia o malte à pressão. Achava muito bem. O que era preciso era muita alegria. A rapariga gostava que cochichasses e lhe desses beijos no pescoço. «O que é preciso é isto, muita alegria, hem!». E eu sempre tive medo dessa tristeza, desse apelo ao esquecimento, desse convite à cirrose hepática e a todas as formas de estar em ruínas no mundo. «Haja alegria, pá!» O tipo do balcão, sob o acicate de uma gorjeta generosa, pôs de novo a música a tocar e a acompanhá-la o globo anacrónico, como nos tempos em que usávamos patilhas imitadas do John Travolta.

Saí sem me despedir. Não quis interromper-te a química. Tu feliz, eu sabendo que a coisa mais triste do mundo é essa impotência voluntária, quando um tipo começa a cair e não consegue nem intenta reerguer-se («Assistir a uma trampa destas pá, que tristeza!» ), quando um tipo percebe que a coisa mais cruel é ter de olhar-se olhos nos olhos («Olha-me para ele agora…») e não suportar o que vê…

Saí. Farrapos de nevoeiro voavam sobre os telhados. A noite pareceu-me finalmente uma coisa concreta. Uma casa a que me recolhia sem pressa, sem palavras e sem piedade.

E não há nada mais triste do que isto. Tombar muito devagar, em câmara lenta, com a sala às escuras, à espera das palmas mecânicas, à espera que nos paguem o cachê, e digam «Muito bem», e perguntem «Amanhã à mesma hora, hem?», e nos paguem um copo, e nos façam sentir menos mal, um pouco menos mal, um pouco acima da linha do alcatrão sujo e quebrado.

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