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para a Salomé
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Numa das ruinhas da vila, à esquina com a marginal, mal se dá conta de uma casa pequena de paredes caiadas e rebordos de granito. Deve ter sido noutro tempo o lar segundo de alguma família de bem, como o testemunham o jardim com jacarandás e uma estrutura em forma de estufa, de que sobram hoje troncos e partes metálicas retorcidas: percebe-se facilmente ter sido esse espaço amplo outrora e hoje muito mutilado por força dos edifícios espalhafatosos que cresceram no lugar dos canteiros e das latadas.
Os veraneantes atravessam uma avenida e depois arruamentos mais estreitos e por fim esta esquina silenciosa, abrindo para o mar. Nenhuma alma há de ter posto a sua força contra a cancela enferrujada nos últimos dez anos, de tal modo o óxido tingiu a primeira laje do passeio e se disseminou por todo o corpo desta vivendazinha.
Um escritor, que nesta localidade faz a sua vilegiatura, observou já o curioso limoeiro bravio que na parte mais esconsa do quintal oferece ainda, fordo, o seu fruto avantajado e solar.
Numa das janelas sobranceiras ao lancil, que o destino ou os antigos donos não puderam ocultar, surpreendeu o ocioso forasteiro, sombreada por uma velha cortina de ponto aberto, uma pilha colorida de livros com encadernações de pele e letras de ouro: D. Quixote em dois tomos, O Vermelho e o Negro, Assim Falava Zaratustra, Werther, Otelo, Quo Vadis, Viagens na Minha Terra, O Tartatufo seguido de O Doente Imaginário, O Príncipe e o Pobre, Eugénia Grandet. Outros estariam sobrepostos, mas já a piedosa curiosidade alheia os não atingia por culpa do plástico sórdido da persiana.
O escritor, que manteremos no anonimato, sentiu como um golpe de punhal este abandono particular.
Que uma geração esqueça todo o investimento das gerações precedentes é algo a que obriga a lei absoluta da modernidade. Ainda assim, com que falta de amor. E de escrúpulos!
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Apúlia, 11.08.2025
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