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O disco do esmeril continua a girar um bom bocado. É esse som que enche a oficina quando o velho a abandona por alguns instantes e vem para a mesa de pinho no pequeno átrio pregar as tachas. Lá dentro deixa tudo à mão de semear e de colher, a porta escancarada, a lampadazinha acesa, o garrafão de vinho posto entre as coisas frescas do chão.
Não há outra loja de sapateiro na aldeia, nem nas aldeias vizinhas. O velho Faustino goza do prestígio de todas os artesãos únicos, é o que faz, não se conhece da sua pessoa mais do que os gestos rápidos, decididos, vigorosos, com que cose as peles, cola ou substitui um tacão partido ou lixa e arranja as chancas dos lavradores. Toda a sua existência cabe neste casebre onde se encafua longas horas do dia, casebre no interior do qual se alinham meia dúzia de estantes carregadas de botas, sapatos, chinelos, galochas, calçado novo, velho, assim-assim, saído recentemente das suas mãos, não reclamado, esquecido, bonito, feio, elegante, miserável, consertado, sem conserto.
No verão põe uma pequena mesa de pinho à sombra de um cipreste e é aí que se queda, sentado num mocho, duas tachas presas aos lábios, as mãos trabalhando de cor na peça, sem a ajuda dos olhos que só de longe a longe voltam ao ofício, tão sôfregas estão ao movimento geral da ruinha e da praça em baixo e das outras ruinhas mais ao fundo. Dentro, a banca é caótica. Nela, além dos tornos e das serras, atropelam-se formas e formões, martelos e latas repletas de pequenos pregos, facas e tesouras, alicates e torqueses, sovelas e tiras de couro, rolos de linha, colas e pincéis, espátulas, lixas e toda uma horda de utensílios com puas, lâminas, cerdas e cabeças metálicas. O velho Faustino parece não dar pela sua presença, mas no momento certo sabe dar-lhes uso. Nunca com maior prazer do que quando acompanhado por algum outro velho, intrigado por alguma notícia, espevitado pelo lance dramático de uma coscuvilhice nova.
– Então, a tua mulher zangou-se com a irmã, Martins?
– Olha, Faustino. A minha cunhada é douda varrida. Ninguém a atura, nem o homem!
– Oh, que diabo. Não me digas…
O Martins dispõe-se a contar e o outro a ouvir, mas os dedos do sapateiro sentem um alto, avaliam uma desconformidade, determinam uma urgência. Lá precisa ele de reentrar na loja e de pedalar no rebolo. A pedra do esmeril principia a desbastar a língua de uma fivela, que o Faustino quer direita e no tamanho certo, não seja ela para umas sandálias em cabedal puro, de encomenda. As chispas e o ruído calam temporariamente o Martins, mas o sapateiro reaparece, o disco do esmeril continua a gemer uns instantes no escuro e a conversa é reatada.
– O Senhor nos dê juizinho até à hora da nossa morte, ó Faustino!
– Mas então?
– A minha cunhada de há uns meses para cá vem a minha casa todos os dias. Chateia. Pela-se por tudo, pede à minha Isabel um cabo de cebolas, um chapéu de palha, um vaso de manjericão, um casaco, um litro de azeite. É uma chorona, Faustino. Aborrece…
– A tua Isabel que a mande à bardamerda, Martins!
– A minha mulher tem a paciência de uma santa, mas a irmã azucrina. Deu, imagina tu, em querer-lhe uma panela…
– Uma panela?
As mãos habilidosas do sapateiro não querem acreditar que uma panela possa estar na origem de um cisma familiar. Interrompem-se com grande admiração, para logo de seguida procurarem uns desperdícios imundos que besuntam com graxa e correm no couro.
– Uma panela, das de cobre que tempos dependuradas lá na cozinha…
– A sua cunhada, desculpa-me ó Martins, é mas é apanhada!
– Tanto lha pediu que a Isabel perdeu a cabeça e agora não se falam.
A sapataria do Faustino fica numa ruinha de casas baixas, de alvenaria rústica. Não se pode dizer que a não visitem fregueses mais importados em aliviar os padecimentos da alma do que em cuidar das necessidades dos pés. Também, por isso, não se pode negar ao velho o talento de um confessor, ou de um médico, ou de um barbeiro.
– Mas ó homem, diz-me cá: o que fez a tua mulher? Deu ou não a panela à irmã?
– Não deu.
– Ai não?
– Deu-lhe foi uma desanca.
Fascina que de uns pedaços de pele, de umas tabuinhas de madeira, de umas aparas de latam nasçam umas alparcas tão bonitas. O Martins esteve para lho confessar, sabe que o mestre sapateiro é um daqueles homens raros que nos conquistam, mas empolga-o o resto da sua história, quer finalizar o que começou.
– Imagino, Martins. A Isabel deve ter-lhe dito das boas!
– Pois disse! Virou-se para ela, e não leves a mal as palavras, que são dela e não são minhas: olha, Lucinda, tu és uma pedincha. Se cobiçasses a piça dos homens como cobiças as minhas coisas, eras a mulher mais puta da freguesia!
O velho gargalha. O riso é, com o martelar e o chiar do esmeril, parte da casa, enche-a, às vezes transborda, ecoa no pátio, contorna o cedro, estruge nas paredes, faz levantar as cabeças. Todos sabem que o riso do Faustino é o prémio da sua arte. O riso – sem menosprezo pelas demais agudezas do espírito e das perícias manuais do homem – é um sinal de génio.
Muitas vezes, felizmente, do demónio também!
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