O TÚMULO

Foto: Gianluca Morello

Da janela e portas da sua oficina, Andreas Agrafiotis, artesão, professor, escultor, septuagenário, avista uma das faces das montanhas Zas. O sol refulge nos cumes e pedreiras arduamente estriadas e escarvadas de mármore, marga, calcário, produzindo um efeito de sede a que ele se habituou há muito. Em Naxos, os minerais coexistem com algumas espécies de árvores características da Cíclades. Não é impossível que na linha descendente dos vales se sucedam pinheiros, oliveiras e até abetos azuis. Mas a mancha de floresta é escassa, não serve senão para acentuar a sensação de que a ilha é uma gigantesca bossa lítica branquejando o ano inteiro.

Durante praticamente toda a sua existência, Agrafiotis perscrutou a melhor pedra das melhores marmoreiras. Viu separar da rocha-mãe blocos imponentes que camiões e carretas puxadas por animais transportaram até ao seu local de trabalho. Depois a sua cabeça, as suas mãos, os seus olhos ávidos e exigentes viram surgir da matéria informe estátuas de numes (Zeus, Poseidon, Afrodite, Atena), de semideuses (Hércules, Jasão, Prometeu), de heroínas trágicas (Medeia, Electra, Jocasta), de homens e mulheres comuns, de colunas, de bustos, de ornamentos eclesiásticos, de criaturas fabulosas, nascidas da tradição quimérica, que o estado grego muitas vezes subsidiou, comprou e fez migrar para os templos arruinados e espoliados pelo tempo e pelos povos estrangeiros.

Agora, perto dos oitenta anos, Andreas tem uma obsessão: criar o seu próprio túmulo de mármore. Imagina-o como uma cápsula para a eternidade, uma grande bolota de lajes finamente ligadas entre si, desenhadas com o escopro, contendo um punhado de versos da Ilíada (os versos 146 a 149 do Canto VI, os mais belos de todo o poema, os mais belos de toda a história de literatura), assinalando na terra a sua passagem pelo mundo dos vivos. 

Mas fascina-o igualmente a ideia de um dia ser encerrado no âmago selvagem de uma destas colinas rochosas, à maneira dos imperadores chineses que desistiram de construir desastrosas pirâmides de argamassa para se emparedarem no solo humilde das montanhas sagradas. Fascina-o desde sempre o mito daquela que o rei Creonte fez encerrar viva numa garganta pedregosa. Naxos, como o lugar sombrio de castigo de Antígona – sepulcro e, simultaneamente, ventre materno – é um cemitério natural e um berço cósmico. Aqui morreram e nasceram forças que vão para além do entendimento humano.

Todas as tardes, um pouco antes do pôr do sol, o velho escultor percorre os caminhos ínvios de Apollonas, de Koronos, de Skado, de Apiranthos, de Stavros. Pretende que a última réstia de sol lhe marque como um traço de grés, o local onde deve principiar a sua derradeira obra. Há de construí-la em segredo e em segredo há sepultar-se nela, como se sepulta o grito do mar no pequeno promontório da praia de Azalas, em Montsouna.

Nenhum sonho da sua vida foi tão belo, tão ousado ou tão legítimo: abrir a cavidade onde há de o seu corpo acamar, esculpir o silêncio, polir o invólucro final onde não possa existir qualquer diferença entre os seus ossos e a pedra. Imagina que precisará de pelo menos vinte anos para o concluir. Mas nada é impossível na vida de um homem. Nada é impossível na ilha de Naxos. 

Andreas Agrafiotis gostaria (para nos servirmos da expressão homérica, tanto do seu agrado) que a escuridão lhe cobrisse os olhos no preciso instante em que terminasse a sua tarefa, em que, morrendo, nascesse.

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