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Esperava amar e ser amado. Porém, ela deixou-o e no lugar do amor ficou o ressentimento.
Deu-se conta, no início, de que o irritavam os risinhos dos jovens casais na rua, o estalar dos beijos entre sucções bruscas (por causa da pastilha elástica), o efeito moroso de certas interjeições demasiado teatrais.
Depois tornaram-se-lhe abomináveis os operários da construção civil, rebarbando eternamente pontas metálicas. E os táxis buzinando a toda a hora e em toda a parte. E as sereias das ambulâncias. E os apitos dos elevadores e dos micro-ondas. Com o tempo, o seu ódio estendeu-se aos latidos dos cães à noite, ao miar imaginado do persa que ela levou depois do divórcio, à algazarra das crianças no recreio ou no parque defronte o seu apartamentozinho. Não tolerava os estalidos de madeira, o zumbir do frigorífico, o súbito aumento de decibéis no intervalo dos programas televisivos, o timbre metálico de certas vozes que o chamavam, interpelavam, interrogavam.
A misofonia e crescente misantropia eram nomes, uma explicação. Nada mais.
Nos sonhos, a cena do crime e o cadáver profanado, desfeito, transportado com empenho e ardil até ao alto do paredão e trinta e três vezes lançado à albufeira em trinta e três meticulosos e sinistros sacos herméticos, todo esse empenho vinha à boca e ele falava. Os pesadelos dobravam-no, enlouqueciam-no. Eram como terramotos que retorcem e amesquinham o aço.
Esse o seu castigo.
Ninguém suporta que lhe digam, especialmente nos sonhos, que até a vida indigna de um assassino o é por alguma razão. Que até para ela há um sentido, uma cura, um perdão.
Gosto de conversar contigo. Gosto da tua voz, que é meiga e cheia. Gosto dos teus olhos, caindo e recaindo sobre os meus, tão devagar como duas pedras em câmara lenta. Gosto das tuas palavras. Do teu perfume. Do modo como apanhas o cabelo e penteias as farripas tresmalhadas. Às vezes nem te oiço. Sinto apenas a percussão doce das frases a massajar-me a cabeça. E (nunca to disse) apetece-me mergulhar no teu colo, deixar que me embales, adormecer a teu lado.
A vida é tão igual a si própria. Somos todos tão escravos dela! Tão incapazes de sentir. Como se pudéssemos ter dentro de nós cabos e fios e fusíveis, em vez de sentimentos. E, por isso, um dia disse isto.
– Um dia acabamos morrendo sem termos sequer começado a viver!
E tu sorriste. Era um dia de final de outono. E tu passaste a mão pelos cabelos. Era uma daquelas tardes em que o nevoeiro parece chegar de longe e atravessar a janela e engolir tudo em nós e ao redor de nós. E tu disseste.
– Acho que tens andado distraído, Xavier! Tens mesmo de abrir os olhos…
E o nevoeiro vinha de longe, de fora, do fundo. Passava pela janela como um exército marchando, como uma boca devorando a paisagem, como um buraco absorvendo os pensamentos. E eu senti-me tão mole, tão aluído, tão triste que não encontrei palavras e foram elas que se disseram sozinhas.
– Não ando distraído. Já não consigo é distrair-me. Já vivi tudo. Já sei tudo. Já adivinho tudo. A vida é a porra de uma repetição! Nem um milagre me podia salvar agora.
E tu sorriste. E o teu sorriso era um astro frio, alumiando a anos-luz. Tocaste-me o rosto, deixaste os olhos cair, soar no imo do poço, afagaste-me o cabelo, meneaste a cabeça, disseste.
– Estás doente. Precisas de curar-te. Essa tristeza é uma sombra maldita, a pesar toneladas de um peso morto e sem justificação. És tão bonito, pá! E tão infeliz!
E eu sinto. Não tenho medo de sentir. De experimentar de uma ponta à outra os impulsos elétricos do medo e da surpresa e da desilusão. Nada receio. É como uma vertigem. É como fechar os olhos e ir. Já vivi tanto. E, no entanto, os teus olhos poisaram em mim e puxaram-me. Como um magnetismo sem explicação, eles alavancaram os meus olhos, fizeram-me agarrar uma réstia de luz e caminhar.
– Gosto de conversar contigo!
E o teu abraço é desde então uma casa. Nunca na vida tive tanto medo. O teu abraço apertado faz-me sentir desde então uma criança renascente. E eu sinto uma mistura de tortura e de prazer quando me tocas e o teu perfume e a tua voz e os teus olhos aquecem as minhas tardes enevoadas.
– Tens de abrir esses olhinhos!
E dou comigo a pensar nos teus cabelos. E a ouvir pela primeira vez as tuas palavras antigas. E a sair de um túnel terrível. E a escutar outra vez o silêncio das ervas e o rumor das coisas que havia esquecido nos meus olhos. E dou pela paisagem descobrindo-se, desembaciando-se, desimpedindo-se. E talvez me apeteça dizer-te palavras novas, enxutas, belas como grãos de cereal e puras como o toque das unhas na pele, como as tuas mãos finas e firmes.
– Não ando distraído!
E tu, abraçando-me, acalentando-me como um sol inesperadamente crescido entre as nuvens, tu beijando-me como um milagre, tu sorrindo como um vidro amplo e sem mácula, completas a última frase. Que trago comigo. Que levarei comigo.