Questões sobre o riso e sobre o humor

Fotografia de Daniel Nebreda
Fotografia de Daniel Nebreda

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– Há precisamente cinco anos dei uma gargalhada – disse assim de repente, sem mais nem quê, o meu sócio.

– Eu há sete que o não faço – atalhou o meu outro sócio. – Sete anos, cinco meses e vinte quatro dias. Quase sete anos e meio!

Frases como estas aborrecem-me. Nunca sei o que fiz no dia anterior, sucede-me frequentemente o jamais-vu e esqueço-me de datas importantes. O meu gato, por exemplo, completou o terceiro aniversário há mais de 365 dias e só disso me dei conta na passada semana.

Sou péssimo de memória. Frases daquele jaez põem-me os nervos a bulir. Como é possível a alguém recordar-se do dia exato em que tremelicou de riso? Desconfio que os meus sócios se unam às vezes para me prejudicar, também que se prejudiquem muitas vezes, sem se unirem um ao outro ou a mim, que dificilmente me uno a quem quer que seja.

Gustavo, o meu parceiro número um, objetou.

– É muito fácil e facílimo. Dei essa gargalhada por volta das dez e um quarto no dia dezasseis de julho de mil novecentos e oitenta e oito, quando da rua dos Hoteleiros me dirigia para a do Arsenal, no cruzamento com a rua da Boavista. Vi a minha ex-mulher a cambalear de bêbeda. Penso que o amante se tinha aborrecido dela. É ou não engraçadíssimo apanhar a ex meio despenteada, seminua, aos esses, hem?

Venâncio, o número dois, confiscou-me a palavra.

– Ora. Eu não vejo qualquer problema em trazer na cabeça uma lembrança dessas. É uma como as outras. Um tipo fixa as coisas numa ordem de importância. Se o teu inimigo te quer matar com uma bomba e o embrulho lhe explode nas mãos antes do envio, tu ris-te com gosto, ou não? E há uma lápide num cemitério à espera que lhe deponhas ao pé uma rosasita. Assim nunca te foge o sentido das coisas…

Estas conversas a três lá no escritório dão-me arrepios.

Não posso afirmar que saiba a data recente em que casquinei, esgargalhei, ri a bandeiras despregadas. Ou o secreto e escarninho motivo por que o fiz. Sou daquelas pequenas almas que escancaram a boca a humor fácil de uma anedota inocente ou com as facécias do gato caseiro que nos surripia esforçadamente um bocado de carne do prato.

Não consigo escarnecer, confesso, da voz roufenha do Venâncio, nem das carranhas que o número um conserva, infantilmente e amiúde, nas fossas nasais. Suponho que os meus sócios saibam mais do que pode o riso do que eu.

Não atino com as circunstâncias exatas da minha última gargalhada. Como é possível?

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A última vez

Edd Carlile
Fotografia de Edd Carlile

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para a Ângela, in memoriam

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Entrei no hospital dominado pela vertigem da fraqueza, por imagens incontáveis, em ebulição, incapazes de fabricar entre si um único pensamento. Suponho que fiz um esforço, que soube manter-me firme. O maxilar dorido. O coração acelerando. As mãos subtil, sub-repticiamente suando. Disseram-me «Coragem, João». Nos corredores as pessoas choravam. Disseram «Aqui é sempre assim». Uma covardia incomensurável atravessando-se-me nas pernas, nos ombros, nos olhos. Ainda a tempo de voltar para trás, disseram «Ela está tão fraca, João». Depois o espaço ficou curto, muito curto, uma nesga, um braço, uma unha. Depois, como quem num mergulho de apneia, respirei fundo. Depois tu. Deitada, olhos fundos, sumida, lívida, transparente, como uma lua minguante. Que tristeza tão grande.

‒ Estou no fim, João!

A doença. Essa doença maldita. Nem um ano desde que me contaste.

‒ Arrumada, João!

Os meus dedos tocaram os teus dedos magros. Os meus braços apertaram o teu corpo cadavérico. Precisei de aguentar o primeiro embate, de suportar as cócegas no nariz, de descobrir as palavras certas, de absorver oxigénio suficiente. Paulatino, um arremedo de outrora. Tão perto e tão remotos os dias em que discutíamos o Benfica, os livros, os lances da vida…

‒ Estás igual. Estás a mesma de sempre… A mesma, ouviste?

‒ Posso tirar o cavalinho da chuva…

A doença. Essa doença maldita. Faláramos dela. Sabias o que aí vinha, sabias de cor cada exame médico, cada reação, cada porção de ti que se apagaria em cada sessão de químio, cada dia de inferno que se seguiria a cada dia de inferno. Sabias como tudo seria lento e veloz, inadiável e doloroso, fatal e tristíssimo.

‒ Posso tirar o cavalinho da chuva…

Tinha-te prometido um livro novo, vários livros novos. Havia uma próxima vez para as francesinhas. E outra para o teatro. E tantas conversas para pôr em dia sobre tantas coisas irremediavelmente banais e perdidas, como a poesia e o amor e a tua paixão pela fotografia. Tinha-te imaginado com um homem decente, casada, com filhos, feliz.

‒ Ainda tens tanto para viver, ouviste?

As palavras batiam em ti como num cântaro vazio. Cavas. Grotescas. Inúteis. Batiam em ti, mesmo se procurasse (e eu procurei tanto) que não batessem. Batiam em ti de um modo absurdo, como quando as palavras batem e queríamos apenas que acariciassem, que anestesiassem, que mentissem, que mentissem com o seu láudano piedoso. Elas batiam. E eu em pânico, ao dar-me conta que queria dizer «Como pudeste tornar-te tão frágil?». Assustado com o poder sussurrar «Como pôde isto ter acontecido?». Mordendo a língua para calar todas as lágrimas que borbulhavam desde o sopé da garganta. «Como?», «Como?», «Como?».

‒ Esta doença é tramada…

E sorriste. Sorriste do modo como sorrias sempre às verdades. Como quando me disseste uma vez que «Os lençóis são o lugar onde mais se mente», porque «Enquanto o diabo esfrega um olho já o fizemos a um amante, a uma criança ou a um doente». Sorriste do modo como sorrias sempre ao desencanto e à fatalidade das coisas. Do modo como sorrias no fim de me contares sobre as tuas viagens, sobre os teus sonhos antigos, sobre um gasto supérfluo. Sorriste do modo como quando sorrias para dentro, do modo como sorrias aos pensamentos e imagens desencontradas da memória e uma profunda tolerância descia sobre  ti e te aceitavas e sabias que «Tudo passa».

‒ Perdemos tanto tempo com coisas que não prestam… Olha, por exemplo, nunca disse à minha mãe «Mãe, eu amo-te!». Porquê, João?

Porque o tempo nos confunde.

‒ Porque não dizemos às pessoas que as amamos, João?

Porque o tempo nos distrai.

‒ E depois o tempo falta-nos…

Porque nos julgamos eternos. Porque nunca se está preparado para outra coisa que não o agora e para sempre. Porque.

‒ Posso tirar o cavalinho da chuva, João.

E o nariz tremeu. Cócegas, prurido, uma careta imensa. Essa doença maldita. A magreza insuportável do corpo, o crânio despido, o respirar roufenho dos pulmões, as intermitências da razão.  Sabias o que aí vinha. Sabias de cor cada passo de cada passo.

‒ E depois o tempo falta-nos…

Os olhos exorbitados e tristes, tristes e exorbitados como todos os olhos que se despedem. Pequenas frases arfantes, truncadas, cheias de nostalgia, penduradas à boca como um resto.

‒ Estou no fim, João!

Essa doença que continua a doer. Mesmo depois do depois. Mesmo depois.

‒ Estás igual. Estás a mesma de sempre… A mesma, ouviste?

E tu sorriste. Daquele modo como sorrias sempre. Com infinita tolerância, como quem sabe que nunca se regressa de um encontro com a morte. Como quem sabe que ela está à espera, a uma nesga, a um braço, a uma unha. Como quem sabe que o tempo confunde, ainda agora e já. Como quem nos vê pelos nossos olhos, uma porta que deixámos de reconhecer,  o elevador, o parcómetro, as ruas, o céu crepuscular…

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