O Moscardo e Outras Histórias

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Leitor apaixonado dos contos de Poe, Machado de Assis, Tchékov, Jorge Luis Borges, István Örkény, Stig Dagerman ou Tonino Guerra, João Ricardo Lopes escreveu entre 2015 e 2018 um conjunto de mais de uma centena de pequenas narrativas, das quais selecionou 86 que incluiu no livro O Moscardo e Outras Histórias (edição de autor).

Paula Morais, no Posfácio, define a obra como um conjunto de «narrativas problematizadoras do real», explicando que «estes contos presenteiam o leitor com uma visão crítica e reflexiva da existência humana, como se fossem fotogramas, quadros, telas vivas que o instigam a uma autorreflexão contínua, a indagar e a exorcizar o seu próprio quotidiano». A mesma ensaísta nota que «Os contos funcionam como um imenso painel constituído por diversos azulejos onde se recriam situações do mundo hodierno […] “uma casa com muitas janelas” que confluem para um “pátio” repleto de pequenos “flagrantes” da vida humana repleta de contradições e incertezas. Inseridas no “mundo líquido” da modernidade, […] liquidez advinda da inexistência de metanarrativas legitimadoras, da contínua presença do multiperspetivismo, da ausência de valores e padrões seguros, as personagens […] são forçadas a aceitar o desencanto e a desilusão. Nem mesmo a escrita sai imune a esta contínua reflexão.»

Sara Freitas observa que não raro «O autor interage com o leitor conduzindo-o por caminhos obscuros, satíricos, alertando-o para um mundo coberto de diferenças, indiferenças, de injustiças, de contradições», sendo que «Ao leitor exige-se uma redobrada atenção [para] acompanhar o autor nas reflexões, no destrinçar do sentido, na descoberta do enigma, no desvendar, ou mesmo, no continuar de cada conto.»

O Moscardo e Outras Histórias, que apresenta como epígrafe palavras de Jorge Luis Borges («Ya a nadie le importan los hechos. Son meros puntos de partida para la invención y para el razonamiento»), é uma obra caleidoscópica, com inúmeras alusões, distorções, comentários implícitos e uma teia de males-entendidos, onde, como assinala Paula Morais «o valor das palavras amplia o zumbido do moscardo já que, afinal, a originalidade de um lapidador de palavras não reside na capacidade para narrar o não dito, mas sim na habilidade para reelaborar o já dito, o já acontecido».

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KAFKA
Depois de ter lido mais uma vez A Transformação de Kafka, o poeta e entomófilo Tomas Tranströmer pôs-se a pensar: se por absurdo lhe sucedesse o mesmo que a Gregor Samsa, em que espécie de inseto reencarnaria?
A mulher dá uma risada.
‒ Cá para mim, darias uma excelente borboleta, Tomas! Como as que vimos no oriente. Uma Ornithoptera alexandrae…
Mas Monika pensa que o marido poderia ser também um besouro-joia sarapintado das Filipinas, uma libelulazinha do Canadá ou uma abelha mantuana (como as que Virgílio cantou).
A ilha de Runmarö é rica em silêncio e pegadas de corço, igualmente em zumbidos e animaizinhos bucólicos. O poeta Tomas Tranströmer é discreto e humilde. Na floresta, todo o seu fascínio vai para os vermes e criaturas rastejantes. Escaravelhos, lucanos, gorgulhos, vaga-lumes são demasiado vistosos. Tomas prefere a formiga.
‒ Oh, Tomas! Uma formiga?
Sim. Tomas está certo de que Kafka o transformaria numa formiga. Imagina-se na longa série das suas semelhantes, carregando o mesmo fardo com humildade e sem ânsias de pedestal, uma entre milhões. Numa formiga, sem dúvida!
Um biógrafo seu ficaria embevecido. Nós, que admiramos um tal poeta, também ficamos embevecidos.

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Ano de Edição: 2018 | Edição de Autor | Páginas: 272