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Em 2007, e após anos de colaboração com vários jornais (nomeadamente o Jornal Universitário do Porto e o Correio de Fafe), João Ricardo Lopes reuniu um conjunto de crónicas, já publicadas na imprensa, no livro Dos Maus e Bons Pecados.
Sem nunca abandonar a escrita poética, e muito próximo da ficção, o escritor aborda nas 53 composições assuntos do quotidiano, da sua biografia, da vida comunitária na aldeia natal, das peripécias do mundo, mesclando o tom humorístico e o pendor introspetivo a que nos habituara já na poesia.
Cláudio Lima nota justamente que «No que respeita a crónicas ficcionadas, elas não são muitas nem, em boa verdade, ficcionadas em absoluto. Direi antes que um filete de ficção percorre transversalmente muitas delas, mesmo algumas em que JRL mais se expõe como pessoa, mais se mostra vulnerável às agressões do quotidiano ou aos fluidos delicodoces de uma boa presença feminina. Curioso notar que em duas delas — «Devo ter envelhecido» (pg. 21) e «Esta coisa sem nome de nos pormos a olhar para o infinito» (pg. 137) — numa espécie de exercício de travestização, o autor põe-se na pele da mulher para, em obsessivos monólogos, lamentar a solidão, a perda do encanto físico, a erosão do desejo, a fragilidade do relacionamento amoroso.»
Artur Ferreira Coimbra insiste que «a mão que escreve Dos Maus e Bons Pecados é a mão do poeta, que ali se denuncia, incontornavelmente», observando que «São imensos os temas e problemas suscitados ao longo de mais de 150 páginas de crónicas, para saciar a fome de escrever […] Desde a evocação do poeta Santiago Rui, que se perdera na aridez dos dias; à crónica da sexta-feira santa; à magia dos pequenos gestos, das coisas belas e naturais; ao conceito de felicidade; aos livros da Biblioteca Municipal e aos que João Ricardo começou a publicar; à exaltação dos amigos, “as preciosas âncoras que temos neste mundo”, ao circo, de que nunca gostou; à coisa pavorosa que é chegar-se aos doze anos; às touradas que detesta; ao aniversário; ao fado de que aprendeu a gostar, com Carlos Paredes; ao super-homem que é o professor, profissão que adora, “sonhador até se acabar de vez o pavio dos sonhos”; à epopeia que é a segunda-feira; à Foz, como um dos lugares que por natureza são eternos; a Janeiro ou a Março, como meses simbólicos; aos gatos, de que admira a compleição física, o sentido de liberdade, até a indiferença com que nos olham e nos manipulam; aos moleskines […] de que diz ser um maníaco consumidor; aos 30 anos, “e que se foda! Pertenço a este dia, hoje não vou trabalhar”, como exclama a páginas 126; ao S. João, um ritual que anualmente se repete; às férias; aos animais de estimação, cujo abandono lastima; à crónica do Latim que lhe escapou e, enfim, à Musa (Romana) que encerra, e incendeia, a sua escrita. Eis o cronista que manifesta o seu enleado amor poético ao pai e à mãe, bem como às irmãs Elsa, Marta e Catarina. A sua crónica «Mãe» é simplesmente encantadora. […] Dos Maus e Bons Pecados é um livro que sinaliza a maturidade literária do seu autor.»
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MÃE
Um dia será preciso repetir muitas vezes estas palavras para não esquecê-las. Serei então muito velho, os meus filhos terão os seus filhos, a pele ter-se-á tingido de manchas e crateras, as unhas amarelecido, o cabelo rareado e ganho nas farripas uma tonalidade de cansaço.
Serei então muito velho, limparei as lágrimas ao canto dos olhos com um lenço cujo xadrez desmaiou, terei nos pés uns chinelos de quarto. Pouco quererei acrescentar ao mundo, falarão para mim como se fala para uma criança, embora sem a ternura sincera que se tem com as crianças, dir-me-ão «Pai, coma isto!», «Avô, isso faz-lhe mal!», serei então muito velho, as mãos tremer-me-ão sem que possa dominá-las, o olhar esquecer-se-á do que vê, ou talvez veja e já não olhe.
Um dia, sem que ninguém me oiça no limbo dos dias que me restarem, hei-de repetir estas palavras, repeti-las para ti, mãe: é de ti que eu gosto mais, foi por ti que fui sempre tão diferente de ti, é em ti que eu penso, mesmo agora que sou velho, mesmo depois de todos estes anos que sorrateiros se atravessaram no corpo, mesmo já não sabendo distinguir nos nevoeiros da memória tantos rostos e factos e dias e afectos.
Se pudesse era para ti que gastava as últimas forças destes dedos rebeldes. Fazia-te um desenho e punha nele as flores mais difíceis, as hortênsias e gladíolos, as sardinheiras e os gerânios, desenhava para ti um menino muito frágil e uma mãe grande como o sol, e punha-os de mãos dadas, e por cima deles o azul mais bonito dos meus lápis de cor, e construía uma casa com as telhas muito direitas, como ensinou a professora. Depois escrevia, mãe, gosto muito de ti, quero que sintas orgulho em mim.
Um dia, sem que ninguém me oiça no limbo dos dias que me restarem, hei de lembrar-me deste dia e destas palavras, saberei que fui mimado, saberei que fúteis coisas enegreceram às vezes o azul tão bonito daquele céu do desenho. E pedir-te-ei perdão, mãe, por ter sido tão diferente de ti, por ter esquecido que és a lembrança mais antiga, a mais pura, a mais valiosa.
Estou longe, estou apenas distante desse dia. Hoje sou quem escreve estas linhas, hoje sei que um dia serei tão velho que talvez me esqueça de te dizer, mãe, gosto de ti, quero que sintas orgulho em mim. Estou longe, oiço repetidamente aquela canção do Sérgio Godinho, «Espalhem a notícia». Quis escrever-te um poema, desenhar um menino, mas não pude, não soube, perdoa, mãe, perdoa.
Um dia serei apenas velho. Os anos sorrateiros ter-se-ão atravessado no corpo. Sem que ninguém me oiça no limbo dos dias, hei-de repeti-lo: mãe, és a flor mais antiga e a mais pura, a mais sábia. Se pudesse era para ti que gastava as últimas forças. Fazia-te um desenho, punha nele de mãos dadas um menino frágil e uma mãe grande como o sol, e por cima deles o azul, a mais bonita de todas as cores.
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Ano de Edição: 2007 | Editora: Opera Omnia | Páginas: 158
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