Absurdos

Fotografia de Hans-Wolfgang Hawerkamp
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Um dos estudantes da plateia parece querer contrariá-la, redarguir que a literatura e o cinema e as artes em geral estão sempre um passo à frente, ou até dois ou três passos, provando que a imaginação humana é (além de criativa) pioneira, muitas vezes terrivelmente prenunciadora.

A cada frase do rapaz acena com bonomia, notando-se a subtil contração da pele na zona dos olhos, como sempre acontece quando se dilatam as maçãs do rosto. Não usasse a máscara, vê-la-íamos sorrir, saberíamos que tudo quanto o estudante disse (limitamo-nos aqui ao essencial) já lhe ocorrera antes, possivelmente já o havia pensado, sopesado, escutado noutras palestras (mais preenchidas de público e sem o distanciamento entre cadeiras que o vírus atual impõe a todos os atos públicos), já nelas não encontra qualquer novidade, já só aguarda que nessa questão (como noutras do foro da teoria literária), avance alguém da assistência para discutir o ponto, exigir uma clarificação, insistir na ideia de que uns mais, outros nem tanto, todos os que negociamos com palavras somos júlios vernes, h. g. wells, jonathans swifts, kafkas, etc.

A professora Margot retoma a palavra. Explica que à semelhança do lojista Roberto do filme Conto Chinês de Sebastián Borensztein (ninguém no anfiteatro o conhecia) coleciona recortes de notícias, repletos de absurdidade. Que se lembre, nos últimos tempos despertaram a sua curiosidade a história do camionista norte-americano que comendo pão, batatas fritas ou pizza fica completamente embriagado, em virtude de o seu atípico e defeituoso metabolismo processar os hidratos de carbono como se de litros de cerveja se tratasse. Achou imensa piada à história de Mairead, Joeline e Bernie, as três irmãs irlandeses que deram à luz no mesmo dia (Christina, a quarta irmã, teve o filho horas mais tarde). Surpreendeu-se com o rapaz vietnamita que nasceu com dois corações e com fim de vida de Philip Kahn, o homem centenário que tendo combatido na Segunda Grande Guerra morreu um século exato depois do desaparecimento do irmão gémeo Samuel, um vitimado pela gripe espanhola com poucos meses de vida, o outro levado pela maldição do coronavírus.

A professora narrou outros casos, antigos alguns, outros mais recentes, todos tocados pela arte do absurdo que o mestre Camus tão bem trabalhou, por exemplo em O Estrangeiro.

– No dia 11 de setembro de 2001, vimos pessoas a saltar das Torres Gémeas em chamas. Não digo que um escritor, ou um realizador, ou um artista plástico não pudessem ter concebido esta imagem antes de a termos visto nas televisões. Aceito que a tivessem encontrado na sua cabeça e que num dado momento a tivessem desejado plasmar nas suas obras. Soar-lhes-ia, porém, horrorosamente imoral, como se lhes acudisse a ideia de que só um monstro a poderia aproveitar. Talvez por prudência tenham acabado por autocensurar-se.

Nesta fase todos os ouvidos a acompanhavam.

 – A realidade, contudo, não se deixa prender a padrões éticos, simplesmente porque é amoral e não refém de qualquer medo, muito menos do medo das coincidências e da falta de verosimilhança. A realidade é fresca, viva, brutal. Acontece e pronto. Nesse sentido, quando muito continuaremos sempre a preferir imitá-la, como Aristóteles predicava.

Nem toda a gente no auditório concordará com a última afirmação. A professora Margot Renouard também nem sempre concordou consigo mesma e não é de descrer que venha de novo a questionar-se sobre o tópico. Um dos grandes absurdos do pensamento humano reside precisamente no facto de todas as certezas terem deixado de o ser algures para que tivessem voltado a sê-lo no futuro, verdades demolidas com que se edificaram axiomas complexos. Sempre assim foi.

Nós também colecionamos recortes de jornal. Se para mais não servirem, prestarão para o lúdico, para o sarcástico, para o cómico desafio que as nuvens (idênticas a tudo e a nada) pedem a toda a hora.

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A peste

Fotografia de Hamze Dashtrazmi
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Meses antes chegara ela, vinda de longe, às praias de Messina, baloiçando-se nos conveses, escondendo-se nos porões, guinchando pelo meio das cordas e por entre as frinchas das tábuas. Viera de longe e tão rápida, tão mortífera, tão devastadora nas suas múltiplas feições de aniquilar que as prédicas dos frades a vestiam como uma embocadura para o inferno. Aqueles que dela tomavam conhecimento pelos macabros pormenores trazidos na boca dos almocreves, pescadores ou mercenários vindos dalguma guerra vizinha, aterrorizavam e benziam-se.

– Glorioso mártir São Sebastião, protegei-nos contra a peste, a fome e a guerra; defendei as nossas plantações e os nossos rebanhos, que são dons de Deus para o nosso bem e para o bem de todos.

Dizia-se que em certa cidade de Aragão se metiam defuntos e enfermos numa grande cova comum e que sobre eles, indistintamente, se lançara toros e lume, ardendo os corpos e as labaredas tão alto que cresciam sobre as torres da catedral.

Narrava-se que nas vilas e aldeias do reino de Nápoles se faziam fumigações e não sabendo os vivos como lidar com as pilhas de mortos, os deixavam aos cães e estes morriam a seguir, tomados pela mesma espantosa praga, pustulentos, suados, cuspindo sangue.

Contava-se que nos arredores de Paris a fome grassava e não havendo que comer, nem quem pudesse cultivar os campos devolutos, sucumbindo uns ao furor dos inchaços, outros à negra miséria que por via da mortandade se abatia sobre todos, imperava a libertinagem, a ladroagem, a completa anarquia.

Caso de estarrecer eram os abomináveis atentados ao pudor. Entregavam-se ao deboche aqueles que, deixando de recear a lei dos homens, afrontavam as tábuas de Moisés e de tudo escarneciam, rapinando riquezas, subjugando damas, infamando a moral das indefesas almas que a Providência deixara de amar e cuidar.

Nunca, desde o Egipto de Moisés, se vira na Terra tal sanha ao Anjo da Morte. Nem nos tenebrosos dias de Job. Nunca os Quatro Cavaleiros do Apocalipse haviam ceifado tantas almas em tão escasso tempo. Exceto, talvez, no dilúvio.

Mas aí foi tudo a eito, homens e bichos e ervas, tudo limpo e de uma só vez, sem as sórdidas repercussões e contágios que desta vez dilaceravam antes, durante e depois da enfermidade. Um deus escarninho, cruel e enlouquecido permitia que a sua criação chafurdasse na sua própria podridão.

Ia-se a empurrar uma carroça repleta de cadáveres e caía-se com ela e com eles, alagado em dor e espanto. Pousava-se um pano molhado na testa ardente de uma criança e ficava-se moribundo horas mais tarde. Limpava-se para uma tina a boca sanguinolenta de um velho pai ou de uma velha mãe e ficava-se saturado de bubões. Era o fim do mundo, que outra não podia ser a explicação.

O abade de Arões seguia com o pobre dedo tremente as linhas recebidas de um seu primo, monge beneditino em São Julião de Samos. A luz palidíssima do círio mal alumiava os doestosos e funestos acontecimentos narrados: o mal subira os campos da Toscânia, escalara os Alpes, viajara nos alforges e bornais dos mercadores, descera os Pirenéus, caminhara nas sacolas e sandálias dos peregrinos, chegara a Compostela e a Finisterra, às agulhas de Covadonga e também a Ourense e às Rias Baixas. Era uma questão de tempo até que se condividisse por todas as nações e reinos da terra.

Estávamos em setembro, tempo do vinho novo, tempo dos figos e das primeiras castanhas, tempo do mel e da própole, tempo das conservas e dos celeiros protegidos, tempo dos bacorinhos e das ninhadas de pintos, tempo da paz e da concórdia. Reinava em Portugal Alfonso, filho dileto de Isabel, a santa, e de D. Denis (ou Deliz, ou Dinis). Era arcebispo de Braga, Primaz das Espanhas, D. Gonçalo Pereira, filho de Gonçalo Peres Pereira e Urraca Vasques Pimentel. Era abade de Arões, Basílio Mendes, filho de Mendo Garcia e de Mécia Vaz.

– Deus Nosso Senhor, tenha piedade das nossas almas. Que o Seu dedo magnânimo e todo poderoso afaste de nós e desta terra os propalados males que aí virão. E nos guarde, como guarda a porta da casa do lobo sorrateiro, de tudo quanto se sabe e de quanto se espera. Ámen!

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Esconjuro

Fotografia de Fernando Jorge Gonçalves
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Cada vez que regressava, a jovem punha-se a murmurar uma indecifrável ladainha ao rio. Era uma coisa antiga, um esconjuro que aprendera em criança com velhos da sua terra. Se alguém dava conta desta crença, ela punha-se a divagar sobre os mistérios que correm debaixo das águas enevoadas e que de manhã cedo se erguem como almas em farrapos ao céu.

Em todo o caso, as orações em língua estrangeira pouco nos importam. Apenas na nossa fala compreendemos a angústia e o sentido das ameaças ou das alegrias que deslizam sorrateiramente das florestas aos rios e destes ao mar. Na boca dos outros que mal-entendemos tudo nos parece distante e frio, como garatujos que os antepassados escreveram nas pedras.

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O Caminho

dariosastre
Fotografia de dariosastre

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Junto à costa portuguesa, nos antiquíssimos lugares onde mar e terra disputam eternamente cada milímetro de espaço, convergem belos caminhos luminosos ao longo dos quais, especialmente nos meses de verão, avançam centenas de peregrinos rumo a Compostela.

Não deixa de surpreender-nos essa visão do caminhante, não raro sozinho, bordão em riste, mochila pesada às costas, chapéu na cabeça, botas ou ténis nos pés, misturando-se aqui e além com a multidão de banhistas que vai descendo às praias, comendo gelado, espreguiçando-se nas incontáveis esplanadas que povoam o litoral.

Karen viajou da pequena cidade de Ålbaek, no norte da Dinamarca, para o Algarve, no sul de Portugal. Depois de um curto fim de semana em casa de amigos, subiu de comboio até ao Porto, a partir de cuja catedral iniciou o percurso atlântico que lhe faltava cumprir. É uma professora de línguas, especialista em idiomas raros e dialetos ameaçados, como o feroês, o emiliano-romanholo, o valão, o frísio, o iídiche, o gaélico, o romani ou o galego.

Há muito que a impressiona a língua do noroeste peninsular. Na sua húmil opinião, galegos e portugueses deviam inteirar-se do muito que possuem em comum e reaproximar-se. Não há muito publicou um artigo onde dava conta da sua concordância com as correntes filológicas mais modernas, segundo as quais «A língua galega deu origem à portuguesa e a língua portuguesa, filha ingrata, renegou a maternidade, fingindo-se fruto de outro parto».

Para si, esta variante do Caminho é mais do que um trilho medieval. É como atravessar o cerne de uma unidade antiga que continua a existir, tanto linguística como culturalmente, visto que para si para Portugal e Galiza são as duas metades de um mesmo pulsar ancestral, céltico, romanizado, distinto do modo de ser e do modo de pensar da restante Ibéria.

Uma das maiores conquistas da vida de Karen é o prazer de calcorrear a Europa e de se inteirar das maravilhas que o tempo não apagou inteiramente.

Esta manhã, por exemplo, um pouco antes de percorrer um passadiço entre cinco magníficos moinhos de pedra, viu uma mulher idosa puxar um pesado carrinho repleto de sargaço. E presenciou um pouco adiante à chegada de coloridos pequenos barcos, que (atrelados a um trator) iam escalando uma poderosa rampa até a uma lota, onde deixaram a sua pescaria confusa, no meio de uma nuvem de gaivotas e mulheres vestidas de negro.

Karen penetra agora numa igrejinha bem no centro de uma cidade ou vila, que lhe chamou a atenção pelo misto de casas de épocas diferentes, pela pacatez e limpeza das ruas, pelo número de cafés e lojas que se seguem uns aos outros, de portas tranquilamente abertas e todas com o franciscano Antonio (a que os de cá chamam de Lisboa e em Itália Il Santo di Padova) encimando prateleiras, carregando o Menino num braço, no outro os Evangelhos, em toda a sua pessoa carregando a esperança de sucesso e de bons negócios dos comerciantes.

A igreja onde entrou é realmente minúscula. Vem aqui carimbar a sua credencial, orar num templo católico na fé luterana em que foi ensinada, confirmar as informações que constam no seu guia. Karen observa o altar-mor, ricamente adornado com motivos florais, os altares secundários (de Nossa Senhora das Dores, trespassada por sete espadas agudas, do Cristo agónico, vestido de roxo, arrastando a cruz em que há de ser supliciado), os arcos, o púlpito, o brasão com as armas de Portugal, os caixotões no cimo, a capela lateral, construída (segundo apurou) em honra do Senhor dos Mareantes e em cujo teto estão pintados os doze profetas messiânicos do Antigo Testamento.

Causa-lhe desconforto esta profusão de santos, cristos, virgens, profetas, talha dourada, azulejos e pinturas contrastante com a severidade do chão lajeado, dos bancos de madeira e mesmo com o coro-alto. Choca-lhe estas esculturas barrocas, cheias de uma dor e de uma piedade absortas e postiças. Ao menos, a estátua de São Tiago é neutra: o apóstolo segura o seu cajado, a sua cabaça, a sua concha, o seu manto, o seu chapéu dobrado com a vieira estampada, a sua escarcela, sem enfatuamento, como embalsamado no pasmo de que por sua causa venham novos e velhos de todo o mundo percorrer, como esta mulher nórdica, as insondáveis veredas que conduzem às suas relíquias, esquecendo que deveriam conduzir antes ao Altíssimo.

Na primeira fila está um homem ajoelhado. Karen afirma o olhar, surpreendida de nele não ter reparado antes. Detém-se instintivamente, receando perturbar com o som dos seus passos o momento religioso. Ninguém deve interromper o diálogo de um crente com o seu Deus. É um homem de meia-idade, não se saberá precisar-lhe a idade, talvez trinta e muitos, talvez quarenta e poucos. Não possui os traços de um cristão vulgar, pois se assemelha a um qualquer homem citadino no vestir, no corte de cabelo, nas feições secularizadas e arrogantes. Nas mãos segura um mistério, um desses fios de contas que lembram um terço mais curto ou a japamala dos budistas. É notável que não esboce qualquer movimento com os lábios ou com os olhos. Os dedos tocam as pedras, mas quase não se vê girar o objeto, denotando ausência de pressa, quem sabe uma convicta conversa com o Além.

O passaporte está carimbado. Karen deve tingi-lo duas vezes por dia até ao término da sua jornada, a duzentos e dezassete quilómetros a nor-noroeste, ou se preferirmos a cinco dias de viagem.

Abandona a igrejinha pensativa. Não lhe sai do pensamento a ideia de que rezar é um caminho interior complexo. À medida que se percebe o quanto é fútil mostrar, mais lhe parece necessário esconder. Ao longo dos séculos, milhões de peregrinos (reis e rainhas incluídos) chegaram à mesma conclusão: o Caminho de Santiago aprende-se muito devagar, não raro ensanguentando os pés, muitas vezes ferindo o orgulho.

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O padre

Young priest short-story
Fotografia de Nini Filippini

Ao sol está agora uma roupa tão branca que parece, sob a força do primeiro, uma cascata de lâmpadas acesas. O jovem padre olha-a enternecido. Gosta de contemplar a castidade onde quer que ela se encontre.

Na sua terra natal, a esta hora cheirará ao preparo das cozinhas, a alho e a azeite, a refogados e a estrugidos. Em breve rescenderá a peixe frito. No lugar onde costumava beber o seu café matinal, três esquinas adiante da velha Sé de pedra basáltica, ver-se-á o recorte da costa no Atlântico, a sombra azul das ilhas desertas, e há de misturar-se no corpo atento de quem ali um instante repousar o lume roxo dos jacarandás, a aragem das casuarinas e araucárias, o travo vestigial e amargo do café, o paladar doce do papel velho, o ruído manso dos transeuntes na Baixa e pela marina.

Mas vive agora na grande cidade. Aqui são o rio e o Cristo gigante de braços abertos que dominam a sua atenção. E essa luz forte que chega a doer. E esse rumor indecifrável de um milhão de coisas simultâneas e em conflito entre si.

O padre bem se esforça por anotar ideias, juntar frases, trazer de volta o seu dom. Depois do serviço religioso, vem até esta parte. Caminha largos minutos a pé, em absoluto silêncio, procurando absorver a paisagem. Visita os jardins, vê os telhados, escuta os barcos no meio do azul. Os novos paroquianos saúdam-no. Ele acena-lhes. A brisa de junho é macia, impregnada no aroma das tílias.

Morar aqui não é assim tão diferente de viver lá. 

E, no entanto, a poesia ainda não regressou. A sua alma verdadeiramente virá quando ela vier, somente quando ela chegar. Entristece-o saber que assim é e que assim será. É uma espécie de pecado mortal que não pode sequer confessar.

Se o fizesse, quem o absolveria?

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Mãe

Mãe
Fotografia de Tatyana Tomsickova

A rapariguinha estugou o passo. Não demoraria a chuva. Era uma tarde estranha, uma rua comprida, uma gente de rosto frio. De quando em quando, sempre que a acometia ao de leve uma suspeita, uma voz mais alta, uma ameaça, acariciava o ventre: bendito o fruto que ali devagar, desapressada, maravilhosamente, crescia.

A rapariguinha levava as golas do sobretudo erguidas, a bolsa a tiracolo, o coração aos pulos. Queria chegar a casa, descalçar os sapatos, abrigar-se no seu canto, sentir o aconchego das paredes e do silêncio, ser tocada pelo pulsar dos objetos conhecidos. Havia muito de umbilical ali: uma promessa de conforto, uma sensação de perenidade e de paz, uma resistência contra tudo e contra todos. Era dentro dela que gostava de pensar, de sonhar o futuro, de acalentar o rebento por nascer.

A rapariguinha à noite, quando ninguém a poderia escutar, dizia ao gato e ao sofá e às lâmpadas acesas, dizia como quem gostasse de ser ouvido «Este meu filho triunfará», «A este menino não faltarão o amor ou que comer», «Ninguém fará mal a esta criança, que eu não deixo».

A rapariguinha estremecia ao murmurar estas palavras. E era toda ela uma coragem, toda ela uma certeza, toda ela o encarnar de uma força desconhecida. E não chovia. E ninguém se atravessava entre si o tempo. E nenhum perigo se aproximava sequer do filho acalentado. E ela era tão franzina. E a criança tão pequena.

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Matrioscas

Jerome Zakka Bajjani
Fotografia de Jerome Zakka Bajjani

Enquanto num canal de música estrangeiro se reproduzia uma nova versão de Teardrop, Elena organizava e colava fotografias das mulheres da família. Levou anos a conseguir alguns dos espantosos retratos que agora lhe pesavam como ouro nas mãos. Nas primeiras páginas juntou os seus, em sequência anacrónica, começando na última (que um fotojornalista americano lhe tirou (meses antes da gravidez no Metropolitan) e andando sempre para trás, de viagem em viagem, de tour em tour, até aos primeiros anos na Academia de Ballet, chegando à escola secundária e à infância e aos dias de recém-nascida.

Depois vinham três fotografias da mãe Maria Lyubomirova, de um colorido desmaiado (no dia da formatura, no casamento e consigo ao colo). Seguiam-se, andando sempre para trás no tempo, retratos em tons de sépia da avó Marina, e a preto e branco da bisavó Yeva e da trisavó Ania (este último num daguerreótipo, muito ulcerado, quase sumido). Finalmente, em estampas que lembravam pagelas, encaixou as ilustrações da tetravó Oxana e da pentavó Maria Andreïevna.

Algo de visceral se transmitiu naquelas sete mulheres: o desprezo pelos homens. Todas elas foram ou ficaram divorciadas nalgum momento das suas vidas, preferindo a companhia das suas semelhantes em detrimento daqueles que ajudaram a parir as filhas. Todas elas perceberam que o mundo seria melhor se os homens caíssem do seu pedestal de ferro e as mulheres o adquirissem, por direito, devoção e catarse. Entre caloteiros, batoteiros, putanheiros, traiçoeiros, pederastas e vis, resumia-se a longa história dos machos da sua árvore genealógica.

Elena observava com carinho as faces maceradas de todas essas mulheres que a antecederam. Reparou na curiosa expressão igual que todas desenhavam no arquear das sobrancelhas, uma espécie de ar inquisitivo como quem pergunta “Quanto tempo?”

A bailarina não sabia a qual das matrioscas atribuir cada um daqueles rostos e do seu próprio rosto, se à maior de todas, se à semente mais funda. A maternidade impressionava-a de um modo veemente. Era um orgulho enorme pertencer àquelas mulheres, nascidas umas das outras, ser uma mais, uma também, na cadeia infinita que as unia como uma dinastia de dor: acariciou por isso o ventre dilatado.

Chamaria à sua filha Svetlana, que na língua russa significa “luz”, “bela”, “abençoada”. Svetlana haveria de principiar (possuía já essa certeza) um outro ciclo de sete mulheres, fortes, artistas, honestas. Dentro de si, no oco do seu corpo, novas matrioscas seriam geradas, bolotas, bolotazinhas… Um dia, uma pentaneta teria a responsabilidade de continuar a linhagem…

Elena folheava o álbum, acariciava a barriga. Na televisão a música acabava. Que orgulho!

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