Pessimismos e happy ends: um guião, o filme

Sven Fennema
Fotografia de Sven Fennema

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Acordei esta manhã encavalitado num ponto de interrogação: porque somos todos tão pessimistas? Todos, sim! Ou quase todos! A esmagadora maioria dos espécimes da espécie! Pessimistas, avessos à ideia de sorte, descrentes de que o happy-end ainda se vende nos mercearias antigas e nas lojas gourmet, aziagos, autorrebaixadores, soturnos. Porquê?

Eu sou um dos tais.

A vida deu-me sempre com o rolo da massa e é caso para dizer que me habituei a caçar o meu quinhão de felicidade e a fugir através de buracos impossíveis na parede. Sou dos que acham que isto não vai passar, que isso não tem remédio, que aquilo não se resolve num passe de mágica. Sou dos que pedem por favor que não me massajem as costas com meia dúzia de palmadas amigas e o ego com duas frases exclamativas. Sou dos que pensam que a minha equipa ainda vai sofrer um golo nos cinco minutos derradeiros do jogo, que desaba num desânimo invencível se ela tem só meia hora para empatar a porcaria do jogo. É-me inato descrer na possibilidade de um golo salvador a meia hora do fim.

Eu sou dos tais, dos derrotistas, desse partido principal de homens e mulheres calejados.

E, contudo, acordei esta manhã a meditar em factos inegáveis e objetivos históricos. Escapei com menos de dois anos aos ataques da bronquite e da asma. Escapei a um atropelamento aos doze. Mais tarde a um aparatoso acidente de viação. Escapei a uma peritonite apendicular aos vinte e um. Escapei, aliás, a quase todas as ites que vêm certificadas na legislação (otites, gengivites, gastroenterites, a uma parotidite infeciosa). Escapei intacto a todas as turmas de todas as escolas por onde passei, como professor, formador, estagiário ou simples assessor pedagógico (muitos afundaram nestas selvas não cartografadas). Escapei a manobras partidárias e a habilidades políticas. Escapei aos desgostos, às perdas, às renúncias e aos vexames. Escapei até ao tribunal terrível do espelho e aos castigos da consciência, algures no alçapão da alma (ou do córtex cerebral). Ainda não morri neste país demente e corrupto!

Pessimista até dizer chega.

E, porém, esta manhã acordei rodeado por um silêncio de pássaros cantando (peço encarecidamente que saiam e batam a porta, se se põem para aí, do outro lado da parede branca, a assinalar-me paradoxos, oxímoros e nonsenses). Acordei desempregado, mas saudável. Abatido pela fadiga, mas depois de uma noite intensa de escrita. Triste, mas feliz. Porque acordei. Porque aqui estou, diante vós, confessando-me pessimista em greve, derrotista em crise, se calhar (afinal) talvez um pouco, um pouco mais, de otimista, vencedor até aqui nos palcos em que a vida e a morte debateram posições e se convenceram de que o seu jogo de xadrez deve continuar.

Acordei agarrado à bengala de uma profunda meditação.

Porque nos acontece (não raro) desatarmos a questionar tudo. E quando digo tudo, quero dizer tudo. Mais ou menos como quando decidimos arrumar umas coisas na garagem e damos por nós a remodelar a casa, a pintar as paredes, a trocar de carro. E eu acordei assim, triste, feliz, falando em voz alta para mim mesmo em silêncio, perguntando, respondendo, questionando.

Que raio! Porque não levantar o traseiro e fazer alguma das coisas que sempre quisemos ter feito? Porque não meter na cabeça de uma vez por todas que somos tipos fantásticos, com humor, charme, inteligência? Porque arrastar, como uma sombra, como o peso de uma maldição, a crença de que acabaremos mal, enxotados, sarnentos, lambendo as feridas? Porque não preferir a luz limpa de uma narrativa boa, com final memorável? Se os amigos não faltam? Se a cabeça, mesmo muitas vezes no meio das nuvens, continua acesa e a fervilhar de ideias? Se o coração cicatrizou de todas as punhaladas e ainda bate?

Talvez tenhamos nascidos gauches como Carlos Drummond de Andrade, mas não nascemos avessos à simpatia, nem à confiança, nem à certeza de que quem iniciou este filme (com um argumento de tal qualidade) o pode terminar melhor ainda. Deus, os deuses, as leis da Física Quântica, todas as leis do universo, parecem ter sabido sempre acomodar as coisas. Admitamo-lo: a própria existência é um acidente feliz.

Bebo, por isso, o meu café matinal com aquela sensação de que algo em mim aconteceu, de que qualquer coisa transmudou, como quando um grânulo de areia sai finalmente de dentro da peúga atormentada. De resto, o mais extraordinário dos epílogos, como num filme de mestre, é aquele sobre o qual nada sabemos, de que pouco suspeitamos, em que nos resta esperar. E este, o da vida, não duvidemos, é obra para limpar os óscares todos!

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Um povo que não ama a poesia é um povo estúpido: ponto!

Victor More
Fotografia de Victor More

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Aceitemos o facto: nós, os portugueses, estamo-nos positivamente marimbando para a poesia. Acrescentemos essa a outras famigeradas sinas: nós, os portugueses, damos o litro a escrever poesia, mas estamo-nos nas tintas para a poesia dos outros. Nós, os portugueses, como os demais povos que já foram um dia burgueses, que tiveram já na sua História a fase do ócio, da novela e dos sonhos cor-de-rosa, gostamos é da Carochinha. Matemática, ópera e poesia é que não! Que horror! São abstrações que dão trabalho (levam séculos a aprender) e tempo é coisa de que nós, os portugueses, não possuímos. Em regra, depois das séries da TVI, do futebol e das tricas políticas, nós, os portugueses, mal conseguimos olhar para a filharada, para as contas nos envelopes por abrir ou para o aviso do condomínio. 

Não custa nada aceitar. Basta aceitar! O facto é este: na terra de Fernando Pessoa, o tuga gosta é do Tony Carreira. Camões é fixe, mas desde que deixou o Benfica é só uma glória enfeitada na praça com merda de pombo. Antero de Quental, Camilo Pessanha, Jorge de Sena, Sophia, Torga são uns chatos que às vezes aparecem mesmo à frente dos nossos olhinhos, escritos nas placas toponímicas. Devem ter sido bons atores de algum Big Brother primitivo. Mas esta rapaziada, este mulherio bronzeado da TVI, este luxo de mamas de silicone e cabelo à moicano depressa faz esquecer os cotas do passado. É a lei do tempo. É tudo sempre a correr. Que o digam os portugueses, que mal começam a ler uma extensa reportagem de dois parágrafos no jornal do metro têm de se interromper, visto a saída ser na estação a seguir. O facto é esse. Aceitemo-lo. Nós, os portugueses, estamo-nos a cagar para a literatura, especialmente para a poesia. 

Pela parte que me toca, contento-me com a meia dúzia de amigos que põem gosto nas minhas publicações do Facebook. Está lá a foto. Está lá a hiperligação. Está lá a citação de qualquer coisa (lidimamente poética) que publiquei no blogue. Tudo muito limpo, muito virtual, muito apelativo. Contento-me em publicar digitalmente, porque entretanto (reza-se por aí) a crise chegou às editoras, que gostam muito dos novos, lhes admiram a coragem, lhes vaticinam prosperidade, mas que entretanto lhes fecham as portas. Menos aos novos já consagrados. Esses são vinho de outra pipa. Esses sempre vendem alguma coisita que dá para cima de quatro dígitos. Desde que escrevam de vez em quando (pode até ser; muitas vezes é) um mau romance. Só para acertar as contas, equilibrar números, projetar a imagem… 

Claro que um poeta pode ter sucesso. Imenso, aliás. Nem precisa de se esforçar por aí além. Pode atirar-se às rimas. Poder aguçar a redondilha. Pode treinar primeiro com quadras de S. João. Ganhar um prémio ajuda. Depois é só pedir um patrocínio à Junta de Freguesia, ou à Câmara, ou ao primo que tem um negócio de fazendas. E lá sai uma «Seara de Versos», umas «Folhas Avulsas», um «Parnaso Popular». Depois é vê-lo faturar! Basta impingir um exemplar a cada cliente, no fim de lhes engraxar os sapatos e limpar as mãos aos desperdícios. Basta estar à porta da igreja, no final da missa. Basta pô-lo no Talho da Dona Rosalina, ao lado dos chouriços e do salpicão! 

Também eu comi o pão que o diabo amassou para chegar às livrarias. Consegui-o a custo, engolindo sapos, entretendo-me com vigaristas, perdendo o tempo a fazer de conta que acreditava nas explicações. De toda a poesia que fiz sair em livro não lucrei até hoje um cêntimo. Exceto, claro, o que ganhei nos prémios. O país não tem como pagar a abundância de génio e de candidatos ao Dicionário da Literatura do Professor Álvaro Manuel Machado. De resto, «direitos de autor» é uma daquelas expressões que provocam asma. Tosse-se muito quando se pronunciam as três palavras. Um tipo com vinte e poucos anos imagina-se a dar autógrafos, a responder às entrevistas, a ser conhecido na rua. Só a calvície faz compreender (mais vale agora do que depois) o sujo pragmatismo do dinheiro. Faz-se perguntas à mesa do café. Volta-se a tossir muito. A conversa, como a viagem daquele agrimensor de Kafka, não leva a lado nenhum… 

Um tipo, por maior poeta e boa pessoa que seja, farta-se. Um dia diz «Puta que pariu esta merda!». Um dia chega mesmo a ameaçar «Meu grande filho da puta, quando pagas o que me deves?». Diz outras coisas afins (limito-me a citar), mas acaba por desistir. Os poetas são seres instáveis, cansam-se depressa, não sabem senão pensar em metafísica. Prova a história (e a fonologia também) que decência não rima com editor. E um poeta, ainda que vibre fundo o desespero, acaba por encontrar outra solução. 

Estamos na época da edição de autor. Estamos a voltar ao começo, ao tempo em que Camões, com Os Lusíadas manuscritos debaixo do braço, ia mendigar esmola para pagar a tipografia. Saibam os portugueses que o caché no tempo de Camões era ridículo. Não, portugueses, era tanga aquilo há pouco: Camões não foi jogador do Benfica. Não, Camões, não era o tipo do Conta-me como foi! Quer dizer, também havia um Camões no Conta-me como foi. Mas estamos a falar doutro Camões, portugueses. Este Camões era poeta: um desgraçado; passou pessimamente. Para compensar deram-lhe um feriado. Sim, portugueses: o 10 de junho! Não, portugueses: tenho a certeza de que Camões não jogou no Benfica! 

Mas os feriados são caros — não queiramos ouvi-lo da boca do Primeiro-Ministro! Não conto, portanto, que me deem um. Nem que me fique o nome gravado numa tabuleta, depois de uma rotunda, ou à entrada para um beco sem saída. Nem que me leiam (com voz rouca, pose melodramática, lágrimas nos olhos) nos saraus semanais da associação cultural e recreativa, sita na rua-de-não-sei-que-antigo-ministro-do-ultramar. 

Contento-me com a minha meia dúzia de leitores. Com a perspetiva de que melhores dias surjam no horizonte e com eles uma geração inteligente, capaz de saborear um poema como se saboreia um pitéu; capaz de ler um poema como se lê a bula da Aspirina, com inteligência e sobriedade; capaz de ensinar aos filhos um poema como se ensina um conto popular ou uma adivinha… E não digo um poema recolhido do Jornal de Notícias. Digo um poema de Luiza Neto Jorge, um poema de Nuno Júdice ou um poema de Herberto Helder. 

Estou a exagerar? Não, nós, os portugueses, é que estamos demasiado acostumados ao pouco. E a pouquidão (a palavra existe e assenta-nos que nem uma luva) não nos tem levado senão a preservar nos genes, com o passar dos séculos, contra o ardor da História (como num frigorífico) a mesquinhez, a futilidade e a inveja. Por contraponto, um povo capaz de vibrar com um bom poema será (é) um povo inteligente, sensível e evoluído. 

Não peço glória. Peço um povo em condições. Foda-se, portugueses! Isso é pedir muito?

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