Crónica de um amor sem tempo certo

Dmitry Borisov
Fotografia de Dmitry Borisov

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E foi assim que nos vimos de novo ao cabo de tantos anos. Uma ânsia capaz de guindar as tripas à boca. Sorriso miudinho. Nervoso. Incerto. Palavras curtas, entrecortadas, cheias de salamaleque. Tu, quase sem rugas, com o estupendo ar de quem regressa de uma viagem pelas ilhas gregas. Eu, mais frágil, curvado, capaz de jurar que o tempo passou em duas velocidades por nós. O que tens feito? O que fizemos? Passou tanto tempo. Os teus olhos continuam belíssimos. Mas não convém falar de beleza, que é, segundo a tua própria lição, efémera e enganadora. Eu continuo a dar aulas. Tu vens de Bruxelas, não é assim? Ainda no Parlamento Europeu? Mãos incertas, passeando-se pela mesa, sobre os joelhos, nos braços cruzados e descruzados. Apetece um cigarro. A beleza pode provocar calafrios. Foi já há tanto tempo. Como pode acontecer-nos? Acontecer-me isto? Corriges. Não, Miguel. Trabalho na Comissão. O Parlamento é em Estrasburgo! Claro. Desculpa. Confundo sempre. Uma ânsia destas parece um terramoto ao longo das vísceras. Bolas, estás estupenda. Uma mulher feita. Quando te conheci eras uma criança. De algum modo foste sempre uma criança na minha cabeça. Mesmo durante o breve amor que tivemos. Nessa altura éramos um puzzle impossível de preencher. Olha-te bem, agora. Rosto sereno. A pele tratada. Unhas longas e delicadas. O sorriso esmaltado e branco. O ritmo das frases. O tom seguro com que pedes. Conta-me coisas! Casaste?

‒ Não casei.

‒ E tu?

‒ Mais ou menos!

E as chávenas de café chegam dolorosamente para interromper a primeira revelação. Sempre odiei o amor. Sempre achei que todos se amavam neste universo de sete mil milhões. Todos menos eu. Todos odiamos o amor. Até que um dia alguém nos faz acreditar que uma pequena porção da sua loucura nos foi reservada. E aí amamos o amor. Pertencemos ao exclusivo clube dos que têm sorte. Dizemos que talvez tenha valido a pena o sacrifício, a espera, a deceção…

‒ Então. Conta lá!

‒ Vivi com uma pessoa durante algum tempo.

‒ Ah, sim?

Mas tu esquivas-te. Do assunto fugimos ambos. Porque há coisas que não se explicam. Melhor assim. Seguras a chávena com ambas as mãos, ao teu estilo. Sopras juntando amorosamente os lábios. Depois pedes uma pedra de gelo e um copo e canela em pó. Tinha-me esquecido desse teu ritual. Acho-o delicioso, deliciosamente presente, aqui e agora! Gosto de te ter. Pedes-me que te contes coisas, a vida, a minha disponibilidade para talvez amar. Sou incapaz de omitir-te seja o que for. Conto-te tudo…

‒ Não casei… Nunca vou casar… Sou avesso a tudo o que me querem…

‒ Miguel, Miguel… E as mulheres que não te largam… Como lhes explicas isso?

Uma súbita tristeza abate-se sobre o granito da esplanada. Sobre as paredes da igreja. Contra as casas e as janelas e as sardinheiras resvalando das varandas. Escureceu. As nuvens cortinam a luz forte de maio. Não sei como responder-te. Talvez não queiras uma resposta. Talvez não devêssemos ter perguntado sequer. Quantas vezes é melhor ignorar os factos, ir às cegas de encontro ao porvir, ser uma folha apagada, ou, quando muito, com os vagos sulcos de coisas escritas a lápis. É melhor assim. O silêncio prova-o. Atesta-o o embaraço, as sísmicas convolutas das vísceras sem lugar no lugar das vísceras. És a mulher mais bela que conheci, sabias? Mas não falemos de beleza. O amor é um mito para lá da beleza. És ainda a minha antiga aluna de secundário e já outra mulher. Ainda e já um outro tempo no meu tempo. E talvez deva dizer, enfim, qualquer coisa como isto.

‒ Nunca te esqueci, Eunice!

‒ Claro que esqueceste, Miguel!

‒ Nunca!

Apetece um cigarro. Apetece cair, sair, partir. Odiamos o amor quando o amor nos ignora. Ignoramos o extenso combate de palavras e de sentidos em cada palavra e sentido que se diz e se sente. Tremo. As mãos incertas desejam tocar-te e fogem, querem acariciar-te e fincam-se, procuram o perdão e mostram-se frias. O amor mente com as mãos. Apetece um cigarro. E tu bebes o café. Devagar. Tão devagar que o silêncio e a lentidão parecem arrastar a cena por séculos. Lembras-te daquela canção dos Morphine? Até que um dia alguém nos faz acreditar que talvez nunca tenhamos odiado o amor. Olhos enxutos, rosto sorridente, coração limpo. O que tens feito? O que fizemos? Passou já tanto tempo, Miguel. Os teus olhos continuam belíssimos. Mas não convém dizer tudo. Talvez não se deva dizer coisa alguma. Continuo a dar aulas. E tu? Bolas, estás estupenda, Eunice… Uma mulher feita. Quando te conheci eras uma criança. És outra mulher, agora. O que é feito de ti? E tu bebes o café. Devagar. Tão devagar que o silêncio e a lentidão parecem arrastar a cena por séculos. Às vezes é preciso ser assim. Devagar, tão devagar que o tempo para. E aí vemos tudo com minúcia. Quer dizer, onde encaixar cada peça, como acabar o puzzle. O amor não é outra coisa. Não é, pois não?

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Quando os eternos nos morrem

Herberto Helder (Alfredo Cunha)
Fotografia de Alfredo Cunha

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«A morte – diz o canto – é o amor enorme.» Herberto Helder tinha 33 anos quando publicou este verso (em Poemacto) e é irónico que essa mesma morte, ou outra morte qualquer, tenha finalmente levado um tal poeta. Essa mesma morte, ou outra morte qualquer, foi anunciada quatro dias mais tarde a Tomas Tranströmer ‒ se é possível que um poeta morra! Fica-me de memória esta sua meditação de 1983, deixada no poema «Bilhete-Postal Negro»: «Acontece, a meio da vida, a morte bater-nos à porta / e tomar-nos as medidas. Essa visita é esquecida, / e a vida continua. O fato, porém, esse / é cosido em silêncio.» (cito a tradução de Alexandre Pastor).

Quis o destino que assim fosse. Que se falasse de morte, no sentido puro que a morte pode ter, na estação em que a paisagem se enche com o branco imaculado das magnólias, com o matizado azul do agapanto, com o vermelho da amarílis, com os salpicos da serralha e das pascoinhas, com o verde da hortelã e do funcho, com o amarelo veemente do tojo. O espaço é enxuto, luminoso, celebrante. E, contudo, a morte anda-nos na boca.

É sabido o modo como Herberto Helder (nascido no Funchal, em novembro de 1930) e Tomas Tranströmer (nascido em Estocolmo, a 15 de abril de 1931) viveram discretamente, distanciados de certo ruído que lhes obscurecesse a visão do mundo, fiéis à servidão da metáfora com que definiram tão profundamente o ethos e o pathos humanos. Como tão bem notou Pessoa/ Ricardo Reis, «Cada um cumpre o destino que lhe cumpre», e eles, Herberto e Tomas, cumpriram-no, na certeza, na convicção inabalável de que a poesia fosse esse destino.

Dir-se-ia inevitável o conhecimento destes dois poetas. A muitos de nós, leitores-admiradores do seu (diferentíssimo) espaço criativo, tal encontro deu-se no universitário, em curtas seletas e traduções extraídas do Jornal de Letras, em edições muito folheadas e quase sempre sublinhadas por frenéticos lápis de discípulo. De Herberto havia a Poesia Toda, milagre de edição de que nunca consegui um exemplar! De Tomas Tranströmer havia pouca coisa. Inesquecível, porém, o contacto com a pequena recolha que nos era dada em Vinte e Um Poetas Suecos, de que fiz nessa altura, criminosamente, uma edição policopiada. Beleza plástica e contenção lírica, expressão do pormenor, domínio do inefável, brevidade e sentido de humor, eis como me chegou a poesia do psicólogo Tranströmer.

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AQUELE QUE ACORDOU COM O CANTO SOBRE OS TELHADOS

Manhã, chuva de Maio. A cidade está calma
como uma cabana. Ruas tranquilas. No céu
troa azul-verde um motor de avião ‒ a janela está aberta.
O sonho onde se dorme de membros estendidos
torna-se transparente. Move-se, tateia
pelos instrumentos da visão ‒ quase no espaço.

(Tradução de Teresa Salema, Vega)

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Não me recordo do primeiro poema que li de Herberto Helder. Lembro-me do estremecimento provocado pelo poema que principiava pelos versos «São claras as crianças como candeias sem vento, / seu coração quebra o mundo cegamente. / E eu fico a surpreendê-las, embebido no meu poema, / pelo terror dos dias, quando / em sua alma os parques são maiores e as águas turvas param / junto à eternidade.» (sexto andamento do poema «Elegia Múltipla» de A Colher na Boca). Com fervor quase religioso, como tomado pela mesma devoção com que leem alguns os seus guias místicos, fiz-me acompanhar na última década pelo volume precioso Ou O Poema Contínuo. Li-o integralmente vezes incontáveis, certo de que vive ali o génio e o sortilégio do melhor que se escreveu em língua portuguesa em toda a sua já vasta história.

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Lenha ‒ e a extracção de pequenas astros,
áscuas. De poro a poro,
os electrões das corolas. Somente no mais escuro
não há nada. No escuro a carne é um buraco
invisual, e o que arde é o pão
no estômago, e nos brônquios
cortadamente
o ar. E o carbono devora sono a sono a inocência
das imagens. O que toca o órgão mais profundo
do sopro não é a música
nem chama: apenas um dedo de mármore entre
as têmporas como
uma bala. E enquanto pontas de fogo marcam
a boca, morremos afogados
no espelho, no rosto. E se a loucura um instante
levanta as pálpebras.
A grande válvula do corpo.
A escuridão, a terra.

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Tomas Tranströmer (Ulla Montan)
Fotografia de Ulla Montan

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No verão de 2012 senti um fervor idêntico, quando principiei a ler os Cinquenta Poemas de Tranströmer editados pela Relógio d’Água. Não há na poesia do sueco o ritmo torrencial, encantatório, melódico dos versos de Herberto. Há, ainda assim, a mesma subtileza dos silogismos, o poder da imagem, a afirmação da palavra poética num mundo dolorosa, progressivamente mais prosaico. Há a beleza escultural, marmórea, luminosa de verdades que, não raro nos escapam, e que representam o privilégio da revelação e da sensibilidade poéticas.

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FURACÃO ISLANDÊS

Não um terramoto, mas um sismo celeste. Turner, bem amarrado, podia ter pintado aquilo. Ainda há pouco, uma luva solitária passou por mim redemoinhando a muitos quilómetros de distância da sua mão. Lutando contra o vento, tenho de chegar à casa que está do outro lado do campo. Como uma bandeira, adejo no furacão. Sou radiografado, o esqueleto entrega o seu pedido de demissão. O pânico aumenta enquanto avanço aos ziguezagues, vou a pique, vou a pique, acabarei por me afogar em terra firme. Que pesado se torna tudo o que tenho de arrastar, o que será para uma borboleta rebocar um batelão! Chego, por fim, ao destino. Um último combate com a porta. Já entrei, já entrei! Agora estou atrás da enorme janela envidraçada. Que estranha e fantástica invenção não é o vidro ‒ estar tão perto e não ser afetado… Lá fora, em debandada pelo campo de lava, uma horda de corredores, vestes insufladas, gigantes e transparentes. Mas eu já não esvoaço. Sentado atrás do vidro, quieto, sou o meu próprio retrato.

(Tradução de Alexandre Pastor, Relógio d’ Água)

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É quase manhã quando escrevo estas palavras. O trissar das andorinhas e dos estorninhos enche o espaço. Penso com o espanto de um mortal na complexa roda do tempo. Nos poetas que nos morrem e no quanto lhes devemos. No que dever significa e talvez nem saibamos. Na imprecisão com que se diz morreu o poeta Herberto Helder. Na devastação de se pensar que o poeta Tomas Tranströmer desapareceu. Porque um e outro deixaram seguidores, vagos epígonos, amantes, sementes e metáforas, luz. E talvez pudesse confessar o quanto um e outro trouxeram para dentro do meu coração por vezes despedaçado e maltratado. Ou talvez devesse explicar que a poesia de um e de outro enche uma pequena parte das minhas estantes de poesia, aonde regresso amiúde, como quem pretende converter-se a uma melhor humanidade. Ou talvez pense (pensando melhor) que talvez os poetas morram mesmo e que a morte de um poeta seja talvez a morte lenta da própria humanidade. Talvez pense que afinal não são tantos assim os que se importam e os que têm estantes de poesia em casa. Talvez pense que poucos serão os que regressam a certos livros de poesia como quem regressa a uma fé, ou a uma cela, ou a um certo silêncio impermeável. Talvez a humanidade tenha, finalmente, deixado os seus poetas morrer. E queira morrer com eles e sem eles, numa infinita e incapaz solidão.

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Gosto de conversar contigo

Frank Decker
Fotografia de Frank Decker

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Gosto de conversar contigo. Gosto da tua voz, que é meiga e cheia. Gosto dos teus olhos, caindo e recaindo sobre os meus, tão devagar como duas pedras em câmara lenta. Gosto das tuas palavras. Do teu perfume. Do modo como apanhas o cabelo e penteias as farripas tresmalhadas. Às vezes nem te oiço. Sinto apenas a percussão doce das frases a massajar-me a cabeça. E (nunca to disse) apetece-me mergulhar no teu colo, deixar que me embales, adormecer a teu lado.

A vida é tão igual a si própria. Somos todos tão escravos dela! Tão incapazes de sentir. Como se pudéssemos ter dentro de nós cabos e fios e fusíveis, em vez de sentimentos. E, por isso, um dia disse isto.

– Um dia acabamos morrendo sem termos sequer começado a viver!

E tu sorriste. Era um dia de final de outono. E tu passaste a mão pelos cabelos. Era uma daquelas tardes em que o nevoeiro parece chegar de longe e atravessar a janela e engolir tudo em nós e ao redor de nós. E tu disseste. 

– Acho que tens andado distraído, Xavier! Tens mesmo de abrir os olhos… 

E o nevoeiro vinha de longe, de fora, do fundo. Passava pela janela como um exército marchando, como uma boca devorando a paisagem, como um buraco absorvendo os pensamentos. E eu senti-me tão mole, tão aluído, tão triste que não encontrei palavras e foram elas que se disseram sozinhas. 

– Não ando distraído. Já não consigo é distrair-me. Já vivi tudo. Já sei tudo. Já adivinho tudo. A vida é a porra de uma repetição! Nem um milagre me podia salvar agora. 

E tu sorriste. E o teu sorriso era um astro frio, alumiando a anos-luz. Tocaste-me o rosto, deixaste os olhos cair, soar no imo do poço, afagaste-me o cabelo, meneaste a cabeça, disseste. 

– Estás doente. Precisas de curar-te. Essa tristeza é uma sombra maldita, a pesar toneladas de um peso morto e sem justificação. És tão bonito, pá! E tão infeliz! 

E eu sinto. Não tenho medo de sentir. De experimentar de uma ponta à outra os impulsos elétricos do medo e da surpresa e da desilusão. Nada receio. É como uma vertigem. É como fechar os olhos e ir. Já vivi tanto. E, no entanto, os teus olhos poisaram em mim e puxaram-me. Como um magnetismo sem explicação, eles alavancaram os meus olhos, fizeram-me agarrar uma réstia de luz e caminhar. 

– Gosto de conversar contigo! 

E o teu abraço é desde então uma casa. Nunca na vida tive tanto medo. O teu abraço apertado faz-me sentir desde então uma criança renascente. E eu sinto uma mistura de tortura e de prazer quando me tocas e o teu perfume e a tua voz e os teus olhos aquecem as minhas tardes enevoadas. 

– Tens de abrir esses olhinhos! 

E dou comigo a pensar nos teus cabelos. E a ouvir pela primeira vez as tuas palavras antigas. E a sair de um túnel terrível. E a escutar outra vez o silêncio das ervas e o rumor das coisas que havia esquecido nos meus olhos. E dou pela paisagem descobrindo-se, desembaciando-se, desimpedindo-se. E talvez me apeteça dizer-te palavras novas, enxutas, belas como grãos de cereal e puras como o toque das unhas na pele, como as tuas mãos finas e firmes. 

– Não ando distraído!

E tu, abraçando-me, acalentando-me como um sol inesperadamente crescido entre as nuvens, tu beijando-me como um milagre, tu sorrindo como um vidro amplo e sem mácula, completas a última frase. Que trago comigo. Que levarei comigo.

– És tão bonito, pá!

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Diga-me você, meu caro!

Andre du Plessis
Fotografia de Andre du Plessis

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Foi por esta altura que nos conhecemos. O frio de novembro estampando-se em todas as janelas, eu desempregado, tu no lar de idosos. Aquela frase soou. Certeira e inesquecível como uma reprimenda.

‒ A ruína é sempre mais feia do que bonita, não lhe parece?

Eu desempregado, tu segurando uma bengala, de pé, com olhos trocistas. Em volta um armazém de corpos tremelicantes e babosos, corpos esquecidos retomando às vezes numa grita desenfreada o caminho das dores e da frustração.

‒ Que lhe parece esta velharia toda?

Eu desempregado, ajudando uma senhora a erguer-se, outra a sentar-se. Eu sem voz, aquecendo as mãos desamparadas de um avô a quem o Alzheimer veio furtar os últimos farrapos de lucidez. Eu acabrunhado, aturdido, com a alma pesando-me na alma, como um cacho de melancolia. Eu atrozmente perseguido pelo inverno de uma ponta à outra ponta das paredes. Eu desejoso de me tornar numa centopeia e de poder esgueirar-me por uma fresta. Eu desempregado, em fuga. E tu quieto, vertical como uma âncora suspensa. Em proa. Agudo como um discurso da consciência.

‒ Já viu bem a miséria que nos espera?

Foi por esta altura que nos conhecemos. Que cruzámos palavras. Que estreitámos a distância. Que aprendemos o preço da amizade. Essa que nos obriga a mentir e a falar verdade e a mentir como só na verdade se mente.

‒ Nem tudo na velhice é forçosamente mau, não acha?

Tu muito sereno. Tu muito contido. Tu muito senhor das palavras que, ditas no momento exato, ficam gravadas para sempre. Tu com um sorriso enigmático, quase de mofa, quase de simpatia, quase feliz, quase pungente.

‒ O senhor parece tão bem disposto!

E as velhotas guinchando, chorando, batendo palmas num estertor de loucura. E os velhos, com os coturnos calçados, com o fio de baba, com a lágrima ao canto do olho, enquanto as funcionárias, sempre com voz estridente, sempre fingindo euforia, vinham meter-lhes a sopa na boca, rapar os iogurtes, acomodar-lhes os travesseiros.

‒ Tem aqui tantos amigos!

E tu sem resposta. Tu mordendo o lábio, cheio de intenção. As sobrancelhas franzindo, aconchegando um pensamento satírico, com vontade de me mandar à merda. Tu incapaz de acreditar na piedade voluntariosa. Tu sereno e belo como um mestre grego. Aproximando-te. Mastigando a verdade. Pondo-me a mão no ombro.

‒ Um dia saberá distinguir tão bem a vida da morte, que lhe parecerá insuportável o tempo perdido…

‒ Como assim?

‒  Lá chegará! Lá chegará…

E eu desempregado, à procura de um norte. E tu desprotegido, à espera do fim. Um de cada lado, agarrados à mesma visão, como as duas serpentes entrelaçadas de um caduceu.

‒ Vejo que é bom rapaz. Pena é não ser lá muito esperto…

Foi, sem dúvida, por esta altura. O frio de novembro estampando-se em todas as janelas, embaciando-as, fechando-as numa estranha obscuridade de cinzas e pó. Eu asfixiando, ajudando uma senhora a erguer-se, outra a sentar-se. Tu aos ziguezagues, atravessando um corredor, saindo para o quarto.

‒ Ou talvez seja mais esperto do que parece… E me julgue tolo!

Foi por esta altura que nos conhecemos. O frio de novembro cobrindo os ossos. As horas caindo na penumbra depressa de mais. A noite caminhando como uma sombra gigante sobre os olhos. Foi assim que nos tornámos íntimos. Cheios de retórica. Irmanados pelo mesmo parágrafo de tristeza e de amor. E nunca pude responder-te. Nem agora que morreste e te levam baloiçando, fechado num enigma de mogno, com a cruz ao cimo, feia e sinistra, brilhando, prometendo a eternidade…

‒ Não é feliz aqui?

Eu desempregado. Tu calado, voltando-me uma última vez o rosto, com aquela última frase na ponta da língua, como a despedir, como a dizer, como a perguntar.

‒ Diga-me você, meu caro: o que é a felicidade?

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O homem que pedia cigarros

Foto: Tatsuo Suzuki
Fotografia de Tatsuo Suzuki

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O homem chegou e sentou-se na mesa ao lado. Suspirou. Fê-lo tantas vezes e tão fundo que conseguiu a minha atenção. Foi o bastante. Endireitou a posição da cadeira de modo a ficar mais próximo. Sorriu. Pediu um cigarro. Dei-lho. Não tardou a contar-me a sua vida.

‒ O meu problema são estes dentes de merda!

Mirei. Uma boca combalida com hematomas e roxidões suspeitos, um sorriso feio, esburacado, agarrando dois dentuços sobreviventes, tortos como estacas de uma paliçada em ruínas.

 ‒ O que lhe aconteceu? Caiu?

O sorriso, que não lhe saíra do rosto, aprofundou-se. No refluxo dos lábios, viam-se agora as gengivas dolorosas, inflamadas, rubicundas, onde cicatrizes hemorrágicas testemunhavam uma enfermidade que nunca eu vira.

‒ Não. Tenho é a boca toda lixada!

Duas pessoas quiseram confirmá-lo. A segunda era uma senhora devota da Marie Claire. Exibiu aquele ar de quem acabou de engolir comida estragada. O homem sorriu-lhe também. Não desgostou que nos tivéssemos interessado por si, que o olhássemos de soslaio, que franzíssemos o nariz, que lhe reprovássemos a vida. O homem (via-se!) apreciava que o mundo lhe estendesse uma mão. Que o mundo lhe estendesse ao menos um dedo!

‒ Isto está a dar cabo de mim, sabe?

E pausou.

‒ No outro dia o meu irmão levou-me lá a casa um bife. Mas não pude comê-lo, por causa destes dentes de merda… O que vale é que estavam ali uns gatos… Atirei-lho. Só comi o arroz e as batatas…

E pausou de novo.

‒ Se você me pudesse arranjar outro cigarrito!

Dei-lho. A rapariga do café aproximou-se. Veio explicar ao homem que não podia importunar os clientes. Que precisava de ir-se embora. Que não voltasse. Que o patrão não o queria lá. E o homem fez uma momice, um sorriso doido, como se aquilo acabado de escutar fosse um jogo e ele tivesse principiado a divertir-se muito. O meu caderno, escancarado como uma porta inútil, registava meia página de coisas cuidadas, frases com brilho, ideias promissoras. Não podia agora compreendê-las. O homem fez uma vénia com as mãos juntas, como quem faz a súplica a um santo. A rapariga expirou pelo nariz, contrariada. Recolheu a chávena na mesa entretanto abandonada pela senhora impertinente e regressou ao interior. Uma hora de trabalho (como foi possível?) reduzida num piscar de olhos à inconsistência das cinzas… O homem quis ser agradável (lia-se-lhe nos olhos a vontade de querer saber). Perguntou.  

‒ O senhor é daqui?

‒ Sim. Quer dizer, mais ou menos…

Apontou para o isqueiro. Emprestei-lho. As mãos muito magras deram-me a impressão de estar a conversar com um moribundo. Arrisquei.

‒ Isto faz-lhe mal! Não devia fumar tanto!

‒ Não, não… Os cigarros são porreiros, tiram-me as dores todas…

Um casal chegou. A rapariga julguei reconhecê-la da televisão: sem devolver qualquer vestígio de empatia pelo mundo, devorou o espaço em redor multiplicando sons. Percebi que o meu refúgio naquela esplanada havia cessado. Uma nova espreitadela ao caderno fez crescer a labareda da frustração. Detestei-me. Detestei o desgraçado que, cadeira com cadeira, continuava a sorrir e a soprar o fumo numa espécie de êxtase. Detestei a fulana arrogante. Fiz menção de sair e de me despedir.

‒ Bem, muito gosto em conhecê-lo!

O homem levantou-se para me apertar as mãos.

‒ Muito gosto, meu senhor!

O desconforto foi indizível. A beata queimava-lhe quase os dedos. A tarde tornara-se subitamente fria, como muitas vezes sucede na passagem das estações. Consultei o telemóvel, ocorreu-me um contacto, teclei. Do outro lado, uma voz recebeu-me, acalentou-me. O homem erguera-se. Apanhava desprevenido o casal. Pedia tabaco. A rapariga, elegante, com a cigarette espetada entre o indicador e o médio, continuava a falar sem lhe voltar o rosto. Do outro lado do telemóvel, a voz confirmava o encontro para as cinco. O carro continuava ali mesmo, sonolento como um cachorro. Entrei. Abri os vidros. A rapariga da televisão exaltava-se, arremessava com desprezo a beata para o jardim. E o homem mergulhava. Como um nadador, como um pai aflito, o homem lançava-se em sua perseguição. O desconforto foi enorme. Ele, triunfante, saltando no relvado como um doido, estrafegando com os dois dentuços, esforçava-se por reacender o corisco. Do outro lado do telemóvel, a voz despediu-se. Fiquei mudo. A voz perguntou-me se tinha ouvido. Disse que sim. Estava bem, sim. Estava combinado. E o homem desapareceu como tinha vindo. Em direção ao nada.

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Um passeio a pé

Fotografia de Michael Krahn

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Princípios de setembro ao cair da tarde: o outono enviou já os seus emissários. Para lá das portas das casas de pedra, desde o fundo dos lagares, emerge e vibra como uma corda de guitarra o aroma intenso do mosto. Embrulhamo-nos nele como num antigo provérbio: por onde os nossos passos vão, ele acompanha-nos num crescer de sombra. A inquietação voa ao redor da nossa boca. Depois, ultrapassadas as últimas casas, embrenhamo-nos num pequeno bosque. Como numa catedral, as copas das árvores erguem arcos quebrados e perfeitos. Conheço o nome de cada uma delas, o seu silêncio, o seu perfume, a voz que nelas respira profundamente desde as raízes. É-nos dado caminhar por uma vereda estreita, ao longo de um carreiro húmido repleto de folhas, onde vigorosas lesmas e insetos esquivos nos vigiam de passagem: sulcos e vergônteas subterrâneas exigem a nossa atenção; os próprios duendes nelas tropeçariam, se acaso aqui vivessem ainda. No alto dalguma faia, dalgum ulmeiro, protegidas pelo abraço das asas e pela folhagem espessa, acordam criaturas notívagas cujos pios em breve cairão sobre o firmamento iguais a bátegas de chuva. As névoas e a penumbra tornam os espaços mais breves e simultaneamente mais longos, dividem-nos em parcelas isoladas umas das outras e todas numa bolha de paz. O homem que se arrisque à solidão chega aqui tão perto de si próprio como dois seres que por fim se reencontram numa encruzilhada. Sempre imaginei que assim vagueasse, descalça e andrajosa, através do limbo, através da memória, através da terra, a minha bisavó tresloucada. No coração do labirinto é a própria alma a girar sem parar, frenética e viva como um buraco negro no meio de espiral de estrelas. «Quem sou?» pergunta a consciência rodopiante. Estamos agora noutra dimensão, noutro lugar, noutra era da nossa vida. Movemo-nos em silêncio pela casa às escuras. Os nossos passos são cautelosos e atentos, como se caminhássemos ao longo de uma floresta, seguindo o flanco musgoso de um antigo muro de pedras soltas. A algum lado nos levará esta viagem sem termo nem princípio ‒ cada pensamento segue um outro e todos se encaminham para uma clareira onde a luz os reconhece. A cada instante precisamos de vencer a resistência da nossa condição terrena: os pés enterram-se em pantanosas raízes familiares, tropeçam na memória, atormentam-se com o peso que neles se calça dos antepassados queridos e admoestadores: «A velhice bater-vos-á um dia à porta!». A voz que nos fala, não sabemos se vinda de fora, se uma erva nascendo-nos nas entranhas, abre passagem pela fissura das paredes, perfura, assemelha-se a um vapor tépido, mistura poderosa de remorso e de saudade. O tempo! Tão próximos deste abismo, somos criaturas excecionais, volumosas, puras como uma lágrima. Em breve estaremos na infância. A floresta encaminhou-nos para algo tão longínquo. Já os olhos se desacostumaram de olhar e veem apenas. A velhice bater-nos-á um dia à porta. Estamos nas calendas de setembro. A noite assenta mais cedo. O outono enviou os seus emissários.

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Avós

Avó
Fotografia de Susan Meyer

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Tive a felicidade de conhecer todos os meus avós e a infelicidade de os ver partir a todos. O primeiro a deixar-nos, o pai de minha mãe, morreu com cancro não tinha completado cinco anos. A minha avó paterna despediu-se quando tinha vinte e um. Passou-se tudo há tanto tempo. As memórias filtraram os factos. Os episódios que me contam parecem-se às vezes irreais, como se nunca os tivesse vivido. Outras vezes, porém, a variação da luz com o rodar das estações, o encontro inesperado com um objeto antigo, o fragmento de um sonho ou a súbita aparição de um perfume na terra, o relato de algum velho na terra, uma história recontada pela milésima vez por um tio faz-me recordar o rosto desses antepassados, como se os estivesse contemplando olhos nos olhos, como se lhes pudesse tocar de novo as mãos engelhadas e frias, como se lhes sentisse o bafo e a ternura indescritível dos gestos, como se pudesse finalmente compreender o que neles foi em cada dia uma espécie de despedida silenciosa… E é então que as saudades são uma força poderosa e nos estrangulam e nos tomam num arrepio dos pés aos cocuruto. E é então que as palavras são incapazes de explicar… 

Os avós são uma espécie de guarda avançada da família. Têm o secreto desejo de ensinar aos pais um modo melhor de serem pais. E o sonho inconfessado de ensinar aos netos uma forma mais doce de serem filhos. Intrometem-se muitas vezes, dão palpites, cansam-se, amuam, mas logo regressam com aquela mansidão do sol de novembro para pegar ao colo, para passar a mão por cima, para consolar, para criar linhas diplomáticas entre a mãe irritada e o miúdo traquinas. É o seu modo de ser. Porque os avós são uma espécie de anjo da guarda. E lavam com soro fisiológico, gelo e frases que soam a esconjuro os joelhos arranhados e a testinha ferida. E acalmam com uma cantilena e gestos precisos o choro torrencial, birrento e ensonado. E contam com sageza, com uma magia inigualável de som e imagem, a história a Branca Flor. E embalam, e acalmam, com um jeito único de amor sem limite, o pequeno coração rebelde, enquanto por dentro das pestanas uma enorme paz de veludo parece cobrir a terra. Porque os avós são uma espécie de refúgio. E todos os netos o sabem desde sempre. 

Se aos pais cabe o poderoso, o hercúleo trabalho de dormirem pouco e mal, aos avós cabe a missão da sesta conjunta. Se os primeiros têm os olhos postos no presente, preocupando-se em alimentar cada dia, em educar e proteger os filhos, os segundos acrescentam a tudo isto a vontade de transmitir um legado, de trazer do passado tradições que hão de manter-se depois do seu desaparecimento físico, de assegurar o sangue do seu sangue. Porque os avós são um elo poderoso, generoso, insubstituível nesta corrente intemporal! E é por isso que os netos amam de forma tão espontânea os seus avós e guardam deles valiosas lições que são (sê-lo-ão mais ainda no decurso da vida) claros prodígios de sabedoria e de tão profunda, genuína e pura humanidade! 

Pela minha parte, tenho aprendido a reconhecer, a desvendar, esse legado. Ainda hoje gosto de canivetes e de do cheiro da madeira acabada de serrar. Ainda hoje prefiro a terra ao ruído das cidades. Ainda hoje me perco nas paisagens enevoadas, no perfume das árvores e no granito das montanhas. Ainda hoje admiro a frontalidade e o rústico aperto de mão. Ainda hoje rezo a Santa Bárbara nos dias de trovoada. E acredito no mau-olhado e no mal de inveja. E mastigo funcho e hortelã para esquecer maleitas e dores de cabeça. E dou por mim em silêncio a acariciar o bojo da fruta e a procurar-lhe deformidades. E encontro na poesia das coisas vivas a suprema poesia a que as palavras dão acesso… Porque os avós são assim, permanecem em nós, olhando-nos pelos nossos olhos, tão acesos e sorridentes como dantes, como nos dias em que nos embalavam e nos faziam sentir uma paz enorme de veludo, a envolver a pouco e pouco, a pouco e pouco, a pouco e pouco, toda a terra, toda a terra…

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