O ato terminal

Simona Andrei
Fotografia de Simona Andrei

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Ao colocar na varanda a sua bela orquídea, é possível que na cabeça dessa mulher tenham surgido pensamentos complexos. «Da próxima vez que tocar este vaso já muita coisa terá passado». «Se voltar a ver-te, minha querida orquídea, é porque a vida deu uma lição de força em que jamais acreditei». «Quantas vezes entre um gesto e outro gesto similar decorre o arco temporal de uma vida». «Entramos num túnel e saímos dele sem saber se ainda somos a mesma pessoa». É possível que essa mulher se comova com o pólen dos plátanos que neste preciso momento voa até tão alto e pense nas coisas que involuntariamente desprezou. Não muito longe do seu apartamento as molas dos cavalinhos e os baloiços do parque infantil gemem com frenesim. Não os consegue ver, mas sente a alegria das crianças. O sol atinge em cheio uma gota de orvalho depositada na grade escura e refrata-se. Um minúsculo arco-íris ilumina-lhe os olhos doridos. Qualquer coisa como uma epifania, como um aperto descomunal, como um remorso lúcido, atinge-lhe a alma e fá-la elevar-se, levitar de pureza e de arrependimento. «Ah, minha querida orquídea, se nos tornarmos a ver… é porque tudo será diferente». 

Penso muitas vezes nestas invocações subtis do tempo. Ensinaram-me a não cair em tentação, a viver cada dia como se fosse o último, a procurar em cada um o melhor de todos. Aprendi a guardar e acalentar as memórias, a não subornar o futuro com favores mesquinhos («Não subornes a vida. Não intoxiques as areias movediças e aprisionadas da ampulheta. Não dês fim à paz dos teus sonhos. Vive sem rancor, pois em cada coisa vive já sombra bastante», explica-me a consciência nas noites de insónia). Ensino agora eu também a amar as pequenas existências, a respeitar os sentimentos que, entrelaçados, fortes e perfeitos, são os tendões da nossa própria existência. Ensino as palavras. Ensino a usá-las, como se usa um escafandro ou um fato de astronauta, para podermos respirar para lá da nossa própria respiração. 

Levado pela mão de uma neta nessa tarde de domingo, o velho cego sorri ao passar junto de uma serração. Os olhos vedados respiram com volúpia a omnipresença do serrim, o aroma limpo e sujo do pó, do pinho, das madeiras empilhadas e simétricas. Do reino da meninice, que jurou conservar e proteger até ao último dos seus suspiros, chegam-lhe os braços da mãe, os ecos da guerra, as vozes de todos os que a pouco e pouco se calaram e não pôde reconhecer no silêncio, exceto quando as mãos tocaram o gelo do rosto, o gelo dos lábios, o gelo do nariz, o gelo das faces geladas. Apenas o frio o assusta. E por isso a palma apertada da neta, o sol macio desse meio de tarde de domingo, o cheiro quente e um pouco húmido para lá do muro alegram-no em segredo. Jamais poderia explicar essa felicidade intransmissível de sensações misturadas, essa paz inefável que lhe recorda o avô, o pai e os irmãos carpinteiros. Como foi possível não seguir-lhes esse ofício? Voz melodiosa, a dos perfumes. Os olhos vedados respiram-nos com volúpia. Por eles obtém a dimensão de cada ferramenta, de cada máquina, de cada pedaço dessa oficina onde sonha ir tatear o seu próprio perdido… 

E eu que absorvo todas estas coisas escrevo-as. Agulha, linha escura atravessando os poros do papel. Os ignorantes calcam as pedras com olhos (olhos grossos, como caules de um cato gigante). As pedras são surdas. Nem o fio do vento possui algo que lhes possa dizer. Os ignorantes entaiparam a razão e não amam os poemas. Mas eu que observo estas coisas construo os poemas, sinto a urgência de não deixar esgarçar-se a corda do amor, de não deixar esvair-se no nada as pontas delicadas deste amor entre nós e as coisas. 

Assim o pensa também a rapariga no antro do hospital, onde faz tombar carrinhos repletos de roupa suja. «O que contêm os lençóis dessa mulher que morreu hoje, derrotada por fim pela doença?» «O que escondem as toalhas daquele cego tão amoroso, que há uma hora se despediu, sorrindo, da vida?» «O que veriam os seus olhos incapazes de olhar?» «Um anjo?» «Uma mulher outrora desejada?» «Um gato ronronando-lhe no colo?» «O que significa este ato terminal, este lavar das coisas que contêm os últimos vestígios de um tempo vivo?» «Porque morrem as pessoas que nos habituámos a amar?» «Porque sentimos a falta das palavras que nessas pessoas são orações e raios de um sol inteiramente novo?» «Porque me dói tanto que entre mim e estas luvas e esta roupa e este cheiro de caves se interponha esta saudade, este apego ao infinito?» 

E quando chegas e me contas estas coisas, e te embrulhas em mim tremendo de frio, e choras em silêncio, e olhamos a televisão apagada, e revemos uma a uma as cenas de inúmeras vidas desarticuladas e em comunhão connosco, eu compreendo-te com o coração gigante, estrela inflamada pelos sentimentos que brotam dos minúsculos poros da noite, das palavras, do papel que as acalentou para nós e para depois de nós, e embrulho-te com ternura, com os mantos invisíveis de uma noite repleta de estrelas, e deixo que adormeças nos meus braços, amparada e triste, como um anjo que soubesse seres tu sem que o saibas ainda. 

Às vezes o tempo abre em nós, com os seus desastres, contradições e aniquilamentos, rombos assustadores. Mas por mais que a vida doa, podemos sempre procurar em nós uma migalha de sonho e de esperança. Podemos sempre seguir o exemplo das crianças e aprender com elas a arte magnífica da resistência e do renascimento. 

Podia dizer-te tudo isto. Mas tu dormes. Felizmente, tu dormes já.

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Cada poema é um Big-Ban prodigioso

big bang
Fotografia de NASA

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«Só nos meus poemas encontro morada» escreveu Jan Jacob Slauerhoff. Cito-o por não precisar de outras palavras para dizer exatamente o mesmo, por comodidade portanto. Mas por defesa também, para não me servir de argumentos mais terríveis para justificar a franciscana fortuna que juntei em quase quatro década de vida. Aos muitos que se queixam do amor e de uma cabana oponho eu a miséria ainda maior de não possuir nem uma coisa nem outra. Porque esta servidão (ocorreu-me o último título de Herberto Helder) o é no sentido pleno da palavra servir. Servir a poesia é, em última análise, nascer, viver e morrer com a poesia, ao lado, para ela e por causa dela… Servidão sem renúncia, sem protesto, sem arrependimento, servidão que torna tudo o mais secundário, incompleto ou incompreensível.

Mas moro também na poesia dos outros. Na sageza dos truques de linguagem. Na metáfora que o tempo lavou ‒ como a um espelho ‒ com sais e sabão. No ímpeto e jactância de uma estrofe, que ao passar por nós ‒ pela nossa língua ‒ levanta as pequenas chamas vacilantes e acaba incendiando-nos os olhos por dentro. No brilho intenso de uma imagem original, pura e espontânea, como o movimento de um abelhão ao deparar-se com canteiro de amores-perfeitos que salpica o lado de fora da nossa janela. Moro na poesia com a paz e o desprendimento de um santo eremita, de um sem-abrigo, de um louco, que no final de cada dia regressa ao seu tugúrio, à sua manta, à sua cela silenciosa. E que consolo habitar o miolo dos livros! Degustar com frenesi o cheiro a papel reciclado, como o das revistas do Tio Patinhas, o aroma da celulose, o odor perfeito do papel novo, semiplastificado, como o dos baralhos de cartas ou dos manuais escolares, acabados de estrear. E que prazer manusear antigos cadernos de sebenta, guardanapos, meias folhas aproveitadas, velhas agendas, cartões e panfletos já esquecidos, com versos, rasuras, anotações e correções feitas com a caneta de aparo, surpreendentemente lúcidos, agradavelmente melódicos, imageticamente vivos… 

E é por isso que troquei sempre o Audi pela poesia de Homero, Camões, Whitman e Pessoa. Foi também por essa razão que hipotequei a casa, salvando somente os volumes de Arquíloco, Catulo, Dante, Baudelaire, Eliot, Breton, Celan, Miłozs, Tranströmer, Al Berto. E esqueci-me da data do nosso casamento, quando às tantas acabava numa mesa de café uma longa respiração, como as que Ruy Belo me ensinou, lidas em voz alta por Luís Miguel Cintra, junto ao mar, em tardes de inverno, quando as finanças, os altares, as multidões, os ruídos todos me angustiavam de uma forma que jamais conseguirei explicar-te. Troquei-te por Safo, por Emily Dickinson, por Akhmátova, por Sylvia Plath, por Sophia, por Fiama, por Elaine Feinstein, por Wisława Szymborska. E tu nunca me perdoaste. E eu nunca procurei o teu perdão. E tu decidiste, como outros faziam no óstraco, condenar-me ao pior dos exílios, que é e há de ser sempre o do desprezo. 

Não tenho emenda. Não há remédio para isto. Nenhuma solução. Divorciei-me deste tempo, divorciado ele mesmo da poesia. Divorciado ele próprio da função principal do tempo, que é o de cavar crateras na nossa memória, como as da lua, onde acolhêssemos como a luz dos charcos os dias limpos, onde acolhêssemos como a lama dos charcos os turvos redemoinhos dos remorsos e do sofrimento. Divorciei-me deste tempo que não entende de espiritualidade, que se tornou belo e artificial como os antigos bezerros de ouro, artificial e belo como as frases ocas que leio todos os dias em todos os lugares e na boca das pessoas que me não entendem. Não tenho emenda. Sou viciado na pior das anfetaminas, no puro ecstasy das palavras que são música, religião e verdade. Sou viciado em POIESIS! 

Mas mais do que isso. Sou viciado numa certa forma de querer existir. Sou viciado na preferência pelo profundo e pelo complexo, pelo subtil e pelo difícil, pelo que é ineficaz, imprestável e impagável, pelo que às vezes é vão e muitas vezes é efémero. Viciado por exemplo numa fuga de Bach ou numa elegia de Eleni Karaindrou, por oposição a todo o que é forró, pimba ou kitsch. Viciado por exemplo num bom filme de Fellini ou de Antonioni, de Wim Wenders ou de Alexander Payne, em troca dos quais mandaria incinerar todas as telenovelas da TVI. Viciado numa boa ópera de Mozart ou de Rossini, numa boa peça de Ibsen ou de Brecht (nem falo dos muito amados e adorados helénicos), numa boa conversa sobre antropologia ou astrofísica, viciado num bom café, amante dos melhores Cohiba, apreciador de uma reserva de Mouchão, naquela mousse de manga especialmente cremosa, nesse pudim de limão que apenas uma pessoa sabe fazer.

Ser viciado em poesia é o diabo! Habituamo-nos a luxos incomensuráveis, incontornáveis, irremediáveis, aos quais votamos não apenas a gula do instante, como sobretudo as epifanias que valem versos e uma eternidade (pelo menos o desejo de uma eternidade no prolongamento do nosso olhar). Ser viciado em poesia (que o são também aqueles que escrevem equações ou partituras, aqueles que modelam cerâmica ou coreografam pulsões) é uma porta aberta para o princípio, para o reconhecimento de que nos nossos gestos (nos mais ínfimos e risíveis) se repete o começo do cosmos, o movimento inicial, vital, verbal que acelera as veias e nos torna senhores da nossa própria ausência. 

Milhões de páginas foram escritas sobre o mesmo assunto, em centenas de línguas, em milhares de universidades, mais objetiva ou mais subjetivamente. Do que dela disseram Aristóteles, Horácio, Wordsworh, Edgar Alan Poe, Derrida, Octavio Paz, João Cabral de Melo Neto, Bloom, George Steiner se fizeram códices e volumes imensos. Pura repetição! Ainda ecoam nas paredes da minha cabeça as frases eruditas com Ruy Belo procura agadanhar Na Senda da Poesia (1969) os grandes filões desta arte, que é religião e mito, ilusionismo e música, ciência e pão, amor e morte. 

Cada poema (conforme deixei escrito em certo apontamento de 1998) é uma reedição do universo, cada um é a busca de uma ordem no caos permanente, a crença num lugar eterno como se crê num qualquer ponto abstrato, no movimento de cá para lá e de lá para cá do pêndulo. 

O dito apontamento, escrito em caligrafia descuidada, provavelmente embriagada pela recente leitura de Gilles Deleuze, num caderno muito sujo pela cinza dos cigarros, não é grande coisa, admito. Gostava de filosofar, de tentar dizer por palavras minhas o que outros haviam porventura escrito com solene profundidade. Mas ficou aí o meu Credo, lídima profissão de fé, que o tempo não viria senão a corroborar: 

«Nada em poesia é inócuo ou arbitrário. Nem sequer o silêncio que intervala as palavras, e as intervala entre o instante e o infinito. Nem sequer o modo como um homem ou uma mulher decidem viver para melhor a segregarem, como o fazem e o fizeram as límpidas abelhas de todos os tempos. Nada em poesia é inocente. Cada poema é um Big-Bang prodigioso. Somos poesia e à poesia havemos de tornar, não no fim, mas outra vez e sempre no princípio.»

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Cada um de nós viaja para o lugar de todos

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Helmut Newton_young woman
Fotografia de Helmut Newton

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No preciso instante em que o autor destas palavras escreve a vírgula à direita, zarpa em direção a um ponto cada vez mais minguado no horizonte um batelão. Nele vai um moço de quem me afeiçoei nos últimos anos, moço generoso, antigo aspirante a um posto na Marinha, com ideias próprias, porém com um desgosto a morder-lhe o coração desde que em Itália, num bordel, conheceu uma dessas mulheres fatais, sicilianas, mistura de sangue latino e mourisco, capazes, como o próprio diabo, de roubar-nos a alma indefesa e de elevar-nos à condição imerecida de mártires. 

‒ Pois então o senhor fala-me de amor? 

‒ Eu falo sempre de amor, meu caro jovem. 

‒ O senhor começa a parecer um poeta… 

‒ E tu começas a parecer-me um bom ouvinte! 

‒ Bem, o senhor diz as coisas de um modo… 

‒ A mim só me interessa perguntar e nunca dar respostas ou ter certezas… 

Lisboa ofende-se facilmente com as opiniões de um velho. Não digo toda a Lisboa, não pelo menos a que atraca aqui, neste antro de gente de mar e rio sem nome, sem passado, sem destino certo. Gente que vem beber aguardente e cismar ao pôr-do-sol, estivadores corruptos, marujos desencaminhados, antigos pescadores de olhos baços, com medo da saudade do mar. 

Uma tarde o moço sentou-se no outro lado da mesa. Vinha bêbado já. A conversa durou menos do que um braço-de-ferro contra um maricas. 

‒ Você aí, com esse ar de intelectual. Está-me a foder a paciência… 

Não respondi. Não foi preciso. Puseram-no imediatamente na rua a pontapé. Meia dúzia de chapadas depois, o moço voltou para pedir desculpa. Mas estava tão bêbado que se pôs a chorar. Chegara de Messina havia três semanas. 

‒ Deixei de acreditar nas pessoas… 

‒ Isso não é uma doença, meu amigo. Isso é a cura! 

No coração do próprio universo, nas cordas incandescentes dos triliões de sóis sobre as nossas cabeças e debaixo dos nossos pés há sempre o rosto de uma mulher. Que ela possa incendiar-nos de alto a baixo, em profundidade, para sempre é coisa que não me surpreende. Sou já tão cheio de idade que todas as histórias diferentes me parecem aos poucos a mesma história. 

À minha frente, caído numa ridícula prostração de macho abatido, um desgraçado ensarilha-me na sua história. Escuto-a sem pressa, sem perturbação, sem surpresa, com os seus ziguezagues, com os seus parênteses, com as suas heroicas fanfarronices: uma mulher de beleza inigualável, o ciúme, a promessa de vingança, o ajuste de contas, facas, um tipo no chão (ou dois), uma fuga precipitada até a um cais sórdido, depois o tribunal marcial e o castigo, a expulsão, e agora somente a rememoração de lençóis interditos, somente o macho com cio e com saudade… 

‒ Nunca mais tive paz… 

‒ Nada do que contas é assim tão extraordinário, meu rapaz… 

‒ O que mais me dói é a falta que me faz o perfume dela. 

‒ O perfume? 

‒ O cheiro do corpo. Não conheci outro paraíso até hoje. Um homem aninha-se nele e deseja morrer assim, como se estivesse a nascer outra vez. Mas o senhor não ia entender isto, nem que lho explicasse mil vezes… 

Tão néscio és, meu caro jovem. As regras do amor são eternas. Valem tanto hoje como no tempo de Cleópatra. Tão verdadeiras neste instante como no dia em que o primeiro marinheiro fugiu da Sicília, amaldiçoado pela peste. Como se um homem chegado a esta idade, como se este corpo mirrado não tivessem conhecido a mesma inexplicável sedução que te faz enlouquecer no interior da tua própria masmorra. Como se o amor, girando eternamente na mesma calha em espiral não fosse o ADN da espécie. 

Passaram-se entretanto três anos. No preciso instante em que escrevo estas palavras já o batelão se dissipou com o nevoeiro dourado do horizonte. Duas vezes por semana nos reencontramos. Às vezes a aguardente é toda a linguagem que temos em comum. Às vezes, como um relâmpago inesperado de verão, tu recomeças a litania. 

‒ Pois então o senhor fala-me de amor? Por uma puta? 

‒ Falo de amor, meu caro. Falo do teu amor!

‒ Sabe lá o que é o amor! 

Com nostalgia leio nos teus olhos a nostalgia. Há sempre o rosto de uma mulher. Essa mulher que te consome as entranhas. Olhos negros como corredores mal alumiados e perigosos, a pele macia e perfumada, os seios duros. A mesma labareda que um dia nos lambe o coração virgem e nos abandona, em cinzas, nus, expostos, à miséria de sobreviver-lhe e de lhe acalentar a memória. 

‒ O cheiro do corpo dela… É dele que me recordo todos os dias… 

Leio nos teus olhos a nostalgia, a impotência e o ciúme e a loucura de três anos de distância, três anos de homens possuindo-lhe o corpo, três anos de álcoois e peixe frito, três anos em que tornaste num igual a estes farrapos que aqui entre semeiam os crimes de saguão, a desobediência militar, o contrabando, a vingança… 

‒ Um homem aninha-se nele e quer morrer assim, como se estivesse a nascer outra vez… Não ia entender nem que lho explicasse mil vezes.

‒ Estou certo, meu amigo, que somos o movimento oposto das árvores. Dos ramos crescemos para as raízes… Com o passar do tempo cada um de nós viaja para o lugar de todos. Esse lugar, essa terra quente e apaziguada, espera-me há muito. O nevoeiro vem chegando, penetrando cada vez mais os meus ossos. Mas tu és jovem. Tu ainda podes tudo. Tens de lancetar essa ferida terrível e tresloucada.

‒ Deixei de acreditar nas pessoas.

‒ Basta! 

Conheço uma só forma de curar o mal do amor. Que é multiplicá-lo! 

No preciso instante em que anoto estas últimas palavras, regozija-te, meu caro amigo. Todos os meus pertences couberam numa caixa, numa chave. Leva-la contigo, sem compreender. A italiana, posso corrobora-lo é ainda muito bela. Bom trabalho me deu encontrá-la, trazê-la, instalá-la, deixá-la de presente a quem precisa de fé. O tempo ensinou-me a errar todos os caminhos para encontrar apenas um. A mim nunca me importaram as respostas ou as certezas. Sou um homem descrente. Mas por uma vez desejo não ter-me enganado. 

‒ Um homem aninha-se nele e quer morrer assim, como se estivesse a nascer outra vez.

Não precisas sequer de explicá-lo, meu bom amigo. As regras do amor são eternas. Eternas! Não ias entendê-lo agora, nem que to explicasse mil vezes.

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Sempre gostei das suítes de Bach

Norbert Maier
Fotografia de Norbert Maier

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Venho passear neste parque quando os dias, como sacos de gelo, pesam estranhamente sobre o corpo e o paralisam. Venho para estar só. Para não ter de olhar para o visor do telemóvel. Para não precisar de ir ao Facebook. Venho para escutar os meus passos na terra molhada. Para ler devagar os meus pensamentos, com a precisão de uma quiromante a inspecionar-nos as linhas enviesadas da mão. Às vezes venho com o cão, mas muitas mais atrelado apenas à minha sombra. Ultimamente é de silêncio que preciso. E de verdade. Preciso de vir para poder continuar a acreditar nessa coisa ampla, desconcertante e bela que é a vida. 

O parque é enorme. O maior da cidade. As árvores são quase todas centenárias. O lago a meio, que no verão se enche de turistas e de gansos selvagens, é neste mês uma espécie de espelho petrificado. Nele, como na cabeça de um velho, há memórias prisioneiras. E eu sinto os vidros boiar, quebrados por funcionários diligentes, a quem cabe impedir que os peixes morram lá em baixo, asfixiados e sombrios. O parque é uma clareira brutal entre os arranha-céus. Uma das minhas personagens inquieta-se. 

‒ Devia haver gente a fazer o mesmo às pessoas. A impedir que tetos e paredes frias, transparentes e intransponíveis as afastem umas das outras. A impedir que uma solidão irremediável as faça morrer sozinhas. Não acha? 

Respondo que sim. Que devia haver funcionários capazes do milagre de impedir que tetos e paredes de gelo construam solidão. Capazes de tratar das pessoas como se trata dos peixes neste lago! Respondo que uma terrível maldição se abateu sobre a mais inteligente das formas animais, a ponto de a destruir por dentro. A ponto de lhe apodrecer o coração, que é o mais valioso que as pessoas têm dentro de si. Respondo que sim. Respondo que andamos todos a falar de afetos com ciência, mas sem afeto. Respondo que os parques são lugares onde talvez pudéssemos todos aprender um pouco com o silêncio. E com ele chegar à verdade. E com ela chegar à razão por que festejamos as datas e nos entregamos a uma espécie de euforia coletiva quando as datas chegam e nos comportamos como se soubéssemos o que as datas celebram, sem sermos capazes daquilo que celebramos! 

Sempre gostei das suítes de Bach. Sempre gostei de me entregar ao devaneio matemático dessa obra-prima do século XVIII. Sempre gostei da paz e do amor que nelas transborda do homem e o religa às estrelas e às coisas mínimas. E é por isso que hoje caminho pelo parque com os headphones postos; com o cachecol embrulhado no pescoço; com as personagens partilhando as minhas luvas de pele, olhando o mesmo que eu, questionando o que há muito se tornou em mim uma insaciável interrogativa. 

‒ O que significa acreditar? 

Por estes dias a cidade converteu-se, como seria de prever, numa insaciável feira de cifrões, luzes e reclames natalícios, vagas insinuações de hinos de amor e promessas de paz, alusões à fé e à esperança na humanidade, tudo muito entremeado por produtos de alta tecnologia, roupa interior e marcas de vinho. 

‒ O que significa acreditar? 

A cidade converteu-se em filas irascíveis nos mercados, insultos nos parques de estacionamento, azedas obrigações familiares que o cartão de crédito atenua. 

‒ O que significa acreditar? 

Como os antigos santos afasto-me, refugio-me nos possíveis lugares de eremitério. Por exemplo neste parque enevoado e vazio. Por exemplo na escrita. Por exemplo em cada um dos seis movimentos (prelúdio, allemande, courante, sarabanda, galanteria, giga) das seis maravilhosas suítes que Johann Sebastian Bach compôs para violoncelo. Com elas me aproximo dessas vozes que dentro de mim rodopiam e me interrogam, me fazem abrir portas e janelas sobre os domínios obscuros da razão. 

‒ O que significa acreditar? 

‒ Não sei, porra! 

Como posso saber o que significa acreditar quando me ensinaram o verbo, tanto a propósito do puto nascido numa qualquer gruta ancestral da Palestina, como dos cimos do poder, dinheiro, conforto, supremacia, a que a humanidade se propôs desde sempre? 

‒ Não sei, porra! 

Venho passear neste parque quando os dias, como insuportáveis alucinações, me desgostam e me tornam vítima da pele que herdei. Quando, como hoje, desacredito profundamente na humanidade, na hipócrita humanidade que me ensinou a hipocrisia! Venho para estar só. Para não ter de olhar para o visor do telemóvel. Para não precisar de ir ao Facebook. Venho para dizer Não sei, porra!, para escutar com emoção, com uma profunda paz interior as suítes de Bach, para escutar os meus passos na terra molhada, para compreender o peso deixado pelas minhas botas no tempo e no espaço!

‒ Não sei, porra!

Não sei o que significa acreditar. Se ao menos pudesse a humanidade valer-se a si mesma, cuidar dos seus próprios males, cumprir metade dos seus sonhos… Se ao menos meia humanidade gostasse das coisas que não têm preço, que não se compram, que não se oferecem embrulhadas… 

Venho para estar só. Venho passear neste parque quando os dias, como sacos de gelo, pesam estranhamente sobre o corpo e o paralisam. Ultimamente é de silêncio que preciso. E de verdade. Não sei o que significa acreditar. Sei tão-só que nalguma parte do universo, nalguma galáxia ou hipergaláxia, nalguma nesga física ou metafísica do espaço-tempo, algo ou alguém terá resposta para essa pincelada de ilusão que nos submerge, algo ou alguém capaz de abrir brechas na redoma de gelo que, como aos peixes de Hyde Park, nos ameaça asfixiar nesta manhã fria de dezembro.

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Pessimismos e happy ends: um guião, o filme

Sven Fennema
Fotografia de Sven Fennema

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Acordei esta manhã encavalitado num ponto de interrogação: porque somos todos tão pessimistas? Todos, sim! Ou quase todos! A esmagadora maioria dos espécimes da espécie! Pessimistas, avessos à ideia de sorte, descrentes de que o happy-end ainda se vende nos mercearias antigas e nas lojas gourmet, aziagos, autorrebaixadores, soturnos. Porquê?

Eu sou um dos tais.

A vida deu-me sempre com o rolo da massa e é caso para dizer que me habituei a caçar o meu quinhão de felicidade e a fugir através de buracos impossíveis na parede. Sou dos que acham que isto não vai passar, que isso não tem remédio, que aquilo não se resolve num passe de mágica. Sou dos que pedem por favor que não me massajem as costas com meia dúzia de palmadas amigas e o ego com duas frases exclamativas. Sou dos que pensam que a minha equipa ainda vai sofrer um golo nos cinco minutos derradeiros do jogo, que desaba num desânimo invencível se ela tem só meia hora para empatar a porcaria do jogo. É-me inato descrer na possibilidade de um golo salvador a meia hora do fim.

Eu sou dos tais, dos derrotistas, desse partido principal de homens e mulheres calejados.

E, contudo, acordei esta manhã a meditar em factos inegáveis e objetivos históricos. Escapei com menos de dois anos aos ataques da bronquite e da asma. Escapei a um atropelamento aos doze. Mais tarde a um aparatoso acidente de viação. Escapei a uma peritonite apendicular aos vinte e um. Escapei, aliás, a quase todas as ites que vêm certificadas na legislação (otites, gengivites, gastroenterites, a uma parotidite infeciosa). Escapei intacto a todas as turmas de todas as escolas por onde passei, como professor, formador, estagiário ou simples assessor pedagógico (muitos afundaram nestas selvas não cartografadas). Escapei a manobras partidárias e a habilidades políticas. Escapei aos desgostos, às perdas, às renúncias e aos vexames. Escapei até ao tribunal terrível do espelho e aos castigos da consciência, algures no alçapão da alma (ou do córtex cerebral). Ainda não morri neste país demente e corrupto!

Pessimista até dizer chega.

E, porém, esta manhã acordei rodeado por um silêncio de pássaros cantando (peço encarecidamente que saiam e batam a porta, se se põem para aí, do outro lado da parede branca, a assinalar-me paradoxos, oxímoros e nonsenses). Acordei desempregado, mas saudável. Abatido pela fadiga, mas depois de uma noite intensa de escrita. Triste, mas feliz. Porque acordei. Porque aqui estou, diante vós, confessando-me pessimista em greve, derrotista em crise, se calhar (afinal) talvez um pouco, um pouco mais, de otimista, vencedor até aqui nos palcos em que a vida e a morte debateram posições e se convenceram de que o seu jogo de xadrez deve continuar.

Acordei agarrado à bengala de uma profunda meditação.

Porque nos acontece (não raro) desatarmos a questionar tudo. E quando digo tudo, quero dizer tudo. Mais ou menos como quando decidimos arrumar umas coisas na garagem e damos por nós a remodelar a casa, a pintar as paredes, a trocar de carro. E eu acordei assim, triste, feliz, falando em voz alta para mim mesmo em silêncio, perguntando, respondendo, questionando.

Que raio! Porque não levantar o traseiro e fazer alguma das coisas que sempre quisemos ter feito? Porque não meter na cabeça de uma vez por todas que somos tipos fantásticos, com humor, charme, inteligência? Porque arrastar, como uma sombra, como o peso de uma maldição, a crença de que acabaremos mal, enxotados, sarnentos, lambendo as feridas? Porque não preferir a luz limpa de uma narrativa boa, com final memorável? Se os amigos não faltam? Se a cabeça, mesmo muitas vezes no meio das nuvens, continua acesa e a fervilhar de ideias? Se o coração cicatrizou de todas as punhaladas e ainda bate?

Talvez tenhamos nascidos gauches como Carlos Drummond de Andrade, mas não nascemos avessos à simpatia, nem à confiança, nem à certeza de que quem iniciou este filme (com um argumento de tal qualidade) o pode terminar melhor ainda. Deus, os deuses, as leis da Física Quântica, todas as leis do universo, parecem ter sabido sempre acomodar as coisas. Admitamo-lo: a própria existência é um acidente feliz.

Bebo, por isso, o meu café matinal com aquela sensação de que algo em mim aconteceu, de que qualquer coisa transmudou, como quando um grânulo de areia sai finalmente de dentro da peúga atormentada. De resto, o mais extraordinário dos epílogos, como num filme de mestre, é aquele sobre o qual nada sabemos, de que pouco suspeitamos, em que nos resta esperar. E este, o da vida, não duvidemos, é obra para limpar os óscares todos!

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Um povo que não ama a poesia é um povo estúpido: ponto!

Victor More
Fotografia de Victor More

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Aceitemos o facto: nós, os portugueses, estamo-nos positivamente marimbando para a poesia. Acrescentemos essa a outras famigeradas sinas: nós, os portugueses, damos o litro a escrever poesia, mas estamo-nos nas tintas para a poesia dos outros. Nós, os portugueses, como os demais povos que já foram um dia burgueses, que tiveram já na sua História a fase do ócio, da novela e dos sonhos cor-de-rosa, gostamos é da Carochinha. Matemática, ópera e poesia é que não! Que horror! São abstrações que dão trabalho (levam séculos a aprender) e tempo é coisa de que nós, os portugueses, não possuímos. Em regra, depois das séries da TVI, do futebol e das tricas políticas, nós, os portugueses, mal conseguimos olhar para a filharada, para as contas nos envelopes por abrir ou para o aviso do condomínio. 

Não custa nada aceitar. Basta aceitar! O facto é este: na terra de Fernando Pessoa, o tuga gosta é do Tony Carreira. Camões é fixe, mas desde que deixou o Benfica é só uma glória enfeitada na praça com merda de pombo. Antero de Quental, Camilo Pessanha, Jorge de Sena, Sophia, Torga são uns chatos que às vezes aparecem mesmo à frente dos nossos olhinhos, escritos nas placas toponímicas. Devem ter sido bons atores de algum Big Brother primitivo. Mas esta rapaziada, este mulherio bronzeado da TVI, este luxo de mamas de silicone e cabelo à moicano depressa faz esquecer os cotas do passado. É a lei do tempo. É tudo sempre a correr. Que o digam os portugueses, que mal começam a ler uma extensa reportagem de dois parágrafos no jornal do metro têm de se interromper, visto a saída ser na estação a seguir. O facto é esse. Aceitemo-lo. Nós, os portugueses, estamo-nos a cagar para a literatura, especialmente para a poesia. 

Pela parte que me toca, contento-me com a meia dúzia de amigos que põem gosto nas minhas publicações do Facebook. Está lá a foto. Está lá a hiperligação. Está lá a citação de qualquer coisa (lidimamente poética) que publiquei no blogue. Tudo muito limpo, muito virtual, muito apelativo. Contento-me em publicar digitalmente, porque entretanto (reza-se por aí) a crise chegou às editoras, que gostam muito dos novos, lhes admiram a coragem, lhes vaticinam prosperidade, mas que entretanto lhes fecham as portas. Menos aos novos já consagrados. Esses são vinho de outra pipa. Esses sempre vendem alguma coisita que dá para cima de quatro dígitos. Desde que escrevam de vez em quando (pode até ser; muitas vezes é) um mau romance. Só para acertar as contas, equilibrar números, projetar a imagem… 

Claro que um poeta pode ter sucesso. Imenso, aliás. Nem precisa de se esforçar por aí além. Pode atirar-se às rimas. Poder aguçar a redondilha. Pode treinar primeiro com quadras de S. João. Ganhar um prémio ajuda. Depois é só pedir um patrocínio à Junta de Freguesia, ou à Câmara, ou ao primo que tem um negócio de fazendas. E lá sai uma «Seara de Versos», umas «Folhas Avulsas», um «Parnaso Popular». Depois é vê-lo faturar! Basta impingir um exemplar a cada cliente, no fim de lhes engraxar os sapatos e limpar as mãos aos desperdícios. Basta estar à porta da igreja, no final da missa. Basta pô-lo no Talho da Dona Rosalina, ao lado dos chouriços e do salpicão! 

Também eu comi o pão que o diabo amassou para chegar às livrarias. Consegui-o a custo, engolindo sapos, entretendo-me com vigaristas, perdendo o tempo a fazer de conta que acreditava nas explicações. De toda a poesia que fiz sair em livro não lucrei até hoje um cêntimo. Exceto, claro, o que ganhei nos prémios. O país não tem como pagar a abundância de génio e de candidatos ao Dicionário da Literatura do Professor Álvaro Manuel Machado. De resto, «direitos de autor» é uma daquelas expressões que provocam asma. Tosse-se muito quando se pronunciam as três palavras. Um tipo com vinte e poucos anos imagina-se a dar autógrafos, a responder às entrevistas, a ser conhecido na rua. Só a calvície faz compreender (mais vale agora do que depois) o sujo pragmatismo do dinheiro. Faz-se perguntas à mesa do café. Volta-se a tossir muito. A conversa, como a viagem daquele agrimensor de Kafka, não leva a lado nenhum… 

Um tipo, por maior poeta e boa pessoa que seja, farta-se. Um dia diz «Puta que pariu esta merda!». Um dia chega mesmo a ameaçar «Meu grande filho da puta, quando pagas o que me deves?». Diz outras coisas afins (limito-me a citar), mas acaba por desistir. Os poetas são seres instáveis, cansam-se depressa, não sabem senão pensar em metafísica. Prova a história (e a fonologia também) que decência não rima com editor. E um poeta, ainda que vibre fundo o desespero, acaba por encontrar outra solução. 

Estamos na época da edição de autor. Estamos a voltar ao começo, ao tempo em que Camões, com Os Lusíadas manuscritos debaixo do braço, ia mendigar esmola para pagar a tipografia. Saibam os portugueses que o caché no tempo de Camões era ridículo. Não, portugueses, era tanga aquilo há pouco: Camões não foi jogador do Benfica. Não, Camões, não era o tipo do Conta-me como foi! Quer dizer, também havia um Camões no Conta-me como foi. Mas estamos a falar doutro Camões, portugueses. Este Camões era poeta: um desgraçado; passou pessimamente. Para compensar deram-lhe um feriado. Sim, portugueses: o 10 de junho! Não, portugueses: tenho a certeza de que Camões não jogou no Benfica! 

Mas os feriados são caros — não queiramos ouvi-lo da boca do Primeiro-Ministro! Não conto, portanto, que me deem um. Nem que me fique o nome gravado numa tabuleta, depois de uma rotunda, ou à entrada para um beco sem saída. Nem que me leiam (com voz rouca, pose melodramática, lágrimas nos olhos) nos saraus semanais da associação cultural e recreativa, sita na rua-de-não-sei-que-antigo-ministro-do-ultramar. 

Contento-me com a minha meia dúzia de leitores. Com a perspetiva de que melhores dias surjam no horizonte e com eles uma geração inteligente, capaz de saborear um poema como se saboreia um pitéu; capaz de ler um poema como se lê a bula da Aspirina, com inteligência e sobriedade; capaz de ensinar aos filhos um poema como se ensina um conto popular ou uma adivinha… E não digo um poema recolhido do Jornal de Notícias. Digo um poema de Luiza Neto Jorge, um poema de Nuno Júdice ou um poema de Herberto Helder. 

Estou a exagerar? Não, nós, os portugueses, é que estamos demasiado acostumados ao pouco. E a pouquidão (a palavra existe e assenta-nos que nem uma luva) não nos tem levado senão a preservar nos genes, com o passar dos séculos, contra o ardor da História (como num frigorífico) a mesquinhez, a futilidade e a inveja. Por contraponto, um povo capaz de vibrar com um bom poema será (é) um povo inteligente, sensível e evoluído. 

Não peço glória. Peço um povo em condições. Foda-se, portugueses! Isso é pedir muito?

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Amélia Tarruca

Amélia Pereira (1936)
No seu casamento, em 1936

in memoriam

A minha avó Amélia nasceu há precisamente um século! Não é fácil encontrar palavras que descrevam esta mulher, essa matriarca cujos dias terminaram em grande sofrimento físico, desprovida de fala, paralisada e incapaz de alimentar-se. Expirou no preciso lugar onde escrevo estas palavras, o mesmo pequeno quarto que a viu atravessar um longo outono até perder-se no nevoeiro da cegueira, quem sabe rodeada pela memória dos seus mortos e das muitas imagens que aquilatou em vida.

Nas redondezas ficou conhecido como Mélia Tarruca, nome que ainda hoje perdura, associado a gratas recordações dos que a conheceram e lhe sobreviveram. Era desbocada, sim, capaz do palavrão intempestivo. Era enérgica e reativa, a ponto de comprar uma pistola de cerâmica (dizem que igualzinha a uma pistola de verdade) para ajustar contas na taberna com o marido adúltero. Era humana e sensível, de uma humanidade e sensibilidade genuínas, timbradas pela fome e pela miséria, por duas grandes guerras, pela necessidade de se sujeitar às agruras de um tempo em que nem os campos nem a indústria emergente eram garantias de sustento… Havia sempre um naco de broa, uma gabela de couves, meio caneco de feijão, meia dúzia de ovos, às vezes uma galinha para dar a quem precisasse. A míngua tornou equitativa e generosa a gente desta mesma aldeia onde lhe fizeram um funeral sem fim…

Se fosse viva, Amélia Pereira completaria hoje um século. Cem anos de agruras.

Não lhe conheci a adultez, só a velhice. As histórias que dela me chegavam na infância dificilmente podiam coincidir com a anciã acamada, incapaz já de articular palavra que se compreendesse. Minha mãe, que por ela velou até à morte, recebeu-a cá em casa devia eu ter seis ou sete anos. No princípio ainda caminhava um pouco, com a ajuda de uma bengala. Depois houve uma cadeira de rodas. O jornal da paróquia fotografou-a assim, como um bom exemplo cristão. Vieram duas meninas entrevistar, uma munida de caneta e caderno, outra com a máquina fotográfica. Recordo-me vagamente de tudo isto, que era para mim a distinção de classe, a vaidade de possuir uma avó famosa.

Com o tempo a saúde esfumou-se. Havia que pôr-lhe fralda. Eu ia comprá-las à farmácia. Eram sacos enormes, que não me custavam carregar, porque naquela época os miúdos eram todos homenzinhos e sofria-se de vergonha quando não se podia carregar pesos como um adulto. Minha mãe contou então com a ajuda de minha tia Conceição e ambas davam as voltas, como se dizia, à velhinha. Às vezes havia visitas. Com o tempo rarearam. Porque as pessoas deixaram de ter um motivo para vir. Porque a conversa era a bem dizer um monólogo. Minha avó respondia com monossílabos, revirando os olhos, de quando em quando deixando correr as lágrimas … Sei tudo isto porque espreitava por detrás da porta, à espera que as visitas trouxessem um cartucho com doces… Ou bananas. Incompreensivelmente as visitas traziam cachos de bananas e eu ficava fascinado com as visitas que as deixavam amarelejar em cima da cómoda e se despediam da minha avó como se faz a uma criança pequena, com inflexões de voz artificiais e claramente paternalistas.

Só compreendi exatamente quem foi esta mulher após a sua morte. Muita gente me contou sobre ela histórias preciosas, informando-me do seu caráter tenaz e frontal. Por exemplo, a história de quando descobriu a amizade do meu avô, seu marido, por certa mulher de índole incerta. Avisada por vizinhos, entrou de rompante na tasca onde os adúlteros confraternizavam com a escumalha do vinho e das cartas. Pediu que lhe enchessem o vasilhame do azeite e puxou da pistolita.

«Manelzinho, encha-me esta botelha de azeite, enquanto eu vou ali fazer duas mortes!».

A amante fugiu espavorida pela porta. Meu avô, espavorido também, lançou-se por uma janela alta, em direção às traseiras da taberna. Morreria sem saber onde a mulher tinha obtido a arma e onde a guardara. De caco, explicam-me, entre risos, E também esse pormenor ele ignorou até ao fim dos seus dias. Mas o bastante para acabar com as veleidades românticas fora do casamento!

Contam-me que, já com vários filhos pequenos, se deslocava a pé até Vizela, para trabalhar numa fábrica têxtil. Aí cuidava do mais novo, deixando a casa entregue à filha mais velha, pouco mais que uma criancinha. Trabalhava-se muito, ganhava-se pouco, desfazia-se a saúde nos teares e na violenta desagregação do mundo rural em que havia nascido a década de 30. Mas também aí se moldava a têmpera combativa e o arregaçar de mangas que tornou a família incapaz de aceitar que o céu lhe caia em cima sem ao menos ensaiar uma resposta.

Dos filhos que teve sobreviveram sete. Quatro raparigas e três rapazes (dois dos quais mobilizados para a Guerra do Ultramar: um chegando no dia em que o outro partia; o terceiro fugindo para França, a salto). Não se diga que enfrentou a triste sina de os enterrar, porque não aconteceu tal, felizmente. Meus tios regressaram todos, sãos e salvos. Ainda hoje são sete os filhos que sobrevivem, com suas mazelas, mas vivos e amigos uns dos outros. Quantas famílias não se podem gabar do mesmo?

Se fosse viva, minha avó Amélia talvez nos desse com a bengala e nos chamasse alguns nomes pouco simpáticos. Metia-nos na ordem. Era assim com as filhas, por exemplo.

Contam que amanheceu o dia em que determinado padre se aproximava pelo caminho rural, mesmo ao lado da casa velha. Vinha devagar, meditando o seu breviário e os seus pensamentos. O padre, ao que parece, não era boa rês. E o dia corria mal por causa de certo número de frangas que haviam escapado do galinheiro a andavam escarafunchando o cebolo. Minha avó praguejava alto e bom som contra as filhas negligentes. Fizeram-lhe notar a aproximação do clérigo.

«Eu quero que o padre vá para o caralho e vós também, minhas grandes putas!»

Assustado, o padre persignou-se; elas cobertas de vergonha refugiaram-se como puderam. Ficou a velha Tarruca sozinha na leira, de vassoura em riste, berrando e espalhando o terror entre as galinhas tresmalhadas.

É de longe o meu antepassado mais conhecido nas redondezas e, sem dúvida, o ascendente de que mais me orgulho.
Porque esta avó proverbial, que não tinha pejo em desdenhar de um mau padre (hipócrita, ao que parece), era capaz, em contrapartida, de mandar uma filha com um açafate cheio de víveres a casa de fulana, beltrana ou sicrana, a quem o marido dava porrada como milho mas não o dinheiro para se governar.

Sirvo-me das palavras dos outros, da memória dos outros, do regozijo dos outros para compreender a razão deste apreço pelo “politicamente incorreto” que me corre nas veias. Talvez o instinto para desprezar as inutilidades e me conservar num torrão afetivo, que há de ser sempre escasso, mas incorruptível!

Se fosse viva, Amélia Pereira, mãe, avó, criadora de filhos e de netos, faria hoje cem anos. Escrevo no preciso lugar onde expirou, às primeiras horas do dia 27 de setembro de 1994.

Como escritor e cronista da família, cabe-me conservar, pelo menos um pouco mais, este relicário de memórias e de o passar aos outros… Quando explico a algum velhote da terra a minha ascendência, o parentesco com a Mélia Tarruca, logo um amplo sorriso fraterno nos envolve aos dois, como a capa de Martinho.

«A sua avó era uma grande mulher», «A Tarruca era uma mulher muito direita!», «A sua avó matou muita fominha, Deus a tenha!»

Nasceu há cem anos, a 15 agosto de 1913.

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