Gosto do silêncio

Antje Woolum
Fotografia de Antje Woolum

 

«Os olhos percutentes encontram os meus. Quem diria que são olhos dormentes? O silêncio. O silêncio. Quando o azul desce, e se transforma no negro chumbado da noite, acende-se sobre ele uma densidade que o protege, e lhe permite continuar a vadiar. Convido-o para o meu quarto, que se desfaz na espuma do texto.»
Maria Gabriela Llansol, Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004 (Lisboa, Assírio & Alvim)

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Gosto do silêncio. Gosto tanto do silêncio que aprendi a recusar quase todas as formas de convívio social, incluindo algumas do amor. A arte de me escapulir. A arte de me esgueirar. De contornar a obrigação do alarido. De ter de condescender com o telemóvel indiscreto. De ter de aceitar como um destino a arruaça com a sua música ordinária, a imitação do mau folclore brasileiro, o karaoke deprimente e o interminável festival de verão, os apitos na estrada, a mota que acelera todos os dias na nossa rua às duas e meia da manhã, a televisão aos gritos no apartamento ao lado, o fanfarrão da construção civil, a piada pornográfica, a fulana de voz nasalada, insuportável, o casal que discute a toda a hora, o puto lagrimento… De ter de tolerar todos quantos, a coberto de uma suposta celebração, sem pejo, multiplicam, amplificam, semeiam o ruído. De ter de mostrar boa cara para o altifalante e o megafone. De ter de curtir o palco e a coluna gigante. De me agradar com o fogo de artifício e a summer party, o chinfrim do tambor e, mais tarde, da bateria às mãos do filho do vizinho. De me deliciar com as noites de aniversário e a televisão nos dias de dérbi. De ter de ignorar os infindáveis duches e os tacões de salto alto sobre o teto, as descargas de água e a grita sexual durante a madrugada…

Gosto do silêncio. Do silêncio que me afasta dos lugares e das pessoas da confusão. Do silêncio que me faz caminhar por entre campos, ao longo de várzeas e veredas estreitas, onde o trissar da passarada e o assobio dos insetos, o rumorejo da água nascente e o ciciar do vento tornam cada instante mais íntimo e integrador de mim em mim próprio, purificador, apaziguador, poderoso! Gosto do silêncio. Do silêncio que é uma forma de linguagem, leve e subtil como as coisas que não víamos e vemos de um momento para o outro. O magnífico rendilhado da teia de aranha, na manhã de inverno, na esquina do celeiro, pejado de gotas de orvalho. O ondular enxuto da cizânia, quando as tardes de primavera derrotam definitivamente as chuvas de abril e abrem o coração mais empedernido para o cheiro absolutamente maravilhoso da terra. A ramagem consoladora das figueiras, nos dias inclementes de agosto, junto ao tanque de pedra, quando o calor parece paralisar toda a paisagem e envolvê-la (com os seus pardais de bico aberto) numa sonolência sem fim.

Gosto do silêncio. Do silêncio que lava os areais sofridos, minutos antes do pôr do sol, e nos penetra os poros e os ossos e nos torna da mesma matéria vaporosa do oceano e do horizonte frio. Do silêncio que sopra para lá das dunas e para cá dos lábios calados. Do silêncio que se encontra e nos faz encontrar a sós com os pensamentos mais inacessíveis, como se por ele brotasse a consciência e os pontos cruéis da agulha que nos cicatriza as feridas mais dolorosas.

Com o passar dos anos, venho-me tornando num viciado em utopias. O silêncio é, talvez, uma das últimas (malogradas) utopias do nosso tempo. Desaprende-se, desaprendeu-se rapidamente, a virtude de escutar, de perscrutar, de fechar os olhos e querer a paz. De exigir respeito pelo sossego e pela quietude. De protestar contra todas as formas que atentam contra o silêncio. Como tão bem escreveu Manuel Hermínio Monteiro (numa crónica publicada na revista K, em janeiro de 1992, e que viria a ser incluída em Urzes), «Andam a destruir o silêncio»! Andam a destruí-lo criminosamente, fazendo morta, cadavérica, putrefacta, a letra da lei que deveria proteger-nos de nós mesmos. Andam a destruí-lo, como o fazem com as nossas florestas, com os nossos mares, com a nossa sensibilidade, com os nossos sonhos e ilusões, com a nossa intimidade. Andam a destruí-lo, individual e industrialmente, desde os brinquedos irritantes que fabricam para as crianças aos dispositivos eletrónicos que apitam, avisam, repercutem, tremem, zumbem, estertoram, buzinam, chafurdam de som ao nosso redor a toda a hora…

Manuel Hermínio Monteiro, no texto atrás citado, pergunta: «Num lugarejo ouvem-se os seus respectivos altifalantes e os dos lugarejos vizinhos. Com tal arraial, quem ousa hoje em dia meditar?! elevar a alma a Deus…? e ter a triste sina de levar com uma pancada sonora nos tímpanos das emoções?» Será essa a questão? Reproduzir o ruído para esconder o homem de deus? Para calar angústias inconfessáveis? Para esquecer as origens telúricas, simples, quiçá primitivas?

Andam a destruir o silêncio. Última, desesperada ponte, creio, para o melhor de nós próprios. Como maravilhosamente ensinam Bashô e a meditação budista. Como maravilhosamente ensinam a música e a poesia. Como maravilhosamente ensinam o vento e as noites de solidão deliberada. Andam a destruí-lo. E ninguém parece importar-se muito com isso!

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Lembro-me de tudo

Fotografia de Örvar Atli Þorgeirsson

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A praia esvaziava-se até à melancólica reunião das gaivotas. Era então uma profusão de sulcos em forma de cunha e gritos selvagens. O ronco do mar, com o ir vir das ondas, desfazia-se num som borbulhante de espuma e cansaço, como se também o mar arquejasse e pedisse a noite. O vento erguia nuvens de poeira e tornava-se cada vez mais forte e frio, fazendo oscilar as bandeiras das marcas de gelados e as tolhas coloridas, ao longe, nas varandas dos prédios. Era essa a hora amada. Um pouco antes do sol-pôr, na travessia final do dia para a noite, quando podia caminhar praticamente só pelo areal e sentir os pulmões inchar com a mescla de elementos contrários, húmidos e enxutos, vindos das entranhas do oceano e das dunas áridas, onde rizomas resistiam e abrigavam um sem-número de ervas aromáticas.

Da planta dos pés às circunvoluções do cérebro, todo o meu ser habitava ali e ali se deixava habitar pelo tempo e o espaço. Às vezes a brisa fazia enfunar o casaco de malha e o capuz parecia tenso, como a vela de um navio. Não raro, a respiração do sargaço fazia-me recuar até à infância mais remota, até antes das minhas primeiras memórias, aquietando-me num pensamento infindável de paz e bem-estar. Era como se tivesse sempre pertencido a esse instante e tudo antes não tivesse passado de um desvio involuntário. Eu era aquela ali!

Caminhava primeiro para norte e depois em sentido oposto. O calção arrepiava-se com os salpicos de alguma onda mais veemente, álgida, cansada. E depois com os salpicos quentes de alguma represa pueril, deixada para trás, no seu tortuoso desenho de canais e torres de areia molhada e onde permaneciam agora algum caranguejo ou alguma estrela tresmalhados e sem vida.

Foi assim que nos conhecemos. Julgo que o destino nos faria aproximar de uma ou de outra maneira. O primeiro vislumbre aconteceu numa dessas evasões de agosto, quando me deixava guiar pelos cheiros e pelo recorte azul acinzentado das montanhas galegas.  Tudo muito simples, espontâneo, quase sem história. Não sei qual das duas reparou primeiro na outra. Nem como chegámos à palavrosa descoberta das coisas comuns. Tudo singelo e doce, como numa canção. Sem sobressaltos. Sem a urgência de um reencontro, de um nome, de um perfume. Tudo crepuscular e delicado, como blandícia de uma voz ou de uma brisa.

‒ Olá!

‒ Olá!

Sorrias. O teu sorriso era, ele próprio, um lugar dentro da paisagem. Foi assim que nos conhecemos. Saía do meu casamento. Devorada pela incompreensão, adendo devagar, esboroada pela dor e pelas traições, pelo nojo… Caminhava sempre com os olhos enregelados, como se um vidro maldito os tivesse aprisionado e subjugado. Caminhava a essa hora, em que o dia e a noite dão as mãos e se despedem e nos pedem uma derradeira prova de coragem. Dizias amiúde:

‒ A primeira coisa que amei em ti foi os teus olhos… Tão tristes…

Foi assim que nos conhecemos. Até que eu própria descobri o meu amor por ti. Quando tive a certeza de que talvez pudesse não voltar a ver-te e me queimou uma sensação precoce de perda.

‒ Não quero que partas!

E tu sorriste. E o teu sorriso era um lugar dentro da paisagem, onde, como num pingo de âmbar, se deixava antever o futuro, selado e transparente, irremediavelmente perto e intocável.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu sabia que cada instante vivido contigo era agora um acumular de memória. E eu sabia que aquele primeiro vislumbre se parecia eternizar, mais vivo do que tudo o que vivera.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu revia o teu vestido salmão, a tua pele morena, os teus pés descalços, o teu olhar penetrante, meigo, inquiridor, faiscando como um pequenino carvão indecifrável.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu sabia que partirias primeiro, que te velaria numa mágoa sem fim, que regressaria a este areal, que caminharia só, nesta hora de abandono, em que uma espécie de espuma gélida se segrega do ventre rumoroso do mar.

Lembro-me de tudo. Das noites que se seguiram. Dos rostos sombrios sobre nós. Dos paredões de ódio contra o nosso amor proibido. Das incertezas e dos choros. Das noites que se seguiram. Da solidão que é maior quando ousámos enfrentá-la. Da praia vazia. Das nuvens ofegantes e dolorosas, carregadas de grãos de areia. Dos anos que vivemos recompreendendo tudo. Da felicidade inesperada que nos abriu, qual gazua omnipotente, o sentido de todas as coisas. Lembro-me de tudo.

‒ Amor e morte andam sempre por perto. Como a terra e o mar. Como o dia e a noite…

Lembro-me de tudo. Das palavras que dizias, vindas de não sei que país inabitável. De que premonição terrível. De que sabedoria tua, temível, temida…

Foi assim que nos conhecemos.

E quando soube que amar-te era possível, deixaste-me. Aos poucos. Primeiro, no cimento intransponível de uma casa onde me não deixaram entrar. Depois, nas paredes brancas de um hospital, onde me aceitavam, fugaz e criminosa, como um gato. Porque era proibido o nosso amor, e eu soube que era possível amar-te.

Lembro-me de tudo. De saber então, quando aqui partilhávamos o lusco-fusco, que um dia, passassem os anos mais depressa ou mais devagar, este lugar me serviria de refúgio. De saber então, quando a felicidade crescia e me curava as lentas feridas de um outro tempo, que um dia regressaria aqui, como regressam todos os que amam aos lugares onde descobriram o amor. Lembro-me de tudo!

‒ Olá!

‒ Olá!

Sorrias. O teu sorriso era, ele próprio, um lugar dentro da paisagem. Foi assim. É sempre assim. Porque o amor nos escolhe e não o contrário. Tudo muito simples, espontâneo, quase sem história. E tu dizias, dizias muitas vezes, e eu queria que o dissesses:

‒ A primeira coisa que amei em ti foi os teus olhos… Tão tristes…

E eu sabia (sempre o soube, desde a primeira vez que nos vimos) que o destino nos faria aproximar de uma ou de outra maneira. Porque o amor nos escolhe e não o contrário. Mesmo contra rostos sombrios. Mesmo obrigando-nos a quebrar paredões de ódio e de betão. Mesmo depois da morte.

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Tudo gente boa

Rui Palha
Fotografia de Rui Palha

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Sempre foi um defeito considerável este meu hábito de meter conversa e querer conhecer as pessoas. Não consigo ficar-me pelo «Bom dia», «Boa tarde», «Como está?», «Como tem andado?». Às duas por três, estou a saber a alcunha, a parentela, a história do divórcio, os resultados dos exames médicos, os sonhos de infância de toda a gente. E a compreender, a consolar, a aconselhar, a passar a mão pelo ombro, a dizer «Vai ver que sim! Vai ver que sim!». E a contar algo meu, a explicar que isto custa a todos, a mostrar que não há nada mal nenhum em ser-se frágil, querendo ser-se forte, nas coisas que nos tocam mais fundo.

Sempre fui incapaz de ignorar uma boa história, mesmo se para a conseguir me arrisco a uma reprimenda. Porque é fácil exasperarem-se comigo, pelo tempo que demoro nas lojas, na rua, no gabinete, na sala de espera, no parque de estacionamento. Só para me despedir do colega, da moça do balcão, do amigo reencontrado, do pedinte, do transeunte estrangeiro (de guia turístico em punho).

‒ João, vens?

‒ Já vou, amor! Espera só um bocadinho…

Aprendi este ofício com Maria Antonieta, vendedora ambulante, peixeira, na cidade do Porto, quando lá vivi, nos tempos universitários. Aprendi com esta profissional da psicanálise o costume de ler nos olhos e de entrar, com licença ou sem ela, nos corredores complicados da alma e da cabeça de cada pessoa. Aprendi-a como se aprende o jargão, ou uma anedota, ou um trejeito, ou seja, à conta de tantas vezes conversar consigo, de me rir consigo, de lhe entregar confidências, de lhe escutar outras tantas à puridade.

‒ Olha, olha… O senhor doutor da mula ruça!

‒ Bom dia, dona Maria Antonieta…

‒ Ó caralho, que cara é essa?

‒ Cansaço… Estive a fazer noitada…

‒ Menino, cara de enterro não faz dinheiro! Cara de gente é que é sempre para a frente!

E trepávamos os dois a escadaria íngreme da rua da Bandeirinha; ela, de avental plástico e com a canastra sobre uma rodilha na cabeça, saracoteando as ancas; eu, com o saco a tiracolo e a Teoria da Literatura do Aguiar e Silva debaixo do braço. Enquanto não desembocávamos na praceta, ficava ao corrente da humanidade vizinha: das maleitas e da solidão da dona Esmeraldina, octogenária com filhos mas sem família; dos cornos do Freire, a quem sempre faltou coragem para o suicídio; dos calotes da Magali, beldade da rua que diziam ser acompanhante; da condicional do Francisco Terra, regressado meia dúzia de dias antes de Paços de Ferreira.

‒ Tudo gente boa. Conheço-os como a palma da minha mão…   

E eu, dividido entre as mamas da Magali e o descontrucionismo de Derrida, a aceitar a explicação.

‒ Tudo gente boa… Dava um rim por esta gente, menino… São meus fregueses e meus amigos… Quando for dar aulas, vai ver como se afeiçoa depressa à miudagem…

‒ Sei lá se vou dar aulas…

‒ Ó caralho, que anda você a fazer com os livros?… A passeá-los?…

Aprendi a ir ao fundo das coisas, a deitar a rede onde o parece ser em menor número e miúdo, quase insignificante. Aprendi-o com jeito, com modos, com arte, com a intuição de que por detrás de cada rosto se esconde uma vida, com o respeito que se exige a cada mágoa e a cada miséria.

‒ Ó Xico, fica lá com meia dúzia de chicharros, homem!

‒ Hoje não.

‒ Caralho, se tos dou, é porque hoje vais ficar com meia dúzia de chicharros…

E o Xico anuía, com o cigarro amolecido, barba por fazer e olho inseguro, relampejando a cólera e a aguardente.

‒ Olha lá! Tira-me esse cu do sofá e vai dar uma volta! Deita-me o olho ali à velhota. Ela que tome o remédio. Se precisar de ir à farmácia, diz-mo tu, ouviste? Tira-me esse cu de casa…

E o Xico dizia que sim com a cabeça, agradecia em monossílabos, aceitava um pouco de luz pelos intervalos da sua paliçada.

Fiquei com o costume. Absorvi-o à medida que me foi parecendo ser mais e mais urgente espalhar essa luz por outras humanidades. Porque a humanidade, em geral e decerto em particular, vive como uma toupeira, escavando às cegas e vivendo sem alegria. Sei que irrito, que aborreço, que prolongo um simples encontro casual, uma compra, um pedido de informação, um «olá», num acontecimento, às tantas numa gargalhada, algumas vezes numa lágrima à esquina do olho.

Tenho escutado reprimendas, avisos, ameaças. Tudo porque acredito nas coisas boas que guardamos em silêncio. Porque gosto de viver menos depressa e ir ao encontro da alma. Porque, como a varina, prefiro o ritual da luz, a multiplicação dos gestos e das boas palavras.

‒ Tudo gente boa, menino…

Ela, indo-se embora, deixando um rasto brilhante de escamas no empedrado. E os moradores à janela, a cismar, a fumar, a esperar pelo dia seguinte, pela hora do aceno, do cumprimento, da companhia.

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Crónica de um amor sem tempo certo

Dmitry Borisov
Fotografia de Dmitry Borisov

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E foi assim que nos vimos de novo ao cabo de tantos anos. Uma ânsia capaz de guindar as tripas à boca. Sorriso miudinho. Nervoso. Incerto. Palavras curtas, entrecortadas, cheias de salamaleque. Tu, quase sem rugas, com o estupendo ar de quem regressa de uma viagem pelas ilhas gregas. Eu, mais frágil, curvado, capaz de jurar que o tempo passou em duas velocidades por nós. O que tens feito? O que fizemos? Passou tanto tempo. Os teus olhos continuam belíssimos. Mas não convém falar de beleza, que é, segundo a tua própria lição, efémera e enganadora. Eu continuo a dar aulas. Tu vens de Bruxelas, não é assim? Ainda no Parlamento Europeu? Mãos incertas, passeando-se pela mesa, sobre os joelhos, nos braços cruzados e descruzados. Apetece um cigarro. A beleza pode provocar calafrios. Foi já há tanto tempo. Como pode acontecer-nos? Acontecer-me isto? Corriges. Não, Miguel. Trabalho na Comissão. O Parlamento é em Estrasburgo! Claro. Desculpa. Confundo sempre. Uma ânsia destas parece um terramoto ao longo das vísceras. Bolas, estás estupenda. Uma mulher feita. Quando te conheci eras uma criança. De algum modo foste sempre uma criança na minha cabeça. Mesmo durante o breve amor que tivemos. Nessa altura éramos um puzzle impossível de preencher. Olha-te bem, agora. Rosto sereno. A pele tratada. Unhas longas e delicadas. O sorriso esmaltado e branco. O ritmo das frases. O tom seguro com que pedes. Conta-me coisas! Casaste?

‒ Não casei.

‒ E tu?

‒ Mais ou menos!

E as chávenas de café chegam dolorosamente para interromper a primeira revelação. Sempre odiei o amor. Sempre achei que todos se amavam neste universo de sete mil milhões. Todos menos eu. Todos odiamos o amor. Até que um dia alguém nos faz acreditar que uma pequena porção da sua loucura nos foi reservada. E aí amamos o amor. Pertencemos ao exclusivo clube dos que têm sorte. Dizemos que talvez tenha valido a pena o sacrifício, a espera, a deceção…

‒ Então. Conta lá!

‒ Vivi com uma pessoa durante algum tempo.

‒ Ah, sim?

Mas tu esquivas-te. Do assunto fugimos ambos. Porque há coisas que não se explicam. Melhor assim. Seguras a chávena com ambas as mãos, ao teu estilo. Sopras juntando amorosamente os lábios. Depois pedes uma pedra de gelo e um copo e canela em pó. Tinha-me esquecido desse teu ritual. Acho-o delicioso, deliciosamente presente, aqui e agora! Gosto de te ter. Pedes-me que te contes coisas, a vida, a minha disponibilidade para talvez amar. Sou incapaz de omitir-te seja o que for. Conto-te tudo…

‒ Não casei… Nunca vou casar… Sou avesso a tudo o que me querem…

‒ Miguel, Miguel… E as mulheres que não te largam… Como lhes explicas isso?

Uma súbita tristeza abate-se sobre o granito da esplanada. Sobre as paredes da igreja. Contra as casas e as janelas e as sardinheiras resvalando das varandas. Escureceu. As nuvens cortinam a luz forte de maio. Não sei como responder-te. Talvez não queiras uma resposta. Talvez não devêssemos ter perguntado sequer. Quantas vezes é melhor ignorar os factos, ir às cegas de encontro ao porvir, ser uma folha apagada, ou, quando muito, com os vagos sulcos de coisas escritas a lápis. É melhor assim. O silêncio prova-o. Atesta-o o embaraço, as sísmicas convolutas das vísceras sem lugar no lugar das vísceras. És a mulher mais bela que conheci, sabias? Mas não falemos de beleza. O amor é um mito para lá da beleza. És ainda a minha antiga aluna de secundário e já outra mulher. Ainda e já um outro tempo no meu tempo. E talvez deva dizer, enfim, qualquer coisa como isto.

‒ Nunca te esqueci, Eunice!

‒ Claro que esqueceste, Miguel!

‒ Nunca!

Apetece um cigarro. Apetece cair, sair, partir. Odiamos o amor quando o amor nos ignora. Ignoramos o extenso combate de palavras e de sentidos em cada palavra e sentido que se diz e se sente. Tremo. As mãos incertas desejam tocar-te e fogem, querem acariciar-te e fincam-se, procuram o perdão e mostram-se frias. O amor mente com as mãos. Apetece um cigarro. E tu bebes o café. Devagar. Tão devagar que o silêncio e a lentidão parecem arrastar a cena por séculos. Lembras-te daquela canção dos Morphine? Até que um dia alguém nos faz acreditar que talvez nunca tenhamos odiado o amor. Olhos enxutos, rosto sorridente, coração limpo. O que tens feito? O que fizemos? Passou já tanto tempo, Miguel. Os teus olhos continuam belíssimos. Mas não convém dizer tudo. Talvez não se deva dizer coisa alguma. Continuo a dar aulas. E tu? Bolas, estás estupenda, Eunice… Uma mulher feita. Quando te conheci eras uma criança. És outra mulher, agora. O que é feito de ti? E tu bebes o café. Devagar. Tão devagar que o silêncio e a lentidão parecem arrastar a cena por séculos. Às vezes é preciso ser assim. Devagar, tão devagar que o tempo para. E aí vemos tudo com minúcia. Quer dizer, onde encaixar cada peça, como acabar o puzzle. O amor não é outra coisa. Não é, pois não?

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Quando os eternos nos morrem

Herberto Helder (Alfredo Cunha)
Fotografia de Alfredo Cunha

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«A morte – diz o canto – é o amor enorme.» Herberto Helder tinha 33 anos quando publicou este verso (em Poemacto) e é irónico que essa mesma morte, ou outra morte qualquer, tenha finalmente levado um tal poeta. Essa mesma morte, ou outra morte qualquer, foi anunciada quatro dias mais tarde a Tomas Tranströmer ‒ se é possível que um poeta morra! Fica-me de memória esta sua meditação de 1983, deixada no poema «Bilhete-Postal Negro»: «Acontece, a meio da vida, a morte bater-nos à porta / e tomar-nos as medidas. Essa visita é esquecida, / e a vida continua. O fato, porém, esse / é cosido em silêncio.» (cito a tradução de Alexandre Pastor).

Quis o destino que assim fosse. Que se falasse de morte, no sentido puro que a morte pode ter, na estação em que a paisagem se enche com o branco imaculado das magnólias, com o matizado azul do agapanto, com o vermelho da amarílis, com os salpicos da serralha e das pascoinhas, com o verde da hortelã e do funcho, com o amarelo veemente do tojo. O espaço é enxuto, luminoso, celebrante. E, contudo, a morte anda-nos na boca.

É sabido o modo como Herberto Helder (nascido no Funchal, em novembro de 1930) e Tomas Tranströmer (nascido em Estocolmo, a 15 de abril de 1931) viveram discretamente, distanciados de certo ruído que lhes obscurecesse a visão do mundo, fiéis à servidão da metáfora com que definiram tão profundamente o ethos e o pathos humanos. Como tão bem notou Pessoa/ Ricardo Reis, «Cada um cumpre o destino que lhe cumpre», e eles, Herberto e Tomas, cumpriram-no, na certeza, na convicção inabalável de que a poesia fosse esse destino.

Dir-se-ia inevitável o conhecimento destes dois poetas. A muitos de nós, leitores-admiradores do seu (diferentíssimo) espaço criativo, tal encontro deu-se no universitário, em curtas seletas e traduções extraídas do Jornal de Letras, em edições muito folheadas e quase sempre sublinhadas por frenéticos lápis de discípulo. De Herberto havia a Poesia Toda, milagre de edição de que nunca consegui um exemplar! De Tomas Tranströmer havia pouca coisa. Inesquecível, porém, o contacto com a pequena recolha que nos era dada em Vinte e Um Poetas Suecos, de que fiz nessa altura, criminosamente, uma edição policopiada. Beleza plástica e contenção lírica, expressão do pormenor, domínio do inefável, brevidade e sentido de humor, eis como me chegou a poesia do psicólogo Tranströmer.

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AQUELE QUE ACORDOU COM O CANTO SOBRE OS TELHADOS

Manhã, chuva de Maio. A cidade está calma
como uma cabana. Ruas tranquilas. No céu
troa azul-verde um motor de avião ‒ a janela está aberta.
O sonho onde se dorme de membros estendidos
torna-se transparente. Move-se, tateia
pelos instrumentos da visão ‒ quase no espaço.

(Tradução de Teresa Salema, Vega)

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Não me recordo do primeiro poema que li de Herberto Helder. Lembro-me do estremecimento provocado pelo poema que principiava pelos versos «São claras as crianças como candeias sem vento, / seu coração quebra o mundo cegamente. / E eu fico a surpreendê-las, embebido no meu poema, / pelo terror dos dias, quando / em sua alma os parques são maiores e as águas turvas param / junto à eternidade.» (sexto andamento do poema «Elegia Múltipla» de A Colher na Boca). Com fervor quase religioso, como tomado pela mesma devoção com que leem alguns os seus guias místicos, fiz-me acompanhar na última década pelo volume precioso Ou O Poema Contínuo. Li-o integralmente vezes incontáveis, certo de que vive ali o génio e o sortilégio do melhor que se escreveu em língua portuguesa em toda a sua já vasta história.

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Lenha ‒ e a extracção de pequenas astros,
áscuas. De poro a poro,
os electrões das corolas. Somente no mais escuro
não há nada. No escuro a carne é um buraco
invisual, e o que arde é o pão
no estômago, e nos brônquios
cortadamente
o ar. E o carbono devora sono a sono a inocência
das imagens. O que toca o órgão mais profundo
do sopro não é a música
nem chama: apenas um dedo de mármore entre
as têmporas como
uma bala. E enquanto pontas de fogo marcam
a boca, morremos afogados
no espelho, no rosto. E se a loucura um instante
levanta as pálpebras.
A grande válvula do corpo.
A escuridão, a terra.

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Tomas Tranströmer (Ulla Montan)
Fotografia de Ulla Montan

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No verão de 2012 senti um fervor idêntico, quando principiei a ler os Cinquenta Poemas de Tranströmer editados pela Relógio d’Água. Não há na poesia do sueco o ritmo torrencial, encantatório, melódico dos versos de Herberto. Há, ainda assim, a mesma subtileza dos silogismos, o poder da imagem, a afirmação da palavra poética num mundo dolorosa, progressivamente mais prosaico. Há a beleza escultural, marmórea, luminosa de verdades que, não raro nos escapam, e que representam o privilégio da revelação e da sensibilidade poéticas.

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FURACÃO ISLANDÊS

Não um terramoto, mas um sismo celeste. Turner, bem amarrado, podia ter pintado aquilo. Ainda há pouco, uma luva solitária passou por mim redemoinhando a muitos quilómetros de distância da sua mão. Lutando contra o vento, tenho de chegar à casa que está do outro lado do campo. Como uma bandeira, adejo no furacão. Sou radiografado, o esqueleto entrega o seu pedido de demissão. O pânico aumenta enquanto avanço aos ziguezagues, vou a pique, vou a pique, acabarei por me afogar em terra firme. Que pesado se torna tudo o que tenho de arrastar, o que será para uma borboleta rebocar um batelão! Chego, por fim, ao destino. Um último combate com a porta. Já entrei, já entrei! Agora estou atrás da enorme janela envidraçada. Que estranha e fantástica invenção não é o vidro ‒ estar tão perto e não ser afetado… Lá fora, em debandada pelo campo de lava, uma horda de corredores, vestes insufladas, gigantes e transparentes. Mas eu já não esvoaço. Sentado atrás do vidro, quieto, sou o meu próprio retrato.

(Tradução de Alexandre Pastor, Relógio d’ Água)

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É quase manhã quando escrevo estas palavras. O trissar das andorinhas e dos estorninhos enche o espaço. Penso com o espanto de um mortal na complexa roda do tempo. Nos poetas que nos morrem e no quanto lhes devemos. No que dever significa e talvez nem saibamos. Na imprecisão com que se diz morreu o poeta Herberto Helder. Na devastação de se pensar que o poeta Tomas Tranströmer desapareceu. Porque um e outro deixaram seguidores, vagos epígonos, amantes, sementes e metáforas, luz. E talvez pudesse confessar o quanto um e outro trouxeram para dentro do meu coração por vezes despedaçado e maltratado. Ou talvez devesse explicar que a poesia de um e de outro enche uma pequena parte das minhas estantes de poesia, aonde regresso amiúde, como quem pretende converter-se a uma melhor humanidade. Ou talvez pense (pensando melhor) que talvez os poetas morram mesmo e que a morte de um poeta seja talvez a morte lenta da própria humanidade. Talvez pense que afinal não são tantos assim os que se importam e os que têm estantes de poesia em casa. Talvez pense que poucos serão os que regressam a certos livros de poesia como quem regressa a uma fé, ou a uma cela, ou a um certo silêncio impermeável. Talvez a humanidade tenha, finalmente, deixado os seus poetas morrer. E queira morrer com eles e sem eles, numa infinita e incapaz solidão.

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Gosto de conversar contigo

Frank Decker
Fotografia de Frank Decker

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Gosto de conversar contigo. Gosto da tua voz, que é meiga e cheia. Gosto dos teus olhos, caindo e recaindo sobre os meus, tão devagar como duas pedras em câmara lenta. Gosto das tuas palavras. Do teu perfume. Do modo como apanhas o cabelo e penteias as farripas tresmalhadas. Às vezes nem te oiço. Sinto apenas a percussão doce das frases a massajar-me a cabeça. E (nunca to disse) apetece-me mergulhar no teu colo, deixar que me embales, adormecer a teu lado.

A vida é tão igual a si própria. Somos todos tão escravos dela! Tão incapazes de sentir. Como se pudéssemos ter dentro de nós cabos e fios e fusíveis, em vez de sentimentos. E, por isso, um dia disse isto.

– Um dia acabamos morrendo sem termos sequer começado a viver!

E tu sorriste. Era um dia de final de outono. E tu passaste a mão pelos cabelos. Era uma daquelas tardes em que o nevoeiro parece chegar de longe e atravessar a janela e engolir tudo em nós e ao redor de nós. E tu disseste. 

– Acho que tens andado distraído, Xavier! Tens mesmo de abrir os olhos… 

E o nevoeiro vinha de longe, de fora, do fundo. Passava pela janela como um exército marchando, como uma boca devorando a paisagem, como um buraco absorvendo os pensamentos. E eu senti-me tão mole, tão aluído, tão triste que não encontrei palavras e foram elas que se disseram sozinhas. 

– Não ando distraído. Já não consigo é distrair-me. Já vivi tudo. Já sei tudo. Já adivinho tudo. A vida é a porra de uma repetição! Nem um milagre me podia salvar agora. 

E tu sorriste. E o teu sorriso era um astro frio, alumiando a anos-luz. Tocaste-me o rosto, deixaste os olhos cair, soar no imo do poço, afagaste-me o cabelo, meneaste a cabeça, disseste. 

– Estás doente. Precisas de curar-te. Essa tristeza é uma sombra maldita, a pesar toneladas de um peso morto e sem justificação. És tão bonito, pá! E tão infeliz! 

E eu sinto. Não tenho medo de sentir. De experimentar de uma ponta à outra os impulsos elétricos do medo e da surpresa e da desilusão. Nada receio. É como uma vertigem. É como fechar os olhos e ir. Já vivi tanto. E, no entanto, os teus olhos poisaram em mim e puxaram-me. Como um magnetismo sem explicação, eles alavancaram os meus olhos, fizeram-me agarrar uma réstia de luz e caminhar. 

– Gosto de conversar contigo! 

E o teu abraço é desde então uma casa. Nunca na vida tive tanto medo. O teu abraço apertado faz-me sentir desde então uma criança renascente. E eu sinto uma mistura de tortura e de prazer quando me tocas e o teu perfume e a tua voz e os teus olhos aquecem as minhas tardes enevoadas. 

– Tens de abrir esses olhinhos! 

E dou comigo a pensar nos teus cabelos. E a ouvir pela primeira vez as tuas palavras antigas. E a sair de um túnel terrível. E a escutar outra vez o silêncio das ervas e o rumor das coisas que havia esquecido nos meus olhos. E dou pela paisagem descobrindo-se, desembaciando-se, desimpedindo-se. E talvez me apeteça dizer-te palavras novas, enxutas, belas como grãos de cereal e puras como o toque das unhas na pele, como as tuas mãos finas e firmes. 

– Não ando distraído!

E tu, abraçando-me, acalentando-me como um sol inesperadamente crescido entre as nuvens, tu beijando-me como um milagre, tu sorrindo como um vidro amplo e sem mácula, completas a última frase. Que trago comigo. Que levarei comigo.

– És tão bonito, pá!

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Diga-me você, meu caro!

Andre du Plessis
Fotografia de Andre du Plessis

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Foi por esta altura que nos conhecemos. O frio de novembro estampando-se em todas as janelas, eu desempregado, tu no lar de idosos. Aquela frase soou. Certeira e inesquecível como uma reprimenda.

‒ A ruína é sempre mais feia do que bonita, não lhe parece?

Eu desempregado, tu segurando uma bengala, de pé, com olhos trocistas. Em volta um armazém de corpos tremelicantes e babosos, corpos esquecidos retomando às vezes numa grita desenfreada o caminho das dores e da frustração.

‒ Que lhe parece esta velharia toda?

Eu desempregado, ajudando uma senhora a erguer-se, outra a sentar-se. Eu sem voz, aquecendo as mãos desamparadas de um avô a quem o Alzheimer veio furtar os últimos farrapos de lucidez. Eu acabrunhado, aturdido, com a alma pesando-me na alma, como um cacho de melancolia. Eu atrozmente perseguido pelo inverno de uma ponta à outra ponta das paredes. Eu desejoso de me tornar numa centopeia e de poder esgueirar-me por uma fresta. Eu desempregado, em fuga. E tu quieto, vertical como uma âncora suspensa. Em proa. Agudo como um discurso da consciência.

‒ Já viu bem a miséria que nos espera?

Foi por esta altura que nos conhecemos. Que cruzámos palavras. Que estreitámos a distância. Que aprendemos o preço da amizade. Essa que nos obriga a mentir e a falar verdade e a mentir como só na verdade se mente.

‒ Nem tudo na velhice é forçosamente mau, não acha?

Tu muito sereno. Tu muito contido. Tu muito senhor das palavras que, ditas no momento exato, ficam gravadas para sempre. Tu com um sorriso enigmático, quase de mofa, quase de simpatia, quase feliz, quase pungente.

‒ O senhor parece tão bem disposto!

E as velhotas guinchando, chorando, batendo palmas num estertor de loucura. E os velhos, com os coturnos calçados, com o fio de baba, com a lágrima ao canto do olho, enquanto as funcionárias, sempre com voz estridente, sempre fingindo euforia, vinham meter-lhes a sopa na boca, rapar os iogurtes, acomodar-lhes os travesseiros.

‒ Tem aqui tantos amigos!

E tu sem resposta. Tu mordendo o lábio, cheio de intenção. As sobrancelhas franzindo, aconchegando um pensamento satírico, com vontade de me mandar à merda. Tu incapaz de acreditar na piedade voluntariosa. Tu sereno e belo como um mestre grego. Aproximando-te. Mastigando a verdade. Pondo-me a mão no ombro.

‒ Um dia saberá distinguir tão bem a vida da morte, que lhe parecerá insuportável o tempo perdido…

‒ Como assim?

‒  Lá chegará! Lá chegará…

E eu desempregado, à procura de um norte. E tu desprotegido, à espera do fim. Um de cada lado, agarrados à mesma visão, como as duas serpentes entrelaçadas de um caduceu.

‒ Vejo que é bom rapaz. Pena é não ser lá muito esperto…

Foi, sem dúvida, por esta altura. O frio de novembro estampando-se em todas as janelas, embaciando-as, fechando-as numa estranha obscuridade de cinzas e pó. Eu asfixiando, ajudando uma senhora a erguer-se, outra a sentar-se. Tu aos ziguezagues, atravessando um corredor, saindo para o quarto.

‒ Ou talvez seja mais esperto do que parece… E me julgue tolo!

Foi por esta altura que nos conhecemos. O frio de novembro cobrindo os ossos. As horas caindo na penumbra depressa de mais. A noite caminhando como uma sombra gigante sobre os olhos. Foi assim que nos tornámos íntimos. Cheios de retórica. Irmanados pelo mesmo parágrafo de tristeza e de amor. E nunca pude responder-te. Nem agora que morreste e te levam baloiçando, fechado num enigma de mogno, com a cruz ao cimo, feia e sinistra, brilhando, prometendo a eternidade…

‒ Não é feliz aqui?

Eu desempregado. Tu calado, voltando-me uma última vez o rosto, com aquela última frase na ponta da língua, como a despedir, como a dizer, como a perguntar.

‒ Diga-me você, meu caro: o que é a felicidade?

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