«Em Nome da Luz» ou uma Poética do Silêncio

Em Nome da Luz (poesia de João Ricardo Lopes
Crédito fotográfico: União de Freguesias de Fânzeres e S. Pedro da Cova (Gondomar)

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Nenhuma palavra é mais obsidiantemente procurada na obra de João Ricardo Lopes do que aquela que escreve silêncio. Em todos os seus livros, não excluindo os de ficção, ela (re)ocorre investida do peso, do poder, do prestígio de um vocábulo-fétiche (como o próprio autor reconhece [1]), em torno do qual se estrutura uma poética de recusa, cisão e reconstrução do mundo, a partir da visão minimalista que a si mesmo e aos outros impõe.

No seu último volume de poemas, Em Nome da Luz (2022), a palavra-conceito silêncio é convocada em onze das quarenta composições do livro. Significativamente, como o penitente que pratica um ato de ablução, como o neófito que encontra a sua paz, como o caminhante que descortina um sentido para a sua existência, como o criador que define uma fórmula, o poeta anota:

EM LOUVOR DO SILÊNCIO
quando precisas de silêncio,
lavas as mãos muitas vezes,
aqueces sem pressa uma chávena de café,
lês os haicais de Bashô
o silêncio, como os caminhos procurados
entre as cidades, não é absolutamente fiável –
é uma adoração apenas, uma labareda,
onde arde o teu amor
e às vezes, sem querer,
um poema [2]

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Há aqui a verbalização – e recordo apenas o grande mestre Ruy Belo – de um ensinamento que vem confirmar que “Nenhum grande poeta terá deixado de sentir a sedução do silêncio”, porquanto “É-se poeta em exercício, não tanto pelo que se diz como pelo que subtilmente se indica ficar por dizer” [3]. Clarifica-se nestes versos, com efeito, não apenas um intuito purificador, do poeta que deseja desprender-se da sujidade (“lavas as mãos muitas vezes”), mas também – consumada a purificação – o desejo de (re)unir-se a rotinas simples despoletadoras do ato criativo, como sejam o preparar uma chávena de café, o ler os haikus de Bashô, o nutrir-se do fascínio – leia-se “labareda” – que o contacto com as coisas íntimas e despidas torna possível.

Esta grande introspeção que o silêncio traduz para João Ricardo Lopes, sinónima de catarse, de ascese, vem já embrionariamente plasmada em obras anteriores, particularmente no magnífico Eutrapelia (2021). Nele, no poema “Duomo, Milão”, ecoam com leveza espantosa os gestos que o peregrino, o asceta, o homo silens escrevem num esforço de supressão de si mesmos, num empenhamento para o vazio interior e para a busca de redenção:

DUOMO, MILÃO
as primeiras impressões são a pedra talhada,
a luz periclitante nos vitrais
depois os joelhos tocam a madeira
e as mãos tocam o rosto
a oração segregada devagar
num fio de voz
invade a rocha até ao último dos nossos pecados
o silêncio é total.
através das naves e das colunas, ele atinge
o extremo do templo
e é puro
pertencemos a outra era,
as impressões derradeiras são já distantes,
como alguém chamando de dentro de um sonho
ou chamando de outro mundo [4]

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De que se se pode salvar, ou sobreviver, pela catarse sabemo-lo desde os gregos. A força dramática das palavras tem, a par da beleza (rudeza) lírica das suas imagens, constituído uma das conquistas mais sublimes da literatura. No caso particular da poesia de João Ricardo Lopes, poeta que conheço desde a sua inclusão na terceira e última edição da antologia Anos 90 e Agora (2005), tende esta catarse a confundir-se com fuga à realidade, ou antes com uma feroz resistência à realidade, através do alheamento e da busca de solidão, através da escolha de (dir-se-ia preferência por) pormenores dessa realidade que propendem em última instância a anulá-la: falo da realidade que o poeta decompõe e recompõe em elementos simples, insignificâncias, bagatelas, detalhes que apenas o silêncio e a atenção autorizam a conhecer, aquilo a que Jean-Luc Nancy designa por “misérias literárias” [5] e que conferem à sua escrita um ímpeto (por vezes enumerativo) absolutamente encantador.

ESTA MANHÃ O SILÊNCIO
esta manhã o silêncio subiu pelas paredes e pelas asnas,
trepou as travincas, as teias altas, as cérceas geladas
e atravessou a pedra, o cimento, as fissuras, o próprio ar
sou agora toda a minha vida, o meu destino
e a casa estremeceu
e as palavras – ferro congelado –
doeram nas mãos [6]

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O inusitado fundo imagético que decorre das mãos deste outrora novíssimo leva-me a recordar o agrado com que, na malograda Bulhosa, acolhi o seu Contra o Esquecimento das Mãos (2002), quando compelido a estudar a nova geração de poetas, li versos deste jaez:

de refracção em refracção afunda-se
o pensamento nos linhos da casa
é branca a tarde
na alma garimpam-se as impuridades [7]

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Ou:

durante o intermezzo
cumprimos o possível
das enxúndias, do bodum
dos lodos nos limpámos
até sermos desta transparência de água [8]

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Recordo, a propósito, uma conversa com Jorge Reis-Sá, que deste poeta me propôs também a leitura do seu primeiro livro, premiado pela Associação de Escritores Portugueses, em 2001. Nele, um curto poemário intitulado A Pedra Que Chora Como Palavras, surgem já – em alicerce – as temáticas que o tempo viria a permitir enovelar e desenvolver. Por exemplo, o apelo (magnetizante) da metapoesia. Por exemplo, o exercício cinematográfico dos cenários onde se faz retratar (autobiográfica ou fictivamente) a voz que se ergue das / se esconde nas paredes translúcidas do poema. Por exemplo, a musicalidade e o ritmo sincopado dos versos, quase sempre curtos e lapidares. Por exemplo, a minudência visual, o olho veemente que absorve as nuances de um anoitecer. Por exemplo, o apuramento da metáfora, muitas vezes insólita, acutilante, desarvorada. Por exemplo, em conclusão, o poder reparador do silêncio – do silêncio de que vimos falando – e que representa bem a tensão permanente entre equilíbrio e desequilíbrio de que fala Rosa Maria Martelo [9].

no outono, quando se oxidam
as folhas,
parece-se mais nítido e
perturbador o brilho dos poetas
com os cigarros no casaco
e um bilhete de comboio para parte incerta
anotamos brevemente na pele da mão
que um dia, se voltarmos,
será apenas por este pouco silêncio (…) [10]

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Estarei, porventura, a desviar-me do ponto nevrálgico em que gostaria de fixar a atenção. E esse ponto consiste na admissão de que habitam a poesia do autor de Em Nome da Luz – insuficientemente conhecida, escassamente divulgada – apelos sucessivos a uma prática diária de limpeza, de decantação, de precisão, de higienização, insinuada mais ou menos explicitamente em poemas inúmeros onde o eu voluntariamente renuncia aos luxos literários para se comprazer com a dignidade do mínimo, mínimo esse que, paradoxalmente, transporta o máximo do ethos poético. Assim o exprime, por exemplo, no belíssimo penúltimo poema do seu último livro.

HIGIENE DIÁRIA
coisas de que um homem precisa:
dos doze girassóis de van Gogh,
dos quatro Evangelhos,
de sabão rosa [11]

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Sublinho este apontamento. Sublinho-o, visto que me parece notório que a poesia deste autor tem evoluído no sentido de um pendor sincrético, que confunde progressivamente mais obra e autor, deixando perceber que a poesia não é para si uma mera arte de versos (como a metapoesia sugere), mas uma apologia da vida eremita, um manifesto pessoalíssimo de cosmificação [12], um caminho salvífico do sujeito pelo meio das veredas do abismo: nada lhe importa tanto como a curta vida do poema, como o poder habitá-lo seja de que forma for, ainda que possa, como tão bem o escreveu Gastão Cruz, “Tratar-se de um trabalho destinado ao malogro” [13], ainda que esse pouco possa albergar tudo quanto foi capaz de aquilatar na vida.

Será, porventura, esse o fito desta poética do silêncio de João Ricardo Lopes: incumbir ao escrito a missão de se anular a si mesmo, de se nadificar [14] no sentido em que Jean-Paul Sartre o aduz, de criar (num processo antecipado de autoapagamento) o milagre da vida e, nele, muito em particular, o parto do poema, mais ou menos como quem efemeramente desenha ou constrói sobre um areal e existe apenas porque existiu. Esse processo, assumido cada vez mais como única via, abre a porta a toda uma ordem do caos: o poeta é aquele que descobre por acaso, aquele que desvenda por acidente, aquele que encontra algo buscando outra coisa.

SERENDIPISMO
pensava em Fernando Pessoa,
em ti,
na quantidade de amor que nos exigem as palavras,
no nevoeiro sobre o Zambeze,
nas trovoadas de maio,
na nervura rigorosa de cada folha
encontra-se a perfeição procurando outra coisa,
o vazio, por exemplo
hoje relembrei os abetos de Cremona.
senti de novo a dureza do frio e o pavor do vento
percutindo na floresta
o vazio é também uma forma de serendipismo:
buscas o poema e achá-lo-ás [15]

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Considero interessantíssimo este poema de Em Nome da Luz, título recebedor há poucos meses do Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres. Todo o volume pede olhos avisados. Quem acompanha o percurso poético deste autor saberá reconhecer que ele se vem impondo um pouco em contramão (ou em contramaré), não apenas pelo destaque que confere à metáfora [16], nem pelo reaproveitamento lexical de termos já em franco desuso (ou até mesmo esquecidos), nem pelo quase monacal voto de isolamento a que o escritor se entregou (razão justificadora por si só do seu quase anonimato), como sobretudo pelo quieto movimento de compor o nada, de amar o insignificante, de acreditar piamente no inútil de todo o ruído do mundo.

DA SABEDORIA
alimenta-te da chuva,
de tubérculos ocasionais, da fruta
silvestre,
alimenta-te das paisagens,
do silêncio mais
rigoroso
a poesia, na sua essência,
é eremita.
tudo o mais é excessivo
e inútil.
tudo o mais é vento,
veneno que passa [17]

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Valerá a pena lembrar que tudo o que é “excessivo” e “inútil”, “vento” ou “veneno que passa” não cabe na poesia (“inutilia truncat” prescreveria Horácio”), tão-pouco na alma de um homem limpo, profundamente cônscio da exiguidade da vida (não sou eu quem o diz, mas o Eclesiastes).

Em suma, não existe melhor entendimento do que possa valer um livro, um poema, um verso, do que o sentimento de retidão nele defendido até ao “silêncio mais rigoroso”. Signifique esse silêncio – meça-o o leitor – o muito que significar.

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Bahia, 08.06.2023 / Paulo José Miranda

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[1] Cf. entrevista de João Ricardo Lopes à revista Novos Livros – “João Ricardo Lopes: “Dormir uma noite inteira e acordar com vontade de recomeçar a vida”, disponível em linha em https://shorturl.at/beky8 (consultado em 2023-06-03).
[2] Em Nome da Luz, Elefante Editores, s.l., 2022, p. 43.
[3] Ruy Belo, «Poesia e Crítica de Poesia», Na Senda da Poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 61.
[4] Eutrapelia, Editora Labirinto, Fafe, 2021, p. 14.
[5] Jean-Luc Nancy, «Compter avec la poésie», Resistance de la Poésie, William Blake & CO, s.l., 2004, p. 24 : « Si la poésie insiste et résiste – elle résiste à tout, en quelque sorte, et c’est peut-être aussi pourquoi les poètes font souvent «figure de peintres du dimanche», comme vous dites avec raison : l’insistance de la poésie va jusq’aux formes les plus humbles, les plus pauvres, les plus démunies, jusq’à des véritables misères littéraires, jusq’au goût le plus sucré ou le plus sot pour des bouillies à demi cadencées d’ésotérisme et de sentimentalité (il y là comme une clochardisation), mais elle va jusque-là, si bas, parce-qu’elle insiste, elle demande quelque chose, et quelque chose que, je le crois vraiment, on ne peut pas réduire aux retombées petites-bourgeoises du pire romantisme (…) ».
[6] Op. Cit. (2022), p. 30.
[7] Contra o Esquecimento das Mãos, Editora Labirinto, Fafe, 2002, p. 46.
[8] Ibidem, p. 48.
[9] Rosa Maria Martelo, «Poesia e des-equilíbrios», A Forma Informe, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010, p. 9: “Se a poesia pressupõe ou procura o equilíbrio, é porque se joga no limiar de o perder e num permanente confronto com o desequilíbrio. (…) Faz parte do movimento construtivo da poesia um certo desencontro do poema com ele mesmo, isto é, o desajuste das suas próprias estruturas e a possibilidade de fazer «oscilar» (o termo é de Luiza Neto Jorge) os pressupostos que lhe serviram de ponto de partida.”
[10] A Pedra Que Chora Como Palavras, Editora Labirinto, Fafe, 2001, p. 35.
[11] Op. Cit. (2022), p. 46.
[12] O termo é de Luís Miguel Nava, que o diz assim: “Todo o acto poético é uma cosmificação. Cosmificação que se opera a partir do caos a que dá lugar a destruição da língua. Não por acaso o acto poético se chama de criação e a etimologia aproxima a poesia do fazer.” Cf. «Artaud: Tric Trac du Ciel – Uma visão de conjunto», Ensaios Reunidos, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 40.
[13] Gastão Cruz, As Leis do Caos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1990, p. 35.
[14] No primeiro capítulo de O Ser e o Nada, Sartre anota: “(…) é preciso, primeiramente, reconhecer que não podemos conceder ao nada a propriedade de «se nadificar». Já que, ainda que o verbo «nadificar» tenha sido concebido para tirar ao nada até a mínima aparência do ser, é preciso confessar que somente o ser se pode nadificar, já que, seja de que modo for, para se nadificar é preciso ser. Ora, o nada não é. Se podemos falar dele é porque possui tão somente uma aparência de ser, um ser emprestado (…). Por outro lado, o ser pelo qual o nada vem ao mundo não pode produzir o nada mantendo-se indiferente a essa produção, como a causa estoica produzindo o seu efeito sem se alterar. (…)” Cf. «A Origem da Negação», O Ser e o Nada – Ensaio de Ontologia Fenomenológica, Edições 70, Lisboa, 2021, pp. 77-78.
[15] Op. Cit. (2022), p. 17.
[16] Bastará levar em linha de conta o que Rosa Maria Martelo assinalou, quando diz que “Creio que uma das consequências do empobrecimento da condição ontológica da poesia passa pela secundarização do papel da metáfora e pela construção de um modo de expressão essencialmente alegórico.” Cf. «veladas transparências (o olhar do alegorista), Vidro do Mesmo Vidro – Tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961, Campo das Letras, Porto, 2007, pp. 86-87.
[17] Op. Cit. (2022), p. 44.

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Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres – discurso de agradecimento

João Ricardo Lopes
Crédito fotográfico: União de Freguesias de Fânzeres e S. Pedro da Cova (2022)

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Excelentíssimas senhoras e excelentíssimos senhores,

Permitam-me que encete, deste modo, o meu discurso de agradecimento. Gostaria de o fazer, aludindo à luz…

Tal como o silêncio, ou como as palavras, a luz pode encher-nos de uma felicidade imensa, ou pode arremessar-nos com violência contra as coisas. Não ignoramos a natureza prodigiosa de que é feita, nem o despudor da sua força, quando ao revelar mostra, quando ao mostrar-nos esfacela.

Aprendemos nas aulas de Ciências que a luz é uma radiação eletromagnética propagada ao longo do vácuo, uma corrente de ondas e de partículas, de fotões e de neutrinos, de elementos subatómicos, cuja designação nos aguça a curiosidade e nos atira para fora do senso comum. A luz é feita de nada, mas por causa dela tudo existe. «Faça-se a luz!» principia assim o Génesis.

Aprendi, sobretudo, nas viagens que, matinal e diariamente, faço para o trabalho que a luz é uma espécie de milagre, uma transformação, um eclodir de vida que à hora certa atinge a massa escura das montanhas do Marão e cai obliquamente sobre a paisagem para nela acordar a visão dos campos, das vinhas, dos riachos recobertos de névoa, dos pássaros, dos canteiros repletos de verde e de olor.

A luz é essa proximidade repentina com aquilo que nos rodeia: com o asfalto atafulhado de folhas outoniças, com o reflexo além no vidro de uma qualquer janela sobranceira, com a cor quase feérica dos bordos, dos plátanos, dos choupos, dos carvalhos, dos castanheiros, de tantas outras árvores benditas nesta altura do ano.

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Marco Martins (Presidente da Câmara de Gondomar) e José António Gomes/João Pedro Mésseder (professor universitário e escritor)

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As viagens demoram-nos no que nelas há de dádiva da luz. Por exemplo, as memórias que se foram e se vão alojando por dentro dos olhos. A vela transbordante, a tremeluzir nas noites de tempestade. O fósforo riscado numa cave antiquíssima na casa dos avós. O candeeiro a petróleo com o seu halo estampado na parede, onde a caliça e o caruncho se entendem. Por exemplo, as labaredas da lareira, a desenhar sulcos no rosto infantil. Por exemplo, o rouquejar das panelas de ferro, com o unto a dissolver-se em bolhas translúcidas pelo meio do caldo. Por exemplo, a gambiarra suspensa das traves, a dançar entre teias de aranha, a pendular com o vento, a brincar com as sombras que sobem da terra batida ao teto. Por exemplo, ainda, o vinho a vidrar nas tigelas, ou as contas do terço, rebrilhantes, a passar entre os dedos de uma avó lendária, numa sonolência que não sabe morrer. A luz é um cismar, também, um pasmo longínquo, uma saudade que regressa por instantes, enquanto o automóvel nos balança nas curvas da estrada e se escuta na rádio um adágio pungente de Barber, ou Bach, ou Marcello, ou Vivaldi. A luz dimana, voluteia, rasga, disseca, queima.

A luz, permitam-me que dela fale um pouco mais, vi-a maravilhosamente em Milão, na Ceia de Emaús de Caravaggio. A mesma que se acende, em chiaroscuro, entre as figuras da Ronda da Noite de Rembrandt, uma das melhores recordações que guardo do Rijksmuseum. É a mesma presença vivificante que abre mais as rugas de São José, no quadro de Georges de la Tour que me inspirou um dos poemas deste livro. Ou que explode nos girassóis de van Gogh. Ou que serenamente nos acolhe nos quadros de Vilhelm Hammershøi.

A luz é, ainda, o reino insuperável de leveza e de simetria, ao mesmo tempo do colosso e da bizarria das catedrais que tanto amo, em cujos vitrais saturados de cor e de narrativa os nossos olhos se esquecem do pouco que somos e do escasso que podemos viver.

A luz sentimo-la às vezes perdida na pele. E depois na alma. Também assim o escreveu Dostoievski, no primeiro capítulo de Humilhados e Ofendidos, quando pela voz do narrador exclama, emocionado: “É extraordinário o poder de um raio de sol sobre a alma de um homem!” Sentimo-la nós assim, especialmente nos dolorosos dias em que nos mingua o ânimo e nos pesa mais o corpo.

A luz – admitamos em suma a sua natureza indefinível e irrepetível (em nós, contra nós, depois de nós) – talvez não ilumine. Talvez nós é que ardamos como insetos atraídos pela lâmpada e atravessados, algures, no seu caminho. Sabemo-nos feridos e consolados por ela. Sabemo-nos despidos e cobertos pelo seu manto. Sabemo-la a viajar pelo tempo e pelo espaço e a deter-se às tantas num pormenor. Esse pormenor em que ela e nós nos encontramos é a poesia.

É dessa luz que, muito particularmente, eu necessito. Dessa luz-silêncio, dessa luz-palavra, dessa luz-poesia. É por causa dela, em obediência ao seu poder que nasceu este e todos os meus outros livros.

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José Augusto Nunes Carneiro (editor), João Ricardo Lopes, Marco Martins e José António Gomes

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Estou em Fânzeres pela segunda vez.

Há vinte anos recebi aqui um prémio da maior importância para o percurso na escrita que então começava: foi essa distinção, atribuída a Além do Dia Hoje que o desencadeou. Aqui se fez publicar o meu primeiro livro.

Duas décadas volvidas, regresso com Em Nome da Luz. Tomando de empréstimo um verso de Emmanuel Hocquard, «Esse livro passou a ser o meu primeiro livro». Toda a luz que com ele encontrei partilho-a convosco!

Sinto-me profundamente agradecido a esta terra. Agradeço à Junta de Freguesia de Fânzeres e de São Pedro da Cova, na pessoa da Senhora Presidente (Sofia Martins), este Prémio, o livro publicado, este serão verdadeiramente inesquecível e repleto de dignidade. Endereço-lhe, a si, aos autarcas que a antecederam, também, as minhas sinceras felicitações por terem sabido, não apenas sustentar este projeto literário, como sobretudo aquilatar com ele e para ele prestígio nacional.

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Executivo da União de Freguesias de Fânzeres e de São Pedro da Cova (em destaque, a Presidente de Junta, Sofia Martins)

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Agradeço, de modo igual, aos três distintos membros do júri deste Prémio, que primeiramente me leram: a Augusta Cosme; a José Augusto Nunes Carneiro (poeta, editor); ao Professor José António Gomes (cujas palavras há pouco escutadas verdadeiramente me tocaram, e cuja poesia – sob o nome de João Pedro Mésseder – há tantos anos venho estudando com os meus alunos).

Agradeço, de um modo particular, de um modo fraterno, a todas e a todos (família, amigos, conhecidos, curiosos, autarcas, funcionários, artistas presentes), a todas e a todos os que hoje, aqui, nesta Casa de Montezelo, se associaram à cerimónia, partilhando a sua presença, o seu tempo, o seu afeto, a sua luz.

Bem hajam, por isso! Muito obrigado!

Fânzeres, 11 de novembro de 2022

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«Eutrapelia» – crítica de Paula Morais

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Aquando da publicação de O Moscardo e outras histórias, tive oportunidade de referir que João Ricardo Lopes é a simbiose entre o poeta e o professor, fazendo lembrar outro grande mestre da poesia, também ele professor: António Gedeão. Ambos desenvolveram essa capacidade de viver num mundo intermédio, entre o onírico e a realidade, o mundo “sensível e o inteligível” – como designou Platão (2) ao mundo a que chamamos real e ao das ideias, equivalente ao céu em termos religiosos -, de trazer para a poesia as pequenas coisas do quotidiano e, a partir delas, buscar a eterna resiliência humana e aceitar que tudo (alegria/dor, felicidade/infelicidade, vida/morte, entre outros) é a vida e ela é feita de sonhos, de outras formas de captar o real.

Outro grande poeta, Eugénio de Andrade, no poema “Matéria Solar”, efetua uma breve reflexão sobre o seu material de escrita – as palavras – inquirindo um interlocutor virtual sobre “Que fizeste das palavras?”, “Que lhes dirás, quando/te perguntarem pelas minúsculas/sementes que te confiaram?” (3). É, precisamente, para fazer germinar essas sementes (frágeis, preciosas e, por vezes, efémeras) que os poetas as entretecem com a página em branco (em formato físico ou digital) de forma a interpretarem o mundo, o ser humano, o real observado ou imaginado, muito embora sempre de uma perspetiva pessoal. Como salienta Rudolf Arnheim: «The human mind receives, shapes, and interprets its image of the outer world with all its conscious and unconscious powers» (4).

O mais recente livro de poesia de João Ricardo Lopes é um ótimo exemplo desse processo de rememoração da vida, do mundo, convertido em palavras partilhadas com o leitor, dessa necessidade de prestar contas a um credor mudo, mas sempre presente: as palavras. Por isso, em “A vida das palavras” (5), um dos poemas que faz parte de Eutrapelia, efetua-se um pequeno périplo por um conjunto de palavras “esquecidas”, mas “tão sonoras ainda” para concluir que “as palavras nascem, vivem e morrem”; no entanto, o sujeito poético constata também que elas ressurgem de forma inusitada, daí o poema finalizar com a interrogação retórica “quem diria que ressuscitam?”

Assim, ao longo de cinquenta poemas, o leitor é convidado a acompanhar as palavras numa viagem pluridimensional: misto de sensações – ora visuais, ora auditivas, ora táteis, ora olfativas – e de memórias intelectualizadas de situações, espaços, músicas, objetos artísticos e pessoas; num regresso ao universo da infância, ao contacto com a terra e os antepassados numa espécie de reviver pueril e incrédulo do Eu, numa tentativa de resgatar as coisas simples e aparentemente negligenciáveis do esquecimento. Esse olhar as coisas com a visão da criança acabada de descobrir o esplendor, positivo ou negativo do mundo (à semelhança de Alberto Caeiro), é desde logo destacado nas duas epígrafes com que inicia a obra: uma de Emily Dickinson, a outra de Jacques Prévert.

Em ambas, o elemento comum é o pássaro, esse animal que partilha terra e ar, que esmorece se aprisionado; visto, em algumas culturas, como um emissário dos deuses, noutras como a voz do infortúnio, do amor infeliz, da ânsia pela liberdade. No caso da primeira epígrafe, realça-se o seu papel simbólico, ele representa a imaginação, a liberdade, a ausência de fronteiras, o sonho e, em última instância, a própria poesia. No segundo, o Eu deseja não parar de cantar para que os pássaros o conduzam até climas mais luminosos (“Yellower climes”) e associa esse ser volátil ao coração da criança. São, precisamente, esses alguns dos tópoi (já explorados noutras obras do autor) que subjazem à construção dos poemas de Eutrapelia: a luz e o seu impacto (“aquilo de que mais gosto/é desta luz”, “e então subitamente o sol”, “abafadores do sol”, “a luz cai mais justa”, “a luz periclitante”, “iluminados pelo assombro/dessa luz”, “interior da própria luz”, “relâmpagos” e “trovões”, “vestir um poema com sol”, “a luz límpida de Creta”, “a luz do sol”, “lâmpadas”, “sol a pique”, “a frontalidade da luz”, “o sol escorre aí”, “luz acesa”, “interior da luz”, “clareiras de luz”, “luz madura de cereal”, “luz limpa e cálida de junho”, “a luz caía”), o maravilhamento com o mundo e o colorido das flores (veja-se, por exemplo, “Allegro”, “Solstício em Creta, palácio de Cnossos”, “Tremezzo”, “Rosas vermelhas, agapantos azuis”, “Gerberas”), a persistência da concretude e da acidez de algumas vivências simbolizadas na “pedra” (“voam como pedradas”, “pedra imprecisa”, “pedra talhada”/“rocha”, “pedras”, “o branco das pedras”, “degraus de granito”, “a pedra que no poço cai”, “pedras do lagar”, “coração da pedra”), o mundo da infância associado à casa e aos avós (“O cheiro da terra”, “Noutro tempo”, “O outono acena mais perto”, “Sabão Marselha”, “Casa dos avós”), a importância da arte na construção da visão de mundo do Eu (“Sevilha, inverno de 93”, “Carnaval e quaresma, segundo Bruegel”, “Duomo, Milão”, “Pavana, Ravel”, “Natural History Museum, Londres”, “Tomas Tranströmer”, entre outros).

O primeiro poema da obra surge como uma espécie de metatexto, de texto programático, em que se explora o fazer poético do autor, a forma como ideais e palavras se vão concatenar para erigir um universo poético ao qual o autor regressa ao fim de quase uma década. Nele destacam-se os elementos fulcrais da sua visão de mundo, elencam-se os itens de que mais gosta e que perpassarão todos os poemas: “a luz”, “a voz”, a “fúria do vento”, a “memória”, as pequenas tarefas de um quotidiano longínquo e pueril (“os antigos sábados/em que esfregávamos o soalho da casa”) e a consciência da plenitude, da harmonia, da inclusão num todo de que se é uma parte: “éramos servos humildes/de uma causa maior/e nos sentíamos tranquilos/e asseados” (6). Já o último, “Prodígios”, permite encerrar essa viagem pelo universo das sensações, da simbiose entre natureza e ser humano, pelo campo das possibilidades (como a tripla repetição da expressão “é possível” deixa bem evidente). Numa sucessão de metáforas visuais (o vento a ser arado, decomposto em diversos elementos do planeta Terra; a lágrima constituída pela “subtil viração de certas tardes de inverno”, por exemplo), no apelo a diversas sensações (a audição – “ouvir o coração das pedras palpitar” -, a visão – “conhecer o mundo no desenho confuso dos dedos” -, a tátil/visual – “acordar para o fogo” -, a tátil/auditiva – “dormir sobre as águas”), na alternância contínua entre o presente e o passado, o leitor descobre um “mundo subitamente interrompido”, um prodígio, mas plenamente amado pelo “avô”.

A mediar um e outro, aparecem os restantes poemas, o material palpável da construção do universo poético do livro, aquele que correspondeu à captação da informação através dos sentidos, a sua intelectualização e posterior transformação em nova informação, isto é, visão do mundo (7).

Visão transfiguradora, à semelhança de Cesário Verde, dos surrealistas; união entre musicalidade e símbolo como Camilo Pessanha, num trazer para a poesia os efeitos cinematográficos da dança entre os quatro elementos primordiais (água, ar, fogo e terra) bem evidente em “Trovoada”; na captação desse fenómeno natural como uma espécie de dança luminosa, ao som de uma orquestra dominada pela percussão e pelo piano, conduzidos pela batuta da chuva, numa brincadeira luminosa encabeçada pelos relâmpagos que permitirá salvar o “nós” no momento derradeiro, evidenciado pela tripla repetição de “ao menos isso”.

ao menos isso,
ao menos isso,
os relâmpagos chafurdando
no espaço,
alegrando a noite,
os trovões percutindo
nos gonzos das portas,
o cheiro da terra seca
que os dedos da chuva
levantam.
ao menos isso,
saber algo acordado
em nós e para nós,
como um vibrato ao piano
que alguém toca
a horas tardias,
mesmo a tempo de nos salvar. (8)

Eutrapelia, mais do que um brincar ameno com as palavras e as situações, um procurar ridicularizar sorrateiramente determinados comportamentos/situações, é uma reflexão subtil, límpida e frágil sobre a forma como o Eu se constrói/reconstrói a partir da memória e da recuperação do olhar inocente e ingénuo da criança que um dia foi. É a procura de um sujeito pensante uno e coerente, feito da diversidade das sensações, das memórias e das aprendizagens (daí a referência à música e ao cinema – “Concerto de Aranjuez”, “Coltrane”, “Pérotin”, “Eleni Karaindrou”, “Cine Paradiso, Giuseppe Tornatore, Enio Morricone”) – aos museus e às obras de arte (“Caravaggio”, “Bosch”, “Duomo”, “Rijksmuseum”, “Rothko”), aos escritores nomeados ou detetáveis a partir de certos versos (“Anna Akhmátova”, Sophia de Mello Breyner e o poema “Ressurgiremos”, “Saramago”, Shakespeare e o “Falstaff”, “Hesíodo”), dos diálogos estabelecidos com um Tu interior ao poema ou um Vós (símbolo do leitor) que conduz à criação de um universo poético onde vida e morte são encarados como dois lados inseparáveis de uma mesma realidade, onde a fragilidade das coisas simples é evidente pela sua não valorização ou perda de memória. Fernando Catroga considera que “recordar é em si mesmo um ato de alteridade. Ninguém se recorda exclusivamente de si mesmo, e a exigência de fidelidade, que é inerente à recordação, incita ao testemunho do outro” (9). João Ricardo Lopes enfatiza, no poema que dá nome ao livro, “Eutrapelia”, que são as recordações dos pequenos-nada do quotidiano que permitem à humanidade superar a dor e o desalento.

Eutrapelia

quando os dias forem
demasiado pesados, repetitivos, atrozes,
talvez possas recordar-te
do magnífico jarro amarelo
que renasce todos os anos
no quinhão mais sombrio do quintal,
ou das palavras sábias de Epicuro,
ou das palavras santas de Agostinho,
e amar a beleza de outro modo,
ou conhecê-la para além
das formas, das cores, do senso-comum,
medindo-a não já pela intensidade
e espalhafato,
mas pelo bem que te faz. (10)

A valorização do quotidiano perpassa grande parte dos poemas, razão pela qual em “Arte de furtar” a reflexão sobre o objetivo do furto recai não sobre aspetos materiais e sim sobre o “lugar que nos serve de refúgio”, constituído das “pequenas dádivas” da existência.

o que furtaríamos nós se pudéssemos,
se acaso nos fosse concedido o dom da invisibilidade
e o poder de atravessar com o roubo
as paredes mais impenetráveis?

que espécie de ouro poderia sobrepor-se ao mel,
às pequenas dádivas que colhemos nos dias comuns,
ao lugar que nos serve de refúgio
quando em volta as monstruosidades do tempo
tomaram posse do nosso chão?

qual poderia ser agora a arte de furtar,
a boa boca de que sairiam as sábias sentenças?

e o poema? em que bolso, leitor,
o levarás? (11)

Este poema funciona, deste modo, não só como um relembrar a importância das coisas simples da existência humana, as “pequenas dádivas” da “vida comum”, como as denomina o poeta, que rapidamente são roubadas pelas “monstruosidades do tempo” que “tomaram posse do nosso chão”, mas também como uma transferência de responsabilidade para o leitor, enfatizada pela sucessão de interrogações retóricas. Se Eugénio de Andrade interpelava o poeta sobre o uso que deu às palavras, João Ricardo Lopes questiona o leitor sobre “e o poema? em que bolso, leitor/o levarás?”. No entanto, a responsabilidade do autor enquanto construtor de mundos, agente ativo da cultura e da mudança de mentalidades não é esquecida. Por isso mesmo, em “Poiein”, o autor rememora os gregos e a forma como entendiam a poesia – ela deveria ser sempre a apologia da vida, da positividade e nunca dos conflitos, dos medos e das angústias -, contrapõe as palavras de Juan de la Cruz e destaca que a poesia é sempre (como se torna evidente em momentos históricos em que impera a mordaça e a censura (12)) uma arma, uma luz intensa, algo abrasivo e incómodo a confrontar o comum dos mortais e a instigá-lo a proceder à mudança.

vestir um poema com sol
é o que fazem os gregos desde o começo,
celebrar a vida
e nunca o dissídio de psyche e phren,
nunca o fantasma de Pátroclo
que confessa a Aquiles
a tortura do silêncio

o poema é para eles
uma coisa veemente, pulsante, viva,
incapaz de soçobrar no tempo
ou de ser vencida
pelo pó

às palavras de um poema
chamará Juan de la Cruz séculos mais tarde
lâmpadas de fogo entre as cavernas profundas
do sentido

concordamos, em suma, neste ponto –
nada queima como a poesia quando queima (13)

Porto, 13 de novembro de 2021,
Paula Fernanda da Silva Morais

Notas:

1. LOPES, João Ricardo – Eutrapelia, Fafe: Labirinto, 2021.

2. PLATÃO – A República (intr., trad. e notas de Maria Helena da Rocha Pereira), 7.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

3. ANDRADE, Eugénio de – “Matéria Solar” (1980) in Poesia, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2000, pág. 328.

4. ARNHEIM, Rudolf – Art and Visual Perception – A psychologiy of the creative eye (The new version), Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1974, pág. 461.

5. LOPES, João Ricardo – Op. Cit., pág. 39.

6. LOPES, João Ricardo – Op. Cit., pág. 9.

7. Arnheim esclarece que o ser humano constrói a imagem do mundo «(…)absorbing information through senses and processing and transforming it internelly» (ARNHEIM, Rudolf – Art and Visual Perception – A psychologiy of the creative eye (The new version), Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1974, pág. 411).

8. LOPES, João Ricardo – Op. Cit., pág. 18.

9. CATROGA, Fernando – “Memória e História” in PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.), Fronteiras do Milênio, Porto Alegre, RS: UFRGS, 2001, pág. 45.

10. LOPES, João Ricardo – Op. Cit., pág. 27

11. LOPES, João Ricardo – Op. Cit., pág. 42.

12. FANHA, José (org. e apresentação) – De Palavra Em Punho – Antologia Poética da Resistência. De Fernando Pessoa ao 25 de Abril, Porto: Campo de Letras, 2004, pág. 10: “Foi um tempo [o do Estado Novo] em que reinou a mordaça mais do que o silêncio e em que toda a palavra era mais perigosa do que pólvora. Por isso mesmo esse tempo encontrou na poesia o seu incêndio mais urgente. Era preciso levantar alto a palavra. Usá-la como rastilho. Viver de palavra em punho.”

13. LOPES, João Ricardo – Op. Cit., 21.

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«Eutrapelia», crítica de Cláudio Lima

Eutrapelia (livro de poesia)

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Hoje reunimo-nos para celebrar os 20 anos de poesia publicada em livro por João Ricardo Lopes. Às primícias poéticas deu o Autor o título de a pedra que chora como palavras (ed. Labirinto, Fafe, 2001). E, a justificá-las, se a intrínseca qualidade da obra não bastasse, assinale-se a atribuição do Prémio Revelação de Poesia Ary dos Santos, galardão de encher de orgulho e incentivo qualquer iniciante na difícil arte das belas letras. De facto, percorrendo estes 35 breves poemas, um leitor minimamente apetrechado e familiarizado com os meandros e mistérios da poesia, imediatamente concluirá que aquele livrinho inaugural indiciava, mais do que uma tímida promessa, uma sólida e inequívoca vocação poética. Ainda hoje, volvidos 20 anos, «a poesia irrompe como um meteoro» (pg. 33) ao longo daquelas páginas. Táctil, intensa, evocativa, sob qualquer perspetiva que se a observe, é sempre uma deleitosa fruição o que ela nos proporciona.

Passados 20 anos e cinco outros títulos de poesia, se o Autor não parou no tempo nem precisou de corrigir a rota, – e entendo que não – é porque partiu de uma rigorosa e bem pensada estrutura formal e conceitual que o tem levado a uma constante e cada vez mais criteriosa indagação do fenómeno, quando não epifenómeno, do que a poesia implica de consistência e aprofundamento. Andam por aí montes de equívocos, montanhas de falácias e cordilheiras de nulidades a doutrinar sobre e a praticar uma escrita balofa e oca a que conferem o rótulo de poesia, travestida, ademais, de genialidade visionária e vanguardista! Um deserto sem vislumbre de qualquer oásis onde mitigar a sede de beleza e unção espiritual!

Um observador comum olha e diz assertivamente: “isto é uma árvore”. E esse juízo, redutor e fechado na estreiteza conceitual, lhe basta. Apenas exige da árvore que lhe dê frutos e alguma sombra. A linguagem com que nomeia e qualifica é pragmática e utilitária; circunscreve o que vê e vê-o por fora e de relance. Um observador de sensibilidade poética, ao invés, vai aos limites da perceção e da expressão da coisa percecionada. Para ele nada é singular e unívoco na linguagem, antes polissémico e polimórfico. Liberta o objeto das amarras a que o uso massivo e ligeiro o submete e explora, ao mesmo tempo que lava as palavras das nódoas causadas pelo uso e o abuso.

Conheço o João Ricardo Lopes há bastante tempo, desde a publicação da coletânea Histórias para um Natal (ed. Labirinto, Fafe, 2004) em que ambos participámos. Mas, sobretudo, desde a publicação das suas crónicas Dos Maus e Bons Pecados (ed. Opera Omnia, Guimarães, 2007), em que de igual modo faz emergir a sua férula de prosador interveniente, atento ao panorama cultural e cívico português. Dessa obra fiz a apresentação na prestigiada e prestimosa Livraria 100.ª Página em 25 de outubro de 2007, cujo texto-base teve publicação no Diário do Minho a 7 de novembro do mesmo ano. Já então eu pressentia, sob a irreverência, por vezes a causticidade, do jovem cronista, a musculada expressão de quem procura bem mais do que a flutuação abúlica à deriva do tempo.

Regressa agora, a celebrar duas décadas de poesia, com um título breve e, para muitos leitores, algo esquisito, se não abstruso: Eutrapelia. Palavra de origem grega formada pelo prefixo “Eu” – que significa bem e belo – e pelo lexema “Trapelós”, de amplitude polissémica, omisso em vários dicionários e glossários da língua portuguesa. O velho Cândido de Figueiredo transverte-a simplificadamente para “qualidade daquilo que é gracioso, chistoso, mordaz”; José Pedro Machado no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, tomo II, regista “forma chistosa de motejar”; já o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, no tomo IX alarga um pouco mais o campo semântico: “modo de gracejar sem ofender, zombaria inocente, disposição de pilheriar agradavelmente, brincar amável e espiritualmente, engraçar-se, pilhéria grosseira, palhaçada, troçador birrento”, etc. Por sua vez, o Google, que regista várias entradas de natureza filológica, filosófica e ética, de divergentes, quando não opostos significados e nuances, tendencialmente valoriza os conceitos de conversa agradável, senso de humor, dito jocoso e inofensivo, etc.

E o Autor? Qual destas múltiplas propostas de natureza semântica o moveu à opção por um título que para muitos leitores se torna embaraçoso e impeditivo de uma imediata apreensão, bem como dos conteúdos que pode abranger? Ele esclarece: ao impulso que o moveu a esta solução subjaz um determinado estado de beatitude por indução (osmose?) de tudo quanto o rodeia, o interpela e o seduz. Uma espécie de filtro que tria a indiferenciada e caótica vasa do quotidiano. Veicula uma poesia que vai beber aos clássicos gregos, orientais e a alguns dos mais representativos vultos da cultura ocidental. Exige ser lida com todo o vagar e atenção, dessa forma removendo eventuais dúvidas e obstáculos ao desfrute de uma lírica adulta, bem burilada, pródiga em sugestão, estesia, brincos de retórica e de encantamento. Importa ser lida empenhadamente, em suma.

Facilmente apreendemos o quanto os prodígios da natureza fascinam o Autor e lhe condicionam o estro poético. No seu cíclico e inalterável movimento, estação a estação, admiramos aqui ora o desabrochar pletórico, ora o inelutável dessoramento e morte, para novo ressurgimento em novo ciclo vital. O eterno retorno em movimento perpétuo. Ocorre-me citar, a respeito, o grande Johann Wolfgang Goethe, quando compara a natureza a um livro: «A natureza é o único livro que oferece valioso conteúdo em todas as suas folhas».

Logo na página 13 encontramos um poema intitulado «Bosch, Primavera, Museo del Prado» em que, provavelmente influenciado pela contemplação dos trípticos O Jardim das Delícias e / ou O Carro de Feno, do grande pintor brabantino, que se encontram expostos naquele Museu, observa que «encontrar no meio do sangue revolto / a pedra imprecisa // seria essa, talvez, a mais bela fonte da loucura», porque «depois de extraída tudo regressaria ao seu lugar». E na página 16 é ainda um hino à primavera que nos é oferecido num «Allegro» de jubilosa exaltação: «daqui observo o afã dos piscos nas ramagens / do limoeiro, / oiço o arrulhar, o trissar, / o assobiar das rolas, das andorinhas, dos pardais (…) em maio as manhãs / fazem-me mergulhar na terra, / na profusão dos cheiros e das formas, / no frescor das ervas, / na quentura das cravinas e das rosas // arrepio-me de pensar que existo / e respiro / e escuto o tempo».

Curiosamente, sobre o verão não encontramos nenhum título explícito, não obstante a sua sedução e a sua luminosidade permearem muitas destas composições. Na página 32, por exemplo, podemos ler o poema «Agosto», em que fala no «verde azul do mar / ferindo-me como crisocola entre os dedos, / este azul onde os olhos adormecem (…)» E na página 30 repare-se neste extraordinário quadro (tela) estival, intitulado «Tremezzo» (região italiana da Lombardia): «lembro-me dessa tarde em Tremezzo, / do sol a pique / dos nossos corpos transpirados / à procura de uma sombra (…) os lentos degraus de granito até ao lago, / a água refrescando-nos os tornozelos, / a lavar-nos do cansaço, / as ondas que os barcos de recreio levantavam / e que vinham de longe, / que vinham contra nós, / criaturas exangues, inofensivas, / sem culpa de nada».

O outono está aqui profusamente referenciado: na página 37, no poema «O outono acena mais perto», elenca os gestos rituais de um setembro maduro e abundante: «nestes dias de lavar, brunir, / dobrar em caixas de cartão as roupas, / fazer contas de cabeça, tirar velhas compotas do armário, / despejar-lhes o bolor, lavar os frascos, / fazer polpa, cozer os marmelos, colher os figos, / conservar tudo de novo, como uma memória fresca da infância // o outono acena mais perto, / digo, o ar distraído das coisas, a subtileza madura dos frutos». Na página 51, em «Lendo Erdal Alova», poeta turco, fala do frio que secou os agapantos, das «pétalas soltas, / teias de aranha entre os caules / ressequidos», para concluir: «o outono é a estação do pouco / e eu contento-me / com tê-lo inteiro / aqui, / ou noutro lugar».

Também o inverno percorre estas páginas. No poema, a páginas 10, «Sevilha, Inverno de 93», recorda «a pele das tuas mãos / (sempre tão álgidas) / caindo sobre o meu caderno // o que escreves aqui? para quê a poesia? / quem amas tu?» E lá mais para diante, evocando o cineasta russo Andrei Tarkovsky no poema «O Inverno ou a Nostalghia de Andrei Tarkovsky», (página 58), é-nos dado a ler: «são agora mais frias as manhãs, / quase espetrais / atravessamos o nevoeiro, / como se atravessa a vau um espelho // os lavradores afastam em molhos a lenha inútil, / pelos campos as gralhas zombam avulsamente» Quadro rústico de grande plasticidade, sem dúvida, a fazer lembrar pintores como van Gogh. A concluir, logo na página seguinte, em «Prodígios», leiamos esta quadra: «é possível trazer para dentro da lágrima / a subtil viração de certas tardes de inverno, / quando à janela as cortinas esvoaçam / e se descobre um mundo subitamente interrompido».

João Ricardo Lopes é, sem dúvida, um insaciável buscador de tesouros, naturais ou elaborados por obra do génio humano; coleciona sensações, contemplações, entusiasmos de índole estética e espiritual. Não é um turista apressado e frívolo numa correria tonta, galgando geografias de máquina fotográfica frenética, atrás de alvos banais para registo de selfies e de filmagens. Datados no tempo e situados em amplos espaços da cultura e da arte europeias, estes poemas, de tamanho e estrutura diversificados, constituem-se em precioso álbum literário daquilo que de mais belo e imperecível a humanidade foi realizando. Por aqui se movem em aparições mais breves ou mais demoradas, vultos tutelares da língua e cultura portuguesas, como Camões, Camilo Pessanha, Saramago; génios da arte universal como os poetas Horácio, Schiller, Whitman, Lorca e Seferis; pintores como Vermeer, Caravaggio e Bosch; músicos como Schubert, Debussy e Ravel. E tantos outros, cujas vidas e legados impressionaram o Poeta e o inspiraram nas digressões por museus, catedrais, jardins, monumentos, praças e avenidas, em diversos sítios tais como Creta, Londres, Milão, Madrid, Sevilha, Lanzarote, etc. Um andarilho do sonho e do mistério; do fascínio dos lugares e das coisas em que poisa e demora um olhar deslumbrado.

Encerro esta despretensiosa e limitada exposição-apresentação, lendo o poema «O Cheiro da Terra» (página 31), demonstrativo da faceta telúrica que esta obra também revela.

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O CHEIRO DA TERRA

o cheiro mais antigo de que me lembro
é o perfume da terra

antes mesmo da fragrância húmida
do mar e da chuva,
antes do odor do papel, dos vernizes
ou da tinta,
antes mesmo do aroma dos laranjais,
ou das rosas, ou do pão

invade-me às vezes uma volúpia incerta
de caminhar descalço
sobre os campos lavrados,
de erguer punhados dessa matéria negra
e macia
– aparentada com o ardor
do alecrim e da rezina –,
caindo em torrões e grânulos
como deve cair

os cheiros são o nosso modo de rastrear
o tempo

é um mistério o que deles nos fica
e porque ficam,
um mistério

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Feira do Livro de Braga, 14 de julho de 2021
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Bruges

Bruges 1
Fotos de arquivos pessoal (2019)

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Chegámos à cidade ao início da tarde. depois de nos apearmos do autocarro, avançámos por uma espécie de pista de tartã em direção ao centro. havia um casal de russos, havia de minuto a minuto o som espaçado de uma bicicleta (todo o ruído ali, aliás), havia a memória fixa de Amesterdão, dos subúrbios húmidos onde crescem álamos e nevoeiro, do Vondelpark pejado de corvos e estrangeiros, dos quadros de Brueghel reproduzidos em calendários de bolso.

Sempre gostei de lugares onde se chega a pé aos lugares, onde as árvores e a poesia crescem juntas na mesma água e na mesma terra, digo, na mesma luz, onde o silêncio é tão limpo quanto o chão e o vidro das janelas.

Entrámos em Bruges por uma grande praça ladeada de casas antigas, hotéis, um curioso edifício feito de grandes tubos verticais por onde o vento ecoa, exportando um som indefinivelmente musical e alienígena. traçámos a nossa rota anárquica, observando as grandes cúpulas das igrejas e os nichos dos santos, fotografando o nome das ruas e as singulares numerações pintadas nas paredes de tijolo, apontando mentalmente pormenores (a rapariga das tranças a transportar os manuais escolares novos, o leão flamengo a dançar na bandeira amarela sobre os telhados, as extravagâncias de chocolate nesta e naquela vidraças).

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Bruges 2

Caminhámos em meia lua, depois em reta, por cima de ladrilhos artísticos, através de uma pontezinha, nas traseiras de uma catedral, lado a lado com os barcos repletos de turistas.

Sobre um canal dois octogenários de mão dada abraçaram-se, depois deram um beijo. vimos sorrisos trocistas, ouviram-se exclamações em pelo menos três línguas. a tarde pareceu-nos  uma cortina dourada caindo sobre os jardins. julgo que terei dito algo a propósito de Bruges ser uma dessas cidades onde gostaria de viver.

Não creio ter sido escutado. na verdade, ainda é.

27.09.2019

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Da saudade que nós sentimos das pessoas que nos morrem ainda vivas

Drew Hopper
Fotografia de Drew Hopper

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Há dores que doem mais do que as outras dores. É um absurdo. Dói-nos tudo quando dói assim. Dói-nos o corpo ao alto, os ossos, o intervalo entre os ossos, os olhos, dentro dos olhos, a boca, a garganta, os pulmões inchando e desinchando, o estômago, os rins, as costas, as mãos, os cabelos até à última ponta do último cabelo. Dói-nos tudo. A mobília, o tapete, as sombras, o silêncio. Tudo. E quando mexemos um músculo o universo inteiro estremece. E quando uma corda vocal quer vibrar todo o espaço trepida com o catarro. E quando as palavras saltam, tropeçando, cegas, às apalpadelas, quando riscam com o seu fósforo efémero a parede gelada do tempo, é ainda um resto de dor que as torna mais belas e terríveis. Porque quando dói tudo dói tudo. É um absurdo. Um cataclismo. Um colapsar de sonhos e memórias e esperanças e alegrias subtis, risos, confidências, carícias, hálitos, secreções, murmúrios, quenturas, prazer… É um absurdo. Porque erguer gigantes não devia ser para tombá-los, vergá-los, humilhá-los, enlameá-los, arrastá-los a ferros. Porque, no interior de um pequeno fole de trezentos gramas, sístole-diástole, sístole-diástole, sístole-diástole, é possível caber um gigante. Um gigante com um milhão de fotogramas, um fantasma, um holograma, um amor!

Porra, um amor!

De maneira que hoje foi mais um dia. Daqueles que precisam de nos arrancar à cova, com esforço, virilmente, sob ameaça de estalo. Meia hora no duche. A água a escorrer na pele como em pedra. Não me lembro se estava quente ou fria. Dá para acreditar? Não me lembro se gemi com frio ou sentindo uma queimadura. Gestos sonâmbulos, mecanizados, entrando e saindo de mim como gente de um motel. Não me lembro do que engoli. Decerto os cereais. Provavelmente um iogurte. Porventura uma peça de fruta. Talvez pão com geleia. Não sei se meio pão com queijo. Possivelmente nada. Não me apetece comer. Ultimamente não sinto fome. O carro levou-me sem um protesto para o trabalho. Não me lembro de o conduzir. Julgo que se conduziu sozinho, como os cavalos nos campos de batalha. Devo ter bebido um café. Ou dois. Teriam sido três ou quatro. Mais. O café é bom, aquece, traz-me de volta à superfície. Chego a reconhecer as pessoas. Digo-lhes a cada qual, à vez, sem pensar muito

Bom dia, como está?

O pior é acordar. As manhãs são bolas de sabão inquebráveis. Escuto-as por dentro (escuto as ervas, o cheiro das madressilvas, o olhar acutilante das gralhas no bosquezito ao lado do apartamento, o frio do riacho, as neblinas erguendo-se até ao cocuruto dos choupos. Escuto crianças. O riso maravilhoso que ecoa dos seus passos. Escuto o sol. Escuto o abrir das janelas, o perfume das roupas que se estendem nas varandas. Escuto o sorriso desdentado das velhas, tricotando e rezando em simultâneo. O frenesim dos pequenos mercados de esquina. As caixas de pão, o cheiro do pão, a farinha saltando sobre o papel pardo das contas de somar). Escuto-as e quando me sacodem, me dizem

Já tocou, professor!

Eu sinto a mesma pesada maquinaria, ferrugenta maquinaria, terrível maquinaria, desengonçada maquinaria, a mover-se, caminhar para uma porta, desaparecer por algum lado, sumir-se nalgum corredor, entrar nalguma conjuntura de paredes. De maneira que respondo

Obrigado! Não me tinha dado conta!

As manhãs são sempre longas, distantes, capazes de vencer-me. Um corpo derrotado é um sempre um corpo. Um touro caído. Decaído. Um corpo.

Obrigado! Tenho aula, sim!

E com o copo de café na mão sinto falta de um café para acordar. De maneira que perco a conta aos cafés que bebo. O café é bom, afugenta as cinzas, traz-me de volta à bela chama que ainda há instantes sentia viva no lugar do coração. Chego a reconhecer as pessoas. Digo-lhes

Está uma bela manhã, não está?

E as palavras recomeçam. Os alunos apontam, seguem o raciocínio, não fazem perguntas, acreditam na versão limpa e oblíqua das páginas do manual. As palavras saracoteiam-se com um vago esplendor de ouro falso. O conhecimento. Tão grato, o saber. Tão importante senti-lo fluir na sala, como o balbuciar de um vento moderado e casto.

Sim, meus caros. O conhecimento é sagrado. Puro como uma Vestal.

De maneira que tenho andado meio esquecido. Quase me esqueci de ti, imagina? Quase me esqueci que o sofrimento é uma ampulheta, engolindo tudo de um lado e depois do outro lado, à vez, cambalhota para aqui, cambalhota para acolá, à vez, acumulando tudo, aniquilando tudo…

Não há remédio para isto. Guillén escreveu uma vez sobre a saudade que sentimos das pessoas que nos morrem ainda vivas. Achei belo. Suponho que o acharás também. Belo. E tão triste. Tão triste.

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Sempre fui um gângster

Christophe Verdier
Fotografia de Christophe Verdier

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Sempre fui um pouco gângster. Um gângster bom, arrisco dizer. Batoteiro, apaixonado, zaragateiro, intempestivo, amante da tarefa acabada. Como todo o gângster em condições gosto de serviços limpos — sejam poemas, sejam acertos de contas — porque um bom filho da mãe não deixa nada a meio; um bom filho da mãe gosta de morder o cigarro enquanto conduz à noite e faz grandes reflexões, com Coltrane, Chet Baker ou os Morphine (se for mais da minha onda) em fundo; um bom filho da mãe distingue as boas das más ações, mas assume-as a todas sem medo, sem hipocrisia e sem moralismos. Um bom filho da mãe tem um orgulho verdadeiramente gangsteriano naquilo que faz e, arrisco dizer também, em recusar aquilo que não faz!

E o que não faz um gângster? Por exemplo?

Por exemplo lamber botas! Por exemplo pôr-se com merdas quando tem que encarar um tipo desprezível (e há tipos desprezíveis, meros rebentos de infâmia e dejeção, a quem não pode ser concedido sequer, na pior aceção — a que lhe confere o topo da escala social — o título de gângster) e explicar-lhe sem rodeios que são uns merdas! Por exemplo declinar a oportunidade de dar uma bofetada a um palerma que fala em direitos e esquece as obrigações. Por exemplo perdoar um tiro a outro filho da mãe que anda há muito a pedi-las e sabe que anda. Por exemplo aceitar palmadinhas nas costas de tipos que usam fato às riscas, botões de punho, sapatos de verniz e perfume a 500 euros o frasco de 100 mililitros.

(Faço um parêntesis para emendar o raciocínio e impedir conclusões apriorísticas: nunca dei um tiro a ninguém! Por manifesta falta de formação específica na área, circunstância que aliás muito penaliza o meu perfil mafioso. Mas não o lamento! Sou um mafioso bom, devo insistir!)

Sempre tive, assim como assim, uma queda para o bandido. Porque a cabeça de um indivíduo pode esconder um laboratório de malfeitorias. Vilezas puras, como roubar a Shakespeare meia dúzia de versos e tomar de assalto um coração puritano. Patifarias como mandar às urtigas um curso superior e ir à procura da felicidade onde ela se encontra, nas montanhas do Tibete ou dos Andes, nos fiordes da Noruega ou entre as cow-girls do Texas. E quem diz o curso superior diz outras coisas superiores como a herança, o casamento ou os amigos no clube social. Um biltre que faz uma maldade destas, que se mete à estrada com a viola às costas e sem mais vontade que a de pensar em si (cantando «And a new day will dawn for those who stand long,/ And the forests will echo with laughter») merece, senhores e senhoras, um enorme aplauso… É um infame, que deixa para trás os estudos, uma família furiosa, uma ex-mulher vingada na justiça, um grupo de snobes. Mas que merece, senhores e senhoras, um aplauso do tamanho do mundo! Um aplauso do tamanho do futuro! Os gângsters fazem coisas destas…

Eu fiz! Rejeitei noites de prémios onde me queriam bem vestido, barbeado, perfumado. Matrimónios que me impunham a máscara de manso, do amestrado, do maridão. Compromissos políticos onde me desejavam seguidista, cacique, acéfalo. Universidades que me pediam teses bem escritas, ortodoxas, balofas. Editoras onde me exigiam paciência, más contas, conformismo. Amigos que me brindaram sempre com esquecimento, silêncio, por-favores! Um pulha faz coisas destas, faz coisas muito piores, fá-las sem pestanejar!

(Faço outro parêntesis para explicar que estas ditas outras coisas muito piores me não são estranhas. Uma vez rejeitei um cargo assaz cobiçado numa dada prestigiante instituição, porque gostando do cargo e da instituição depressa compreendi que me usavam em modo de arma de arremesso, ou como castigo político para quem até aí o exercia. E eu disse que muito obrigado, mas não!)

Eu faço coisas destas. Sempre fui um pouco gângster. Até usei barba, boina, charuto. Até li os pensamentos anarquistas de Rousseau e os de Godwin. Li todos os romances de Mario Puzo e em tempos devorei uma biografia do Al Capone. Até usei toda a poesia de todos os tempos para ser poeta a tempo inteiro (mesmo quando assalariado). Usei-a para chantagear intelectual, moral, civicamente. Máfia pura! Até me servi de uma t-shirt do Che Guevara (uma que dizia «Yo no sé porque me pongo una camiseta del Che») para conquistar os favores de uma guevarista de olhos verdes no sul de Espanha.

Sempre fui um pouco gângster. Um aldrabãozeco! Um facinorazinha com dever de consciência, desta mesma consciência de que me sirvo agora e muitas vezes para renunciar às tentações, enganações, seduções, opressões e obsessões de Satanás. Multipliquei adversários e inimigos. Tanto na literatura, como na rua. Gosto de me recordar deles, enquanto afio as facas e limpo o fuzil dos meus pensamentos (admito ser também um adorável fazedor de metáforas parvas). Gosto de me recordar também de torpezas quando ando depressivo e não encontro o isqueiro ou um café aberto à noite. Uma boa luta, uma pirraça das melhores, um cagaço dos grandes mantêm-nos vivos, já o repetia o Zé do Telhado.

Pela minha parte limito-me a ser discreto, entrando de mansinho na cena, com os Morphine em fundo, janela aberta, o fumo do cigarro misturando-se à neblina, o carro levando-me ao hotel combinado, o dedo em riste, a alma limpa, a noite prometendo — amor, companhia, uma boa história…

Sempre fui um pouco gângster. Um gângster bom, arrisco dizer. Não me pesa demasiado afirmá-lo. Como todo o gângster em condições gosto de serviços limpos. Eficientes. Na hora. Senhores e senhoras, por aqui me esgueiro. Boa noite!

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