Algo aconteceu

Fotografia de Fredrik Solli Wandem

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De repente dou-me conta da bestialidade dos homens num ponto em que a jamais sentira na minha existência de quase meio século. Profana-se o lugar-comum, o lugar dos outros, o lugar próprio. Cada pessoa é um inimigo latente, um ódio possível, uma briga, um insulto, uma forma de agressão física, um ato predatório. Dou-me conta do modo fácil como se fere alguém sem causa, sem motivo, sem preocupação pelo que é e significa cada gesto: um condutor abandona a viatura para erguer um braço violento contra o condutor imediatamente atrás de si; um garoto de dez anos profere uma barbaridade na sala de aula, ameaçando de morte um colega ou o professor; um doente morre numa maca de hospital, em frente ao médico que o devia tratar; um presidente calunia e divide os cidadãos do seu país, desprezando o juramento feito sobre a Bíblia; um povo outrora dizimado assassina em massa, justificando a força com a covarde e hipócrita justiça de que se diz herdeiro. De repente dou-me conta de que o sol limpo que corre sobre o parapeito da janela e sobre a mesa lisa do meu caderno é impuro e insuportável.

Busco Johann Sebastian Bach como um leproso busca a sua toca. Busco a infância, a memória dos bons amigos que tive, das caminhadas idílicas para a escola primária, do cheiro ancestral das ervas à beira dos regatos. Busco o rigor das cores, o sentido inequívoco das palavras, o cuidado das unhas, a verdade nos olhos. Havia naquela altura um sentido incomensurável de esperança. Aprendi a respeitar, a agradecer, a ser gentil, a cultivar o bom-humor, a valorizar os belos objetos raros que me ofereciam, a ler com delicado manuseamento os livros, a imprimir o espírito nas pensadas frases que devia pôr – umas atrás das outras – nas composições escolares e nas respostas à subtileza dos diálogos. Busco o silêncio para me lembrar de tudo isso, para escutar as suítes para guitarra, para me desligar da pátina ruidosa que os dias segregam.

Há dias um aluno perguntou-me o que faço para obter inspiração. Por instantes baloiçou-se-me na boca uma banalidade, um chavão, uma resposta pronta. Estávamos numa sala comprida, ladeada de computadores de última geração, respirando o ar impregnado dos cabos e dispositivos eletrónicos. Falávamos de António Vieira e da coragem de discursar sobre o abismo. «Não sei», «nunca soube». E esta é a certeza. Inspiração, como quem abre os brônquios a um ar leve e lavado de outubro, tangendo o orvalho e as folhas muito verdes do funcho e da lúcia-lima, não a sei explicar. A não ser, talvez, como uma grande nostalgia, uma vontade melancólica de reinventar os dias de trás para a frente, como quando o lápis se quebrava na linha nervosa e eu pensava «este não é o caminho». De repente, a humanidade esfarela-se no papel, entumecida de estupidez e de orgulho perverso. E é necessário que alguém diga «este não é o caminho».

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Será errado escrever muitas vezes sobre alguém que se ama?

Fotografia de Nancy Borowick

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Para Maria Alice Pereira Costa, (08-06-1956 – 21-09-2024),  in memoriam

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Arde sempre uma luz junto à Sagrada Família. Fiz uma promessa, que cumpro inquebravelmente. O lugar da luz deve ser esse, esse lugar onde até a noite chega a ser a bonita. É como nos quadros de Caravaggio: a sombra aconchega-se às velas, às candeias, aos olhos flamejantes, às cores fortes das túnicas e adormece. Quando tu partiste, jurei que haveria sempre luz a amansar a escuridão cá em casa, ainda que ao menos com um fósforo aceso, com uma frase dita de dentro para o fundo, ao menos com um olá, mãe.

As datas são terríveis. Digo sempre a mesma coisa, mas não encontro outra forma de o dizer. Foi o um de novembro, assombroso, pesado, anestesiante. Foi o Natal, esse golpe certeiro: estiveram cá o Presépio e o Pinheiro – a Catarina fez questão – mas a aldeiazinha de Belém pareceu-me mais longínqua do que o canto do universo de onde saiu a estrela eufórica. Foi o Dia da Mãe e eu incapaz de escrever uma linha. Agora o teu aniversário. O primeiro. E eu às voltas com a casa desarrumada pelas lembranças, eu perdido nas frases, no riso, nas subtilezas da voz, evocando essas cordas de peripécias que nos punhas à mesa à noite, enquanto o caldo ia cozendo nos potes de ferro da lareira e rezávamos o terço, com a Renascença a ditá-lo diretamente da Capelinha das Aparições. A tua vida era cheia e difícil, mãe. Tenho a alma em pantanas. E, sim, as datas são atrozes.

Fazes 69 anos hoje. E, no entanto, como te direi, não fazes anos. Fazer anos era tu estares cá, e tu estás cá mas não os fazes. Um filho (e somos quatro) baralha-se com as palavras: ainda há pouco sentenciavas, profetizavas, insuflada por uma certeza irritante:

Esta é a última vez que me cantais os parabéns.

E já esse dia tão remoto, tão próximo ainda, nos abre fissuras nas paredes do juízo.

Não digas isso, mãe.

E o teu silêncio, os teus opacos olhos sem claridade ou fosfenos, a tua lassidão crescendo até sair pelo nariz sob o arranque de um suspiro.

Deus lá saberá.

Era como quem ouve o comboio antes dos outros, a tremer, a apitar, a vir no remanso da noite, a acercar-se da luz como as trevas dos quadros de Caravaggio, a fingir que é maravilhoso estar tudo bem.

Não digas isso, mãe.

Tinhas razão. Tudo aconteceu de súbito, muito depressa, tudo devagar e tudo vertiginoso, tudo carregado de espanto e de dor, tudo cá dentro a soltar-se de cada memória que me põe a alma num desarrumo: tu comigo ao colo, tu deitada na cama do hospital, tu derreada sobre os teares, tu com o dedo erguido a suspeitares de alguma, tu a cuidares da avó, tu a amassares o pão e a metere-lo no forno, tu a despedir-te, entubada, cheia de hematomas, tu corada de alegria, tu no féretro – fria como um papel – quando pela última vez te beijei.

Para o ano, sabe Deus!

Não digas isso, mãe.

E eu, nós os quatro, os cinco (que o pai também entra, evidentemente), a alucinar, a murmurar ao almoço que farias hoje 69 anos se fosses viva. E eu, nós os cinco, a odiarmos esses verbos conjugados no condicional, no conjuntivo, como se não estivesses viva, como se não estivesses aqui entre nós, a escutar com o teu sorrido trocista o «Parabéns a você, nesta data querida», como se nos falhasses numa data tão importante, tão inesquecida, tão acordada logo pela manhã na pequena vela bruxuleando ao pé da caixa de madeira com a Virgem, o São José e o Menino.

O cancro intrometeu-se. Sempre abominei a minha cobardia em relação a doenças. Estou sempre a rever-te, com os pulmões a laborar num esforço tremendo, com o punho empurrado para o peito:

Este filho da puta não para.

E nós, com os olhos mergulhados em nevoeiro, com o nariz a pingar de tristeza, com a voz aluindo na garganta:

Ó minha mãe.

Jurei – na véspera de nos deixares – que enquanto for pessoa neste mundo há de existir sempre uma luz a irradiar da Sagrada Família, a alastrar pelos interstícios da casa, a fazer recuar corajosamente as sombridões, a trazer no lume amigo de um círio a tua segurança, a tua sensatez, o teu desenvencilho, os teus provérbios, a tua liderança, a tua maneira de contar histórias com humor e sem maldade. Jurei explicar-me assim quanto à saudade, que às vezes soca e asfixia com violência. O lugar da luz é o interior das metáforas. A luz deve dizer mãe com a mesma solene suavidade com que a chama diz amor.

Será errado escrever muitas vezes sobre alguém que se ama?

Herberto Helder escreveu em A Colher na Boca, 1961, aquela que me parece ser a mais pura justificação para esse amor: «As mães são as mais altas coisas / que os filhos criam, porque se colocam / na combustão dos filhos, porque / os filhos estão como invasores dentes-de-leão / no terreno das mães». Estes versos não podiam caber mais direitos nem mais luminosos nesta crónica.

Esta não será a última vez que te cantamos os parabéns, minha mãe.

Estou bem agora. Não vos preocupeis comigo.

E é por isso que me parece a luz tão delicada, tão macia, tão catártica, agora que a noite vem e as sombras – tenho de o repetir – chegam quase como em Caravaggio a ser bonitas.

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Crónica de dois turrões

Fotografia de Alan Pope

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Desde que a minha mãe partiu a casa é uma armação de tijolos presa por arames. Divido a maior parte do tempo com o meu pai, cujos interesses são sobretudo a horta e os trabalhos manuais. E o meu pai divide a maior parte do seu tempo comigo, cuja evasão são sobretudo a escrita e o sonho de uma casa nova.

Vejo-o muitas vezes de sandálias nos pés, sem peúgas, no meio da hortaliça e do cebolo, mesmo nas difíceis manhãs frias de nevoeiro e chuva. Ou então derreado ao sol, sem chapéu, com um alicate nas mãos, a embeiçar uma dobradiça ou a corrigir as tamis de uma peneira. E eu irrito-me com a sua teimosia, com o olhar que me faz de lado como se estivesse mesmo a dizer-me:

Vai para o raio que te parta.

E preciso de aspirar uma grande quantidade de oxigénio, de escolher melhor as palavras que saltitam na cabeça num modo de peixes na canastra:

Pai, olha o frio. Mete-me umas meias. Calça umas botas.

E ele, barricado em si, cheio de impávida mestria, a consertar a dobradiça, a remendar a peneira, a arrancar ervas dos talhões verdíssimos, a ignorar-me, a fazer de conta que a idade não é para todos, à espera da reprimenda seguinte:

Pai, este sol mata. Põe um boné nessa cabeça, se faz favor.

O tempo apanha-nos quase sempre nas dúvidas metódicas. O carteiro veio? O que havemos de fazer para o almoço? A tua irmã virá aqui mais logo? Quando é mesmo a tua consulta de urologia?

Uma casa com dois homens é um barco sem leme e com dois motores. Parecemos abelhudos porque somos abelhudos. Turramos como bichos teimosos, inflados da certeza de que o outro não sabe o que faz e que se a mãe fosse viva isto piava de outra maneira.

Porém, seria hipócrita não falar de mim.

Muitas vezes paraliso na sanita com o Expresso de há quatro dias nas mãos, a coaptar pedaços de um artigo de economia, a passar os olhos pela revistinha de turismo, a pastar com a palha dos analistas políticos.

Vais demorar muito aí dentro?

E o tom é repleto de sarcasmo. É irritante. Um tipo precisa de paz para apurar as nuances da sociedade, para se informar, para curar o mal da cabeça. Não respondo. Nunca respondo a provocações desta espécie.

Anda-se com o aspirador de um lado para o outro, com esfregões e detergente dos vidros. Mas às tantas cai um verso de cangalhas, jeitoso, precioso, fundamental. Atiro-me ao caderno, escrevo, rasuro, releio, reescrevo, anoto, gloso, divirjo setas entre os versos e as linhas. E é nesse poço de silêncio, quando mais e melhor me sabe o ritmo das palavras, que me atordoa a voz intrusa das coisas práticas:

Vou ao LIDL. Precisas de alguma coisa?

Ultimamente tenho-me perguntado para que serve tudo. Uma casa é um labirinto de tarefas. Há sempre pó nos mesmos esconsos e reentrâncias, nos mesmos rendilhados da madeira, nas mesmas dobras de marfinite dos anjinhos. O sabão da espuma reaparece sempre na mesma cerâmica e sobre o mesmo espelho. Por muito que me acocore para aspirar a base dos móveis e por debaixo das camas, lá me encontra o sempiterno cotão malfadado a obrigar-me a despedir do seu poiso, numa sequência de dominó, edredões e cortinas e caixas com arrumos e sapatos e sapatilhas e chinelos. E há os pratos para lavar, a roupa a estender, o ferro à espera do cesto com calças e camisas, os pátios a suplicar por água, os vasos das orquídeas a exigir manutenção. Uma casa é um cativeiro brutal. De recordações, de objetos, de embrulhos, de quinquilharias e bagatelas que acumulamos por simples deslembrança da vaidade e do vento que passa do Eclesiastes.

E depois há o relógio que oxida tudo. As caleiras, as tubagens, as linhas de raciocínio, a memória.

Pai, a porta do frigorífico!

E ele, como quem não quer a coisa:

Não fui quem deixou a luz do escritório acesa.

E eu a inchar de vingança:

Nem eu quem deixou uma torneira aberta na casa de banho do anexo!

E ele saturado de razão:

Sempre quero ver quando chegares à minha idade, sim, sim.

Contemplo a minha vida. Velho e jovem em simultâneo. Derreado e criativo paradoxalmente. Esperançado e sem fé no mesmo passo. Cismo nos livros abandonados sobre a mesinha de cabeceira, nas muitas viagens que devo à vida, nos projetos esfarrapados pela invernia precoce, na agulha que pulou na bússola das minhas paixões. De repente já não sei quem sou nem no que acredite.

E é por culpa disso que me agrada tomar o pequeno-almoço com o meu velhote. É certo que me repete todas as manhãs as suas façanhas de Don Juan dos tempos da tropa. Mas recompensam-me os morangos frescos, acabados de colher no quintal. Há alturas em que maça escutar pela milésima ducentésima quinquagésima quinta vez a peripécia das faúlhas do comboio que lhe sujaram a camisa branca e o fizeram abortar missão numa conquista romântica para os lados da Trofa. Mas impressiona tê-lo ao pé de mim, a viver com energia autêntica o sopro de Adão, em lugar de estar longe, perdido numa penumbra de corredor, mordido por uma ventosa qualquer.

E a aturar-me. Porque se há coisa que muito me espanta é que haja no mundo quem disponha de paciência para o fazer.

Como disse, de repente já não sei quem sou nem no que acredite. Tiro um café na máquina e desço ao esconderijo. Atiro-me ao computador e ponho-me estas frases à frente. Precisava delas. Por uma ou por outra razão precisava.

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Elegia, ou quase

Escritor Português, João Ricardo Lopes
Fotografia de Ales Krivec

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(Mateus, 20:1-16)

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Na minha frente a paisagem mais significativa: vinhas desenhadas com precisão, um pequeno palacete entre elas, ao fundo – na orla do espaço – um bosque. Árvores outoniças, bordos amarelos e alaranjados, carvalhos, uma linha de choupos quase despidos a tocar – à distância – o branco, árvores verdes ainda, castanhas, outras atirando ao azul, como os pinheiros nórdicos que alguém aí plantou e me dão agora a sensação de um ar frio vindo de muito longe.

Saí mais cedo do almoço. Não suporto almoços. Os dias de almoço atrasam-me. Estar parado aqui, no meio da viagem, não. As pessoas fazem-me desperdiçar horas, obrigam-me a gostar delas, a preferir o seu bom gosto, a admirar escravamente o seu blush, o seu batom vermelho a combinar com as unhas, o seu decote, a sua joia ostensiva, a sua juventude, a sua perfeição física.

É uma vinha enorme. Homens vêm e vão deslocando-se em tratores ou a pé, com ar de quem sabe cuidar e de como proceder com cada videira. Admiro sem limite a sua sabedoria. Sinto-me intimidado pelo desenvencilhar dos seus gestos, pelo orgulho discreto das suas mãos quando se servem da tesoura da poda. É como se dissessem não existe maior dignidade no ser humano do que a dignidade de trabalhar bem, com limpidez, tocando as velhas coisas com amor.

Detesto as coisas novas. A ciência do digital, a produção de conteúdos balofos, a beleza oca das pessoas falsas e falsadoras. Por isso me penalizam tanto estes encontros, as reuniões sem pontos de ordem, os convívios com gente que deixou de ser gente e se tornou um produto narcísico, hipócrita, corrigido pelos retoques estéticos e elevado à curva sinistra do snobismo.

– Quando casas, Ricardo?

Abandono os almoços – invariavelmente – no instante em que começam as perguntas. Pior do que os detalhes alheios são as perguntas. Hesita-se, duvida-se, responde-se às vezes. Mas as pessoas não escutam. As pessoas agora interrompem os discursos confessionais, porque são extremamente incapazes de não partilharem mais detalhes, mais conteúdos, mais informação cativante das suas existências-fitness.

Gosto de viajar com as janelas do carro abertas, a absorver os cheiros, o ar, as vozes que chegam de fora. Às tantas apanho na frente algo de que gosto e paro. Antes fumava, agora não. Agora limito-me a permanecer em silêncio, a colher com as pupilas, como o rinencéfalo, com a saliva aquilo que o acaso me traz. Este perfume da terra, por exemplo, esta impressão húmida dos musgos sobre os muros de pedra, estes vinhateiros afanados. Cortam os ramos secos e parecem falar sozinhos. Ou talvez conversem com as cepas. Avançam devagar pelos corredores do terreno e expurgam-nos, limpam-no dos excessos, cutilam a lenha pelas vergônteas certas. Depois carregam tudo e avançam um pouco mais. A vinha rejuvenesce.

O escritor José Tolentino Mendonça surge-me pelo meio dos fotogramas deste filme. A sua poesia cabe aqui com delicadeza, com humor, com pertinência. Talvez por ali, onde a neblina inçou de repente, vagueie Deus. Talvez por ali vagueie calado, com as mãos atrás das costas, distraindo-se um pouco do extremo sacrifício da sua solidão. Acredito que vagueie, decerto saturado da beleza e perfetibilidade dos seres que orbitam a maior parte do seu tempo.

– Quando é o casório, Ricardo?

E eu entendo que o Pai Celestial se queira talvez sentar ao meu lado no lugar do pendura, a observar comigo esse postal, a descansar do fastio e da insuportável sensação de que o tempo é simplesmente estúpido quando passa por nós e não nos leva consigo.

Os homens conduzem agora os tratores para outro pedaço da quinta. Invadem-me os ciúmes e uma certa tristeza. Dou uma volta à chave na ignição, o carro responde, despeço-me disto, de Deus, de mim. Esperam-me já noutra parte. Tenho de ir.

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Ezequiel

Alfarrabista,
Fotografia de Eli Francis

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É um mar de livros desde a porta. E a seguir a esta primeira está outra porta, para lá da qual um novo oceano de títulos pesa e alastra. Entra-se e fica-se de cabeça aluada, derramando a atenção, de alto a baixo, sobre coisas tão vagas e exóticas como num ervanário. E são elas fólios com dezenas e centenas de anos, amarelando sossegadamente num poiso quieto, títulos puídos, ultrapassados, mais do que as capas ou as folhas, pela imisericórdia das modas.

De aqui ou dali, pendulando a barriga farta, assoma Ezequiel, sempre com os óculos caídos sobre a cana do nariz e o lábio dobrado em jeito de quem pensa em contas, resmungando coisas meio para dentro, meio para fora e a conhecer-nos o gosto pela livralhada, a sondar já o modo de impingir a última novidade.

Aqui perco-me em geografias e dinheiro. Compro às cabazadas. Outra coisa é que seria de espantar. O alfarrabista é um tipo de homem misterioso. Nunca diz como consegue o impossível. Porém consegue-o. E o impossível é o pretexto para fazer chegar mais longe a sua magia. Ezequiel é, por isso, uma espécie de feiticeiro, com quem sustento uma relação com tanto de amigo como de nevoento. Talvez um dia me venha a convencer de ele que é apenas um homem gordo, habilidoso, fanático das primeiras edições.

Apareço-lhe à porta por causa da última edição de Herberto Helder, aquela coisa que veio numa semana e esgotou.

«Esses fideputas da Assírio fizeram três mil e estão a tratar de meter fome ao povo para se atirarem a uma edição maior. O gajo não publica há quase dez anos… O que é que esperava?»

«Mas ó Ezequiel. E se a coisa não é reeditada?»

«Mesmo que seja? Já não é a mesma coisa. A primeira edição é sempre a primeira. A segunda vale metade ou nem isso. Não digo agora, mas no futuro… Mas não se preocupe que ela volta…»

«Está bem, mas isso é você que o diz. Eu queria era o raio do livro. Importa-me cá se é primeira ou segunda edição.»

«Deixe estar que qualquer dia começam a aparecer-me na loja coisas em boa estado e eu guardo-lhe uma! Em contrapartida, olhe-me esta beleza!»

E logo as mãos papudas puxam uma edição encadernada de doirados e capa dura do Amor de Perdição. Abre-a com cuidado para fazer saltar um bilhetinho, grafada com aquela maravilhosa caligrafia do século XX, onde lê na folha de rosto:

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Para a benquista senhora Eloísa,

Pondo em cada uma destas linhas o muito que lhe quero, e que nestas páginas enxergue o quanto o insano amor pode no bem e no mal.

Seu, Eleutério Emanoel, Natal de 871

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Uma vaga tristeza apodera-se de mim. Que os livros o consigam não é razão para surpreender, de tal modo ficam impregnados de nós. O amor que lhes temos, com que os estimamos, de que lhes extraímos luz e fogo transforma-se, porém, num achado solitário e pungente quando vindo do passado, cativo numa orfandade de nomes e afetos e que se semelha a uma casa em ruínas, despojada da sua gente e da sua razão de existir.

«Acabam em tipos como eu e noutros artistas como você… não tenha pena. O que há mais por aí é lixo. Só me dói é pensar que relíquias destas vão parar às mãos erradas e ficam entaladas em paredes para imbecis de cachimbo.»

Mas há ainda outra coisa que me esmaga a garganta. Ali, naquele recheio de nomes, de vidas peneiradas de filosofia, estética, poesia, amor, literatura, anda a sensação de vanidade de que não gosto nem de me acercar um milímetro:

«Eh, pá, Ezequiel. Tanto tipo que escreveu alguma coisa. Tanta obra-prima para armazém e ninho de pó. Já viu o que é ter uma vida inteira investida num logro?»

«O quê? E pensa você que estes tipos valem todos o mesmo? Há-os aí ao pontapé, tipos como os que agora andam de congresso em congresso, a papar meninas e a deitar merdas cá para fora… Os gregos é que a sabiam toda. Os gregos é que são sempre novidade… Não se fez mais nada depois deles. Prefiro um verso de Homero que todos os livros desta tropa de agora. Quando me chegam à loja com as merdas deles atiro-as ali para o monte.»

Lembra-me um sátiro este Ezequiel. Um histrião a bambolear as ideias sem pejo. E por isso, um tipo honesto que escreve duas coisas tem mais dia, menos dia de sujeitar-se-lhe ao julgamento. Tem de levar com a vergasta enquanto pode, enquanto valha a pena.

«Ó Ezequiel! Você não grama nada aquilo que se publica hoje. Já leu algum dos meus livros? Presume-os assim tão maus?»

«Vá-se foder. Se está à espera que lhe elogie os livros veio bater à porta errada.»

«Calma. Espere lá. Como a um amigo. Do alto da sua autoridade de homem de livros, acredita que se aproveita alguma coisa na minha escrita?»

Roda nos pés, faz-me sinal com um dedo para que o siga e entre os corredores do seu bazar apinhado, claustrofóbico, o nédio homem aponta-se por fim um canto onde se organizam em pilares obras de um sem número de poetas, com Píndaro, Teócrito, Safo, Homero, Alceu e outros irmãos de Antiguidade à cabeça. Salta-se de época ao ritmo das estantes. Shakespeare, Rilke, Baudelaire, Whitman, Hölderlin, Pessoa e um fio de incontáveis pérolas vem-se seguindo.

«Estes eu não vendo. São primeiras edições dos melhores. Tenho-os aqui apenas para me lembrar de lhes acrescentar outros que apareçam. Quando tiver alguma coisa que mereça caber aqui, eu digo-lhe amigo! E depois, eu vendo livros. A minha opinião não vale como a de um doutor, não concorda?»

Devo ter mudado de cor, porque a verdade que o é na sua genital aparição faz isso. Logo o Ezequiel, num jeito contemporizador de negociante, emenda:

«Tem algumas coisas de que gostei. Mas é cedo para balanços de vida. Já vê por aqui o que sucede aos bandalhos. Um tipo só é bom quando percebe que não tem nada a perder e começa a pôr nos livros aquilo de que ninguém está à espera.»

Acabo por sair com uma coisa ou duas a que os meus olhos se haviam fixado, coisas tresmalhadas e que não hesitarei perfilhar.

«Se arranjar aquilo, dê-me uma apitadela, Ezequiel.»

«Dou. E quando começar a publicar alguma coisa com jeito, também lhe dou uma apitadela. Como não tenho cá nada seu, suponho que vai no bom caminho…»

E dito isto, atira o bandulho para o interior do seu oráculo, onde não mais tenho tornado, incapaz que sou de assumir um progresso, um avanço, digamos um recuo aos gregos, uma aproximação digna de registo aos mestres. Que o são, nunca duvidei.

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Mais perto

Omar Alnahi
Fotografia de Omar Alnahi

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Procura-se, procura-se melhor, procura-se com afinco e é então que surge o orifício, melhor o alçapão, melhor ainda o portal para esse tempo julgado desprendido de nós, a vaguear no vazio – como uma jangada sem gente, quer dizer com gente, gente morta, gente que nos visita em sonhos e que nós visitamos no pensamento. Procura-se e às vezes descobre-se um modo de descermos ao mais fundo da existência. Principia nesse instante a poderosa viagem a que um caderno aberto e uma lapiseira afiada aspiram.

Por exemplo, estes dias em que andamos de pijama pela casa, pelo pátio, pelo meio dos livros e ocorre-nos de repente que os nossos gestos são os gestos dos nossos velhos – escrevo velhos com amor, com devoção. Por exemplo, esta forma de acariciar as folhas carnudas da alfádega, de roubar à pele da mão o hausto por sua vez por ela furtada aos folículos dos manjericos, à citronela, ao verde luminoso dos fiolhais. Damos por nós a tombar num mergulho de décadas até a um quintal antigo, até a um avô que procedia exatamente do mesmo modo nas manhãs solares de junho.

Estamos a vê-lo, as repas do cabelo e a barba rala – do mesmo tom tisnado – por fazer, o rosto macilento, o colete de lã azul, as calças enfunadas por dentro das galochas, a enxada ao ombro. Vemo-lo a fazer a vistoria diária aos regos de milho, ao talhão das batatas, à inflorescência das vides. Amiúde o olhar perde-se-lhe mais rúbido, mais aquoso, mais longe. Vemo-lo a palpar o tronco das árvores, a medir o tamanho dos caules das cebolas, a fazer cócegas aos tufos de salsa, a dizer de si para si coisas que apenas se percebem ditas pelo movimento aguçado do queixo e da boca infeliz.

Estamos a vê-lo. Funga como nós fungamos. Leva a palma ao cabelo como nós levamos. A feição de tirar da ameixoeira o fruto amadurecido e rescendente e de o passar pela roupa sem outro modo de o lavar é a nossa feição de o tirar da fruteira e de o levar à boca. Estamos a vê-lo. O seu sorriso breve e tímido é o nosso sorriso. Sorri para os pequenos bichos que cacarejam e chafurdam na lama. Cada qual com o seu nome próprio, porque esse avô gostava como Adão de nomear os animais. Estamos a vê-lo. Com um lápis rombudo anota na face da madeira números e garatujas. Faz a lâmina da serra deslizar sobre a carne das tábuas e constrói coisas, guarda as aparas, aproveita-se do serrim. Tudo é bom e útil e dádiva que se não deve menosprezar. Estamos a vê-lo e, vendo-o, vemo-nos na grande proximidade que apenas a distância soube mostrar.

Tropeçar na memória é um risco que corremos. É uma espécie de vágado. Pomo-nos a deambular em silêncio pelos corredores e precisamos de uma voz apontada às folhas lisas do caderno. Sentimos a orfandade dilatar-se dentro de nós como um tumor. O tempo, que desnovelamos pouco a pouco com palavras humildes e tersas, magoa.

Esses velhos pareciam criaturas eternas velando por nós, aconchegando-nos no fogo particular das suas palavras, e eis que de repente passaram trinta, quarenta anos, e nós somos o lugar difuso que eles ocuparam. Repetimos-lhes os provérbios, o gosto pela broa, a sisudez endurecida pelo orgulho, a repugnância pelos fracos, traidores e hipócritas deste mundo. Somos hoje os velhos do amanhã e damo-nos conta de que pequenos seres ao nosso redor nos espiam e nos imitam, atentos aos mínimos movimentos da nossa solidão.

Procura-se, procura-se bem, procura-se no fundo das gavetas, procura-se por detrás das sombras, por dentro da ofuscação do aqui e do agora e é então que surge essa frincha, essa abertura, essa ruína antecipada de nós mesmos zarpando em direção ao ponto mais vago do horizonte. Adestramo-nos na morte. Estamos mais perto, cada vez mais perto, pertíssimo talvez. Desconfiamos que alguém possa à retaguarda acompanhar-nos nessa viagem – açodada agora – de palavra para palavra, a mais veemente a que um caderno aberto e uma lapiseira afiada podem aspirar.

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Ter tempo

Travis Essinger
Fotografia de Travis Essinger

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Ter tempo ou não ter tempo distingue o modo de vida da maior parte das pessoas e, sobretudo, divide a nossa em duas províncias praticamente incompatíveis, cuja fronteira se situa algures entre o fim da infância e o começo da puberdade, quando nos começamos a separar da elementaridade de levantar, lavar o rosto, vestir e calçar o corpo, beber o leite com café e ir, porta fora, em direção ao futuro.

Costumes como os de apanhar grilos ou malmequeres, admirar o ninho das escrevedeiras (com os seus ovos sarapintados) ou o choro das abecoinhas; costumes como os de saltar muros de pedra, trepar aos carvalhos cheios de luz ou invadir a penumbra cerrada das cisternas; costumes como os de procurar pedaços de telha e restos de madeira para o jogo do galo ou de escolher pacientemente cascas de eucalipto e agulhas de pinheiro para criar hélices e vir a correr da escola (levantando voo), com a mochila aos saltos nas costas (em lugar desses pesados sacos de sabedoria que os miúdos carregam agora); costumes como os de cumprimentar vagarosamente os velhos que encontrávamos e que nos faziam uma vénia; costumes como os de procrastinar a numeração romana e as composições que nos vinham no caderno, como deveres que a professora talvez nem corrigisse na aula seguinte; costumes, enfim, como os de olhar as nuvens e assistir à sua lenta metamorfose eram parte de um respirar magnífico, de cujo fim nem vale a pena falar.

Porque dificilmente se entenderá hoje outro modo de responder ao mundo que não seja o da velocidade, o da imediatez, o da pressa rancorosa com que galgamos etapas e queremos chegar rápida e brutalmente ao destino, a um desfecho, à meta. Vivemos sem tempo e com medo de perder tempo, impacientes para o que se atrasa (um chá demasiado quente, um golo evitado pelo guarda-redes adversário, uma placa de «Volto Já!» na repartição ou na loja aonde nos dirigíramos). A verdade é que construímos com o nosso fio existencial uma rede de elipses, de sínteses devoradoras de informação. Substituímos a memória por projetos, trocamos os rituais diários por rotinas, a alma por ambição. Acordamos com o despertador, engolimos o pequeno-almoço, conduzimos esporeados pelo cronómetro mental, possuímos regras próprias para nos defendermos das regras coletivas (damos o beijo de despedida sem tocarmos verdadeiramente a outra pele, deixamos recados escritos em modo de estenógrafo, gravamos mensagens de voz, preferimos sinais a palavras e palavras a gestos), e quando chegamos sentimo-nos compelidos a ir de novo, a partir noutra direção e depois noutras, numa voragem em que perdemos a noção do nosso próprio caminho e da nossa presença em nós mesmos.

Ter tempo ou não ter tempo é uma questão filosófica. Porque dele depende tudo o que é (ou era) realmente importante na relação humana (da arte ao sagrado, da valorização das grandes causas à família). Ter tempo ou não ter tempo é o mesmo que retirar um sentido ou não retirar nenhum sentido das coisas. A esse respeito, Gilles Lipovetsky observa no seu incontornável A Era do Vazio que «A indiferença pura designa a apoteose do temporário e do sincretismo individualista». Não há maior individualismo do que o de mergulhar na sua própria escuridão.

Contaram-me há dias que uma senhora octogenária foi internada no lar aqui na vila, porque o filho deixou de poder cuidar de si. Ele precisava, naturalmente, do seu emprego e a senhora exigia cuidados específicos, que apenas uma instituição como um lar de idosos podia prestar. Compreende-se tudo isto. A vida comunitária, como a conheci na infância, simplesmente desapareceu. Entretanto, a idosa aguardava todas as manhãs à janela a hora em que o filho deveria passar na sua motorizada a caminho do trabalho para lhe poder acenar. Compreende-se: o lar localiza-se à beira da estrada, com vista ampla. Uma, duas, três, infindáveis semanas se sumiram sem que uma única visita filho tivesse acontecido. Afetadas pela comiseração, as funcionárias do lar contactaram o dito, que lhes respondeu laconicamente com «Tenho uma casa e filhos para manter!»

Ter tempo ou não ter tempo é, portanto, um assunto sério. Na minha antologia pessoal dos melhores poemas lidos, consta um de Herman de Coninck, poeta belga que assina estes versos:

MÃE

O que fazes com o tempo
é o que um velho relógio de pêndulo
faz com ele: bate as doze horas
e leva todo o tempo necessário.
Tu és o relógio: o tempo passa
Mas tu ficas. Esperas.

Esperar é o que acontece a um jardim
sob a neve, a um tronco de árvore
sob o musgo, esperança de melhores tempos
no século XIX,
palavras num poema.

Porque poesia tem a ver com duração
deixar que as coisas ganhem bolor,
deixar que as uvas se transformem em álcool,
cristalizar os factos, fazer conserva
de palavras, na cave de si próprio.

É um assunto sério, terrivelmente sério, sem paralelo no cartapácio de assuntos prementes com que lidamos. A morte do tempo antes do tempo é um precipício, um abismo. Faço apenas uma pequena ideia sobre o quanto há de doer cair doerá. Mas não consigo imaginar o que nos espera do lado de lá desse buraco. Lipovetsky chama-lhe «vazio impenetrável do futuro». Pela minha parte, chamar-lhe-ei «desumanização», «robotização», «bestialidade». Tudo sinónimos imperfeitos, mas igualmente maus.

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