A vinha estende-se por uma área pedregosa, calcária, atingindo com o seu verde às vezes ralo as encostas mais a sul do rio. Não é ainda uma paisagem bonita, nem suficientemente encorajadora quer em número de litros, quer na qualidade neles encontrada.
Mas de Bernard Mureau não se pode afirmar que seja pessoa para deitar os bofes de fora à toa. Agora mesmo o vemos, tinto como uma cereja, a teimar com a picareta no torrão endurecido de um panascal, com o propósito firme de o transformar em terra produtiva.
Grandes revoadas de pó saem de ao pé de si e vêm encosta abaixo, assentando entre as folhas mortas destas videiras obstinadas. O pó cobre os carreiros de formigas e as formigas, iguais a fantasminhas teimosos, avançam na direção dos montículos açucarados em que se transformaram ao fim e ao cabo os gaipelos abandonados no chão. Em breve não haverá calor, nem carcaças doces de uvas, nem motivos para aqui processionarem as formigas.
Mureau tem uma visão.
É um desses loucos determinados a deixarem a sua marca, desses que britam a pedra por um quinhão de celebridade, por um nome, por um aroma inconfundível.
Além, mais perto da casa do que da pedreira, nas caves desensarilhadas para já de teias de aranha, no interior de cubas herméticas e imaculadas, repousa o primeiro manancial da quinta. Mureau torceu o nariz, sabe-o ainda titubeante, insuficiente, em formação.
Mas se, por um lado o assalta a ideia de parar por aqui, de acabar com a sísifica tortura de esventar pedra e de viver o seu tempo com um mínimo de paz e de prazer, por outro, espicaça-o a insânia de transformar rocha em vinho, de vencer impossivelmente, de impor à terra o seu tributo implacável. É neste segundo estado que se sente mais quem é. As mãos enrijam, a longa lâmina da picareta endurece, todo ele esmilha com mais vontade a penedia escabrosa.
Ninguém duvida que um dia se beberá daqui a melhor pinot noir de toda a Toulon, da região da Provença, do sul da Europa. Cavando e escando, há nesta sua férrea determinação a escrita profética de um demente.
Em Albitreccia, a meio do vilarejo, numa colina sobre o bosque, ergue-se como uma ilhota de pedra a pequena igreja medieval. Ou o que dela sobrou.
Os séculos despiram-na impiedosamente. Primeiro dos sinos e do ouro litúrgico, depois das imagens ricamente esculpidas em cedro e dos frescos, por fim dos vitrais e dos telhados, das portas e da pia batismal. Os lavradores chegaram a usá-la para guardarem as reses. Agora nem os vadios ali querem entrar. É só um amontoado de granito e tábuas mal pregadas, dispersas pelo chão barrento.
Um professor estrangeiro afirma que na pedra do tímpano, em letras quase apagadas, se lê que foi consagrada no ano de 701 a Santa Luzia de Siracusa. Com efeito, muitos são aqueles que, saindo ou entrando no bosque nos últimos dias de outono ali veem luzes misteriosas. Falam em centenas de velas acesas, ardendo no meio da solidão.
Os céticos admitem que a lua cheia, reluzindo em folhas húmidas da carvalho, criam esse revérbero magnífico. Especialmente quando as neblinas não ocultam inteiramente a paisagem e ampliam o efeito ótico.
Muitos são aqueles que creem que os mortos ali rezam de novo, uma vez por ano, não sabem se sabe se pela sua, se pela nossa salvação.
No centro da cidade, no lugar que tinha sido uma floresta de amieiros no tempo dos celtas, fizeram os romanos nascer um grande jardim de figueiras. Acredita-se que em homenagem à deusa Pomona, ou como lembrança da Figueira Ruminal do Capitólio. Outros, porém (versão mais crível), asseguram que os soldados de Sulpício Galba plantaram ali um bosque de carvalhos-brancos, evocativo daquele outro bosque em que moravam as dríades querquetulanas, em Roma, junto à muralha de Sérvio.
Esse carvalhal sagrado existia ainda no tempo do visigodos, porque (um cronista contemporâneo de Santo Isidoro declara-o) “com madeira de um roble dos antigos pagãos construíram a Hermenegildo o féretro, encimado por uma grande cruz esculpida, por amor da qual mandou Leovigildo, seu pai, cortar-lhe a cabeça. E a inumeráveis outros godos mártires deram a morte e os enterraram com lenhos trazidos da mesma mata”.
Uma centúria se passou, ou pouco mais. Os omíadas de Tárique subiram de África, passaram a fio de espada o rei Rodrigo, trucidaram sem piedade os nazarenos que lhes faziam frente, pilharam e incendiaram vilarelhos, escravizaram servos e senhores das cidades da sua conquista, e aos poucos, num vagar de séculos, levantaram do solo carbonizado e ensanguentado planícies magníficas de amendoeiras.
Com elas branquejou a paisagem muito tempo, até Alfonso, filho de Urraca, imperador da Hispânia, ordenar que fossem arrancadas todas essas árvores e, para melhor purgação dos vestígios islâmicos, abrissem no lugar onde elas frutificavam os caboucos de um mosteiro cisterciense. Quis o destino que os monges de S. Roberto cultivassem nos seus vergéis e bosquedos toda a espécie de plantas e ervas e árvores. Um deles, Frei Juan de Zamora, lendo muitas vezes cartapácios de antanho com cronicões e memórias preciosas, meditando amiúde sobre os desígnios do Senhor, tão esquecido da barbárie humana, sugeriu que no centro do claustro, a ladear o belo repuxo de águas cristalinas, plantassem cinco romãzeiras.
Assim fizeram e ainda hoje, no lugar que foi de amieiros, figueiras, carvalhos e amendoeiras, vermelheja, tantas quantos os dedos de uma mão, as cinco árvores do romeiral. Uns afirmam que em louvor das cinco chagas de Cristo. Outros, porém (tese erudita, menos defensável), asseveram que para homenagear todo o sangue inocente, derramado em dois milénios de terrível predação.
Recebi na passada segunda-feira, pela voz da senhora Presidente da Junta da Freguesia de Fânzeres, Dra. Sofia Martins, a notícia da atribuição do Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres este ano ao livro original EM NOME DA LUZ, distinção que recebo pela segunda vez, depois de em 2001 a ter conseguido com o volume ALÉM DO DIA HOJE.
Soube-o na escola, no final de uma aula, entre corredores apinhados. Confesso que a novidade me abalou e me comoveu profundamente. Não foi fácil o percurso deste livro, iniciado no parque de estacionamento do IPO, no Porto, e construído como uma defesa, como uma resposta, como um caminho de salvação, como um ir para onde a poesia somente nos sabe levar.
Quem me conhece sabe que uso as palavras para que elas signifiquem e para que dentro delas signifiquem as pessoas. Nem sempre sou entendido, ou estimado, ou lembrado. Às vezes vivo longe (numa espécie de voluntário eremitério, como o que Nietzsche atribui a Zaratustra). Quem me conhece sabe o quanto tenho devotado à poesia o melhor da minha vida. E sabe o quanto me vem a poesia guindando bem alto, para lá de certa luz impura (de panegírico fácil e amizade hipócrita), onde o seu silêncio apenas me pode tocar.
Mas agradeço aos deuses tutelares esta espécie de fuga. Ao cabo de tantos anos, receber um novo prémio literário sabe bem. Sobretudo, porque este reconhecimento chega de quem me não conhece, mas às minhas palavras sim.
Os pequenos gestos são os que prefiro. Sei-o desde sempre, mas gosto de o lembrar. Fecho a porta do carro, caminho sem destino, vou considerando devagar as diferentes perspetivas da cidade, as casas, as pessoas, as cores, os cubos de pedra no chão, os sítios de que gosto mais e gosto menos. O ar frio trespassa-me por inteiro corpo e alma, aragem de Outono, lavada, repleta de memórias, estímulos que se agarram a mim, intensos e inexplicáveis…
Cismando nesta coisa que é estar-se vivo, passo e repasso pelas mesmas ruas, mãos nos bolsos, o olhar aceso, registando mentalmente movimentos, impulsos, ideias, até me deixar arrebatar de súbito, num canto qualquer, pelo aroma sublime do pão acabado de cozer, o mais puro e poético dos cheiros! Aroma extraordinário! Ocorre-me com um sorriso provável o quanto eu queria ser padeiro naquela idade em que todas as outras crianças queriam ser doutores, mecânicos e bailarinas.
Itinerário de escritor. Alimentado pelo impulso do pão, da memória e do frio, mergulho nas palavras. Junto-lhes o sabor do café, e sobre o tampo da mesa destapo a parker, entre todas a mais fiel das canetas, disparando-a como um raio sobre a brancura das folhas, plasmando de riscos e correções o papel, umas atrás das outras letras, frases tresmalhadas, pequenos versos, apontamentos incertos, rascunhos de literatura. Sinto vontade de escrever, de saciar essa fome que não se explica, mas que não raro tortura!
Fantasio sobre a cidade, sobre os pequenos gestos, sobre os meus sentidos da estação, destapados, desentorpecidos, julgando captar as coisas, os objetos, os estímulos como numa primeira vez! Repito para mim que Os pequenos gestos são os que prefiro. Sei-o desde sempre, mas gosto de o lembrar. Fecho a porta do carro, caminho sem destino, vou considerando devagar as diferentes perspetivas da cidade, as casas, as pessoas, as cores, os cubos de pedra no chão, os sítios de que gosto mais e gosto menos.
Os pequenos gestos nunca são pequenos! São tudo! Gestos como escrever uma carta no impulso da amizade, gestos como observar a quantidade de ternura de um pai ou de uma mãe a tomar o filho pela mão, gestos como avaliar o calor que se concentra num abraço ou num beijo, ou saborear intensamente os minúsculos rituais que nos cercam e que por capricho se tornam invisíveis, rituais como tomar café e limpar os grãos de açúcar derramados em torno da chávena, rituais como saborear a suavidade do sol, aí pelo meio da tarde, nestes últimos dias de novembro.
Talvez me lamente por tê-los ignorado tanto tempo, por me haver parecido a vida um escombro, ou um puzzle de peças soltas, ou esse vazio onde todos os triunfos e conquistas não silenciam a falta de algo, a dor de algo, a urgência de algo…
Reentro no carro, fecho a porta. Com o caderno em cima do volante e antes de regressar a casa, assento em letra miúda e pausada: O ar frio trespassa-me por inteiro corpo e alma, aragem de Outono, lavada, repleta de memórias, estímulos que se agarram a mim, intensos e inexplicáveis…
Ao cruzar o cinto, com a chave na ignição, transmudado, em paz, prometo-me apreciar melhor os instantes únicos do tempo, os pequenos flagrantes de um quotidiano tantas vezes baço e estúpido, instantes como abrir um presente ou escutar a água, apertar os atacadores ou sentir o afago de uma mão no rosto, segurar até esta velha parker, que comigo vem dividindo a luz e as sombras de existirmos ambos, assim, um para o outro.
O calor morde impiedosamente. Na laguna a poente da cidade, os pombos proporcionam um espetáculo invulgar, abrindo e fechando as asas dentro de água, num modo de peixes desesperados. De resto, não se vê um único gato nos jardins ou nas varandas. Só os trabalhadores da construção civil aguentam firmes no posto, embrulhados numa nuvem de pó e sentindo dentro do capacete o suor gotejar como uma fonte.
Nesta altura do ano, o asfalto (repleto de excreções e de gordura) fede. Fedem as caixas das sarjetas, às quais assoma o bafo pestilento das esgotos. Fede o lixo abandonado, acumulado, fermentado um pouco por toda a parte.
Drusiana Abbagnano caminha à pressa. O seu trajeto: sair da Chiesa del Gesù Nuovo e abrigar-se no claustro do Complesso Monumentale di Santa Chiara, pouco mais de duzentos metros. Apesar de curta, a sua jornada faz-se num palco ababelado, onde turistas de todo o mundo se atropelam e atordoam, iguais a uma cainça.
Aqui, nas imediações do Vesúvio, todos os ângulos parecem formidáveis.
Drusiana é uma monja. Estuda e ora, trabalha e presta assistência no Ospedale degli Incurabili. Na sua cela poisam livros incontáveis de História Medieval. Por exemplo, os Historiarum Libri Quinque de Rudolfo, o Glabro. Interessa-lhe conhecer, sentir o pasmo das almas viajantes, que se descobrem ingenuamente próximas tanto do passado como do futuro. Se a Idade Média é a imensa madrugada, durante a qual a Cristandade ergueu as suas paredes vetustas, o porvir é a manifestação de um propósito. E se estudar as origens da sua fé, amar a música gregoriana, reaprender Agostinho, Tomás de Aquino, Francisco e Clara de Assis constitui para si um deleite imenso (uma imersão em sabedoria e paz), apenas nas obras e no trabalho se realiza. Os outros são a prova de que Deus nos fez nascer incompletos e ignorantes. E, por isso, lhes devota a vida.
Mas este calor, esta sujidade maligna, esta confusão da cidade vendendo-se aos forasteiros perturbam-na.
Tem pressa, sim, procura a quietude, a frescura, o som revigorante da água que sai dos repuxos e corre nos canaletes, através da relva e da murta, ao longo dos arcos e das lajes rebrilhantes e sombrias.
Esse refúgio é o seu paraíso na Terra. Nele (privilégio imenso) ciranda muitas vezes sozinha. Ouve o sapatear das suas próprias sandálias, o canto das rolas-coleiras, o murmúrio das palavras que sempre recita a meia voz dos livros santos.
Peripatética é esta freira clarissa: ensina e aprende, caminhando sempre; a ninguém mais ensina, a si sim, dando voltas ao pátio do convento e repetindo os cânticos fraternos da sua ordem.
Às vezes a chuva vem. Chega de supetão. A monja escuta-a e observa-a, poderosa, abluente, caindo sobre a pátina urbana como uma graça infinita do Senhor!
Em Nápoles, a chuva não é despicienda ou arbitrária: Deus serve-se dela e do pó, como da tinta e do papel se servem os homens. Depois da chuva todas as coisas se parecem humildes e reabilitadas, como depois de um perdão.
Mas hoje o calor é imenso. Insuportável.
Não lhe pertencem, ainda assim, os pensamentos de Drusiana.
Pensa, isso sim, na velha senhora, de aspeto débil e pálido, que lhe estendeu as mãos esta manhã e lhe disse “Adeus”. “Onde estão os teus filhos?” perguntou. Como é seu hábito, a monja repete num modo recitativo as palavras em que medita. Escuta e repete, repete e cisma:
“A ‘o cane viecchio tutte quante lle scarpesano ‘a coda”.
Já em muitas ocasiões, no leito de morte de outros doentes, sentiu a mesma vivíssima impressão de amor. Têm talvez a mesma idade, histórias diferentíssimas e, por fim, quem sabe o mesmo destino.
Drusiana pensa na expressão bela, pungente, quase feliz, que a anciã juntou no fim de tudo, como um chiste:
“‘A vecchiaia è carogna, ma pe’ chi nun’ n’ce arriva è vriogne.”
Nós, que entendemos algum dialeto napolitano, traduziremos ambos os provérbios: “Ao cão velho todos pisam a cauda” e “A velhice é uma podridão, mas vergonhoso é não chegar lá”.
Dia de calor insuportável, sem dúvida. Igual a um grande inseto mordendo sem piedade. Todos aqui conhecem a dureza deste aferroar. Em Nápoles até as pedras gemem debaixo do sol.
Também elas cismam e repetem velhos pensamentos dolorosos. Dificilmente traduzíveis.
Dezembro verte uma fina camada de vidro sobre as casas. Em toda a parte doem os nós dos dedos e os ossos. Páraic levanta as golas do sobretudo e sai da taberna. Na Irlanda, a lua cheia é neste mês uma presença transfiguradora: os telhados e chaminés húmidos das aldeias, os bosques e rios atafulhados de velhas divindades mágicas, os promontórios cheios de espuma lá em baixo, tudo para onde o nosso olhar se dirige espelha uma majestade que as palavras não sabem dizer, tal como acontece nos sonhos. Páraic vê nessa iluminação (e em nenhum outro lugar mais do que nela) a presença antiga e visceral de Deus. Não o entendem.
Desde que abandonou o mosteiro (porque foi monge este Páraic O’Reilly), escreve, bebe e às vezes ensina. É vagamente o que se imagina ser um poeta e sem dúvida o homem mais só em todo o condado de Clare nesta noite solsticial de vinte e três, ou vinte e quatro.
Emborcado o último gole da última cerveja em Killarney, toma a resolução. Vem caminhando perpendicularmente ao bojo negro da Catedral de Santa Maria, onde os coros locais ensaiam já, ou ainda, cânticos de louvor ao que nasceu e ao que há de nascer nesta data. Páraic mete-se no carro e arranca para norte. São duas horas e meia, a andar bem, mas vale a pena.
Aqui viveu a infância, aqui vive ainda a melhor parte de si. Páraic sente o formidável cheiro do mar misturado com o do campo. Ardem-lhe os olhos, a garganta também dá sinal de si. Não será por muito tempo. Encontra-se pertíssimo das falésias de Moher. A meia-noite não tarda. Calculou com minúcia cada etapa da viagem. Abandona o automóvel num estradão, espiado somente pelo olhar atónito das corujas, e avança em passo firme até ao extremo do penhasco onde ergueram a Torre O’Brien.
O revérbero lunar nas águas do Atlântico hipnotiza-o. A beleza das coisas não pode provar senão a magnificência do Senhor. Os homens deviam contemplá-la assim, amá-la sem limites ou subterfúgios. De nada serve rezar se não se compreende o encantamento da perfeição divina. Desde que abandonou a condição de monge, foi-lhe ministrada por completo a lição mais dolorosa da sua vida: os caminhos do Senhor são, não apenas insondáveis, como sobretudo paradoxais. É um eremita, um pária, e conhece melhor do que ninguém o significado da busca de redenção, agora que passou à vida secular e se sente odiado por toda a gente.
Lá ao fundo as ondas fosforejam, o vento glaciar empurra-o, todos os seus sentidos o impelem a seguir em frente. Liscannor oferece passagens excecionais para o outro mundo: um passo avante e será um salto, duzentos metros de voo e o fim de todo o seu suplício.
Mas é, então, sugado para o âmago de um círculo de fogo. À sua volta, à meia-noite em ponto, uma claridade terrena acende-se como por milagre. São fogueiras altas, deflagrando desde as escarpas de Doolin, a norte, até aos promontórios de Baile an tSéipil, a sul. Páraic ouve, de chofre, um cântico levantar-se, nascido na garganta de centenas de mulheres que ali de súbito, será um prodígio, surgem do meio das trevas, vindas do nada.
É uma festa pagã, um ritual de que ouvira falar uma vez há muito, mas em que não acreditara. Talvez em honra de Dagda (deusa da sabedoria), ou de Fand (deusa do mar), ou de Tan Hill (deusa do fogo), ou de Arianrhod (deusa do lar), ou quem sabe de Aine de Knockaine (fada do amor e da fertilidade). A vozearia multiplica-se com o rufar de tambores e guizos e ululantes saudações ao inverno que chega.
As mulheres dançam frenéticas, percorrem o manto esverdeado do litoral e atiram os braços à lua cheia. Depressa engolem na sua roda Páraic, apertam-no contra os seios e as coxas, beijam e acariciam-no. Trazem-no de volta à vida para que nelas produza a vida. Esta, insuflado por uma espécie de êxtase orgíaco, cumpre. Cumpre com todas as suas obrigações, não sabe como, nem com quem. Dizem que nessa noite gera setenta filhos.
Evidentemente que as lendas mentem. Do sémen de Páraic O’Reilly vêm ao mundo, quem sabe, sete, três, um filho, talvez nenhum. Setenta, juram por cá.
Era um pedreiro quase analfabeto, originário de uma das aldeias mais recônditas de França, daquelas que vemos poisadas como ninhos de grifos nos píncaros das montanhas. No entanto, as suas mãos cortavam, cinzelavam e ornavam os blocos de granito com a prodigiosa sabedoria com que os autores escrevem tratados.
A catedral precisava de obras, por isso, de mãos como as suas. Subiu a um lugar tão alto que nele não se podia caminhar sem o poderoso mal das vertigens. Ficava no campanário, acima do vigamento e dos sinos. Aí, mal disfarçada por teias de aranha, lia-se a seguinte inscrição:
LUCIUSC RECTOR FABRICAE
ANNUS DOMINI MCLXIII
Não compreendeu o que dificilmente podia ler. Também pouco diziam as duas linhas abertas com o escopro. Nelas apenas o nome daquele que no passado conduziu os trabalhos de construção do imponente e maravilhoso templo – outro montês e iletrado, a quem o tempo destruiu o rasto.
Acordava e logo se vestia à pressa, saindo de casa com uma maçã nas mãos, tirada a correr do saco com as poucas compras que abandonara no dia anterior sobre a mesa.
Entrava esbaforido num dos elevadores da empresa, a esbarrar-se nas pessoas e nas portas, e se lhe perguntavam porque não acordava mais cedo e não procurava acalmar-se, dava respostas vagas e mal tingidas no som. Parecia alheado e talvez um pouco lunático.
Uma manhã chegou atrasado ao trabalho.
Abriu devagar a porta do pequeno gabinete onde passava grande parte do tempo e avaliou, a transbordar de fastio, o andaime de pastas de arquivo e a frota de dispositivos eletrónicos à sua espera. Na penumbra, todo o pequeno espaço esmagava como uma cela.
Na viagem de metro para cá reparara num jovem casal.
Cada um apertava a mão do outro e trocavam olhares de uma leveza e de uma doçura quase ingénua, como as primeiras tardes de primavera. O rapaz confidenciava-lhe coisas que a faziam sorrir e ela, disponível e cheia de beleza, aceitava-as como uma dádiva.
No interior da última gaveta, voltada do avesso, soterrada em papel, estava uma moldura. Pô-la à sua frente e, com espanto, deu-se conta de que lhe doía ainda algo antigo e profundo. Esbanjara a saúde, o amor e a maior parte dos sonhos.
Uma mulher de longos cabelos avermelhados e pequenas efélides, sob olhos muito azuis, dizia “Vem”. Sentado na cadeira do costume (com rancor, sem ânimo de espécie alguma, sentindo grilhetas nos pés), ele não ia a lado nenhum.