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O calor morde impiedosamente. Na laguna a poente da cidade, os pombos proporcionam um espetáculo invulgar, abrindo e fechando as asas dentro de água, num modo de peixes desesperados. De resto, não se vê um único gato nos jardins ou nas varandas. Só os trabalhadores da construção civil aguentam firmes no posto, embrulhados numa nuvem de pó e sentindo dentro do capacete o suor gotejar como uma fonte.
Nesta altura do ano, o asfalto (repleto de excreções e de gordura) fede. Fedem as caixas das sarjetas, às quais assoma o bafo pestilento das esgotos. Fede o lixo abandonado, acumulado, fermentado um pouco por toda a parte.
Drusiana Abbagnano caminha à pressa. O seu trajeto: sair da Chiesa del Gesù Nuovo e abrigar-se no claustro do Complesso Monumentale di Santa Chiara, pouco mais de duzentos metros. Apesar de curta, a sua jornada faz-se num palco ababelado, onde turistas de todo o mundo se atropelam e atordoam, iguais a uma cainça.
Aqui, nas imediações do Vesúvio, todos os ângulos parecem formidáveis.
Drusiana é uma monja. Estuda e ora, trabalha e presta assistência no Ospedale degli Incurabili. Na sua cela poisam livros incontáveis de História Medieval. Por exemplo, os Historiarum Libri Quinque de Rudolfo, o Glabro. Interessa-lhe conhecer, sentir o pasmo das almas viajantes, que se descobrem ingenuamente próximas tanto do passado como do futuro. Se a Idade Média é a imensa madrugada, durante a qual a Cristandade ergueu as suas paredes vetustas, o porvir é a manifestação de um propósito. E se estudar as origens da sua fé, amar a música gregoriana, reaprender Agostinho, Tomás de Aquino, Francisco e Clara de Assis constitui para si um deleite imenso (uma imersão em sabedoria e paz), apenas nas obras e no trabalho se realiza. Os outros são a prova de que Deus nos fez nascer incompletos e ignorantes. E, por isso, lhes devota a vida.
Mas este calor, esta sujidade maligna, esta confusão da cidade vendendo-se aos forasteiros perturbam-na.
Tem pressa, sim, procura a quietude, a frescura, o som revigorante da água que sai dos repuxos e corre nos canaletes, através da relva e da murta, ao longo dos arcos e das lajes rebrilhantes e sombrias.
Esse refúgio é o seu paraíso na Terra. Nele (privilégio imenso) ciranda muitas vezes sozinha. Ouve o sapatear das suas próprias sandálias, o canto das rolas-coleiras, o murmúrio das palavras que sempre recita a meia voz dos livros santos.
Peripatética é esta freira clarissa: ensina e aprende, caminhando sempre; a ninguém mais ensina, a si sim, dando voltas ao pátio do convento e repetindo os cânticos fraternos da sua ordem.
Às vezes a chuva vem. Chega de supetão. A monja escuta-a e observa-a, poderosa, abluente, caindo sobre a pátina urbana como uma graça infinita do Senhor!
Em Nápoles, a chuva não é despicienda ou arbitrária: Deus serve-se dela e do pó, como da tinta e do papel se servem os homens. Depois da chuva todas as coisas se parecem humildes e reabilitadas, como depois de um perdão.
Mas hoje o calor é imenso. Insuportável.
Não lhe pertencem, ainda assim, os pensamentos de Drusiana.
Pensa, isso sim, na velha senhora, de aspeto débil e pálido, que lhe estendeu as mãos esta manhã e lhe disse “Adeus”. “Onde estão os teus filhos?” perguntou. Como é seu hábito, a monja repete num modo recitativo as palavras em que medita. Escuta e repete, repete e cisma:
“A ‘o cane viecchio tutte quante lle scarpesano ‘a coda”.
Já em muitas ocasiões, no leito de morte de outros doentes, sentiu a mesma vivíssima impressão de amor. Têm talvez a mesma idade, histórias diferentíssimas e, por fim, quem sabe o mesmo destino.
Drusiana pensa na expressão bela, pungente, quase feliz, que a anciã juntou no fim de tudo, como um chiste:
“‘A vecchiaia è carogna, ma pe’ chi nun’ n’ce arriva è vriogne.”
Nós, que entendemos algum dialeto napolitano, traduziremos ambos os provérbios: “Ao cão velho todos pisam a cauda” e “A velhice é uma podridão, mas vergonhoso é não chegar lá”.
Dia de calor insuportável, sem dúvida. Igual a um grande inseto mordendo sem piedade. Todos aqui conhecem a dureza deste aferroar. Em Nápoles até as pedras gemem debaixo do sol.
Também elas cismam e repetem velhos pensamentos dolorosos. Dificilmente traduzíveis.